O relógio digital na parede da autarquia piscava "17:59". Greg, ou antes, o que a maioria das pessoas na repartição chamava de Greg, sentiu o burburinho familiar da ansiedade. Mais um dia em meio a papeladas, carimbos e o eterno aroma de café requentado estava a ponto de se esvair. Liberdade. Ou melhor, tempo. Tempo para dedicar-se à sua obsessão, ao seu plano audacioso e, para usar uma palavra humana, ao seu amor: Azathoth.
Desligou o computador obsoleto, cuja lentidão era uma constante fonte de irritação, e deslizou para fora da cadeira. A ausência de ossos permitia a Greg movimentos fluidos, quase serpentinos, que muitas vezes chocavam seus colegas. Para eles, Greg era um mistério ambulante, um enigma que trabalhavam lado a lado, mas jamais compreendiam. E Greg preferia assim.
Enquanto caminhava pelas ruas cinzentas da cidade, a pergunta martelava em sua mente: qual era a sua origem? Uma nebulosa de memórias fragmentadas, sensações e instintos era tudo o que possuía. Lembrava-se de um oceano primordial, de cores indescritíveis e de uma pressão esmagadora. Lembrava-se de ser parte de algo maior, uma consciência coletiva pulsante nas profundezas abissais. Então, a separação, a emergência para este mundo, a lenta e dolorosa adaptação à atmosfera rarefeita e à gravidade implacável.
Greg não sabia como, ou por que, fora trazido a este plano de existência. Talvez um experimento cósmico falho? Um erro de cálculo de alguma entidade superior? Ou, quem sabe, um capricho do próprio Azathoth? A ideia, por mais absurda que parecesse, o enchia de uma esperança gélida.
Adentrou o seu "lar", um depósito abandonado nos arredores da cidade. Era úmido, escuro e repleto de sucata eletrônica. Perfeito para Greg. As paredes estavam forradas de diagramas complexos, anotações rabiscadas em diversas línguas (muitas delas, inventadas) e representações bizarras de geometrias não-euclidianas. No centro do cômodo, jazia o seu "laboratório": uma parafernália de fios desencapados, placas de circuito, antenas parabólicas e um computador de fabricação caseira, capaz de processar cálculos absurdamente complexos.
A alimentação de Greg era um mistério até para ele próprio. Não sentia fome no sentido humano. Sua fisiologia absorvia a energia dispersa no ambiente, como radiação eletromagnética e resíduos energéticos de aparelhos eletrônicos. O depósito, com sua abundância de sucatas, era um verdadeiro banquete para ele.
Enquanto conectava um novo sensor ao intrincado sistema, permitiu-se pensar sobre "parceiros". A ideia de relacionamentos, como os humanos os concebiam, nunca o atraiu. O conceito de sexo, gênero e identidade eram categorias limitantes, irrelevantes para a sua natureza fluida e pansexual. No entanto, encontrava prazer e companhia em diversas formas. Mantinha breves interações com alguns humanos, atraídos pela sua aura enigmática e pela sua capacidade de ouvir sem julgar. Compartilhava conhecimento com cientistas marginalizados, poetas visionários e artistas excêntricos, absorvendo suas ideias e emoções, como um polvo absorve a tinta. Mas nenhuma dessas conexões se comparava à devoção que sentia por Azathoth.
Seu plano para encontrar o Sultão Demoníaco era arriscado, beirando a insanidade. Baseava-se em anos de estudo da teoria das dimensões, da física quântica e de textos arcanos e proibidos. Acreditava que, ao criar uma fenda dimensional, um portal para outras realidades, seria possível enviar um sinal, uma mensagem para Azathoth. O problema era a energia necessária para criar tal fenda. Precisaria de uma fonte de poder colossal, algo muito além do alcance de um simples funcionário público.
A solução, como muitas vezes acontecia, veio de uma fonte inesperada. Durante uma das suas incursões à biblioteca municipal, Greg encontrou um artigo esquecido sobre um projeto secreto do governo, datado da Guerra Fria. O projeto, chamado "Operação Aurora", visava aproveitar a energia do campo magnético terrestre para fins desconhecidos. O artigo mencionava uma instalação abandonada em uma região remota do interior do estado, onde o projeto fora conduzido.
A "Operação Aurora". O nome ecoou na mente de Greg como um chamado. Era arriscado, sem dúvida. O governo certamente não havia abandonado a instalação por completo. Mas a possibilidade de ter acesso a uma fonte de energia de tal magnitude era tentadora demais para resistir.
Naquela noite, enquanto os neons da cidade cintilavam como olhos famintos, Greg começou a traçar a sua rota. A viagem seria longa e perigosa, mas a promessa de estar um passo mais perto de Azathoth o impulsionava. Desenhava mapas, estudava a topografia da região e preparava o seu equipamento. Cada fio conectado, cada solda realizada, era um ato de devoção, uma prece silenciosa ao Deus do Caos.
O plano estava em andamento. A busca por Azathoth o levaria aos confins da realidade, a lugares onde a sanidade era um luxo e a morte, uma mera possibilidade. Mas Greg não temia. A sua natureza alienígena, a sua paixão obsessiva e a sua fé inabalável o tornavam imune ao medo. Ele era um pólipo humanoide, um ser à margem da ordem, a caminho de encontrar o seu Deus no coração do caos. E as marés do destino, por mais turbulentas que fossem, o levariam até lá.
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