quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O enredo de uma história

Jenya T. Beachy, no Patheos.

A história é sobre como a chuva ama tanto a terra que ele cai do céu para tocar a face dela. Ou sobre a calorosa paixão do vulcão aumenta e cospe nova terra sobre o mar. A história é sobre o trigo no campo caindo pela foice. A história é sobre a proximidade e a diferenciação, uma eternidade de vida e morte. Esta história é uma tragédia e uma compendia. Todo mundo ama e todo mundo morre.

Então acontece um enorme sacrifício. O sacrifício voluntário de todo um ser para o ciclo do aqui e além, união e saudade em escala épica. A árvore começa na semente escura, crescendo pelos anos, finalmente criando amor/flores, dando vida/frutos, depois morrendo/caindo, tornando-se comida para as próximas gerações, retornando para as trevas, como tudo faz.

A história é sobre um esquema selvagem e brilhante que coloca duas coisas juntas para criar uma terceira. O mundo tal como conhecemos funciona porque as coisas se combinam, cada qual contribuindo com sua parte e coisas novas são criadas. Este é o milagre da criação de uma nova vida.

Existem milagres de dois ou mais lados de um argumento, sentando e resolvendo problemas. Existem milagres em pegar algo muito danificado e consertá-lo existem milagres simplesmente em dançar junto, rir, chorar, sendo forte e sensível ao mesmo tempo.

O amor do Deus e da Deusa, Senhor e Senhora, Dele e Dela, Dela e Dela, Dele e Dele; terra, semente, chuva e céu; cheiro de sal e flores; furacões e terremotos; florestas e pássaros, esta história é importante. Como também são importantes as histórias de amor entre dois pontos de vista opostos, necessidades diferentes, posturas contrastantes.

Eu ainda me emociono com a história de amor daquele que se oferece pelo bem de todos. Como a maçã não chora enquanto é comida pelo cervo, mas aceita graciosamente comungar com o todo. Eu amo como as árvores formam uma pele áspera para proteger sua vida de intrusos. Eu amo quando o predador perde a presa, ele se move para a próxima oportunidade.

Se nós podemos descrever nossa experiência como uma história de amor tão verdadeira que nos faz chorar, então nós estamos crescendo em uma de nossas maiores bênçãos como seres humanos: a compaixão.

PS: Feliz Yule e Feliz Ano Novo.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Perdendo a identidade

John Halstead escreveu um artigo de título “What I don’t miss about Christianity” no Patheos na coluna Allergic Pagan e citou uma antiga colega, Star Foster, anunciando a reconversão dela ao Cristianismo. Anteriormente, outro autor do Patheos, do Pagan Channel, Teo Bishop também havia se reconvertido. Não que queiramos apontar o elefante no meio da sala, mas certamente cristãos fundamentalistas vão adorar esse pedaço de torta dada de graça e vão usar a reconversão de Star Foster para fazer proselitismo e denegrir o Paganismo Moderno.

Como minha proposta e oferta de escrever ao Patheos foi recusada, eu continuo a escrever meus comentários, apontamentos e críticas aqui mesmo. De tempos em tempos o Patheos lança um tema para seus autores escreverem e parece ser o caso aqui. Patheos deveria ter lançado a pergunta no Pagan Channel “What you miss in Christianity”. Para ser polemico e controverso, Patheos deveria ter perguntado “O que uma pessoa procura ao entrar no Paganismo”.

Desde que este blog foi fundado, em 13 de julho 2007, a identidade deste blog é definida como um blog sobre Paganismo, Bruxaria e Wicca, mas sobretudo sobre a minha jornada no Caminho no Bosque Sagrado. John Halstead e Star Foster foram traduzidos e citados aqui. Autores de caráter duvidoso, como Claudiney Prieto, foram citados aqui. Eu citei inclusive páginas e textos do Cristianismo, a título de comparação e crítica. Eu até dei testemunhos sobre as minhas boas e más experiências nesta jornada. Então, de certa forma, eu posso imaginar as razões que fizeram Teo Bishop e Star Foster em voltar para o Cristianismo.

Eu creio que não esteja exagerando nem simplificando ao afirmar que a maioria dos pagãos que existem, desde o surgimento do Paganismo Moderno, foram cristãos ou pertenceram ao Cristianismo, em alguma de suas vertentes. Nosso histórico, nossa vida, por coisas que passamos ou aprendemos, nos faz romper com o Cristianismo e nos leva a outros portos, ateísmo incluído.

Procuramos por liberdade, pois estamos cansados de dogmas e doutrinas impostas por uma organização religiosa. Procuramos por amor, pois estamos cansados de ter medo e de tanto ódio, causados pelas religiões oficiais. Procuramos por aceitação, pois estamos cansados de intolerância e preconceito. Procuramos por práticas, espiritualidades, misticismos, esoterismos, fórmulas, caminhos, crenças e religiões que possam suprir essa nossa busca, essa nossa carência. E é aqui que o bicho pega.

O ser humano tem na sua natureza o impulso de se agregar, de buscar sua tribo, seu grupo, pessoas afins, que compartilhem do mesmo ideal, crença, objetivo ou sonho. Saímos de um cenário traumático, frustrante, insatisfatório, limitado, dogmático, cheios de esperanças e expectativas. E nos esquecemos de quanto é humana toda e qualquer espiritualidade, crença e religião. Entramos ou procuramos entrar em um grupo, uma comunidade, de uma forma de espiritualidade, crença ou religião e nos sentimos rejeitados, excluídos, criticados. Esta é uma triste verdade da Comunidade Pagã, a despeito de sua apresentação ao público, onde dizemos que somos tolerantes, inclusivos, liberais, por dentro a coisa não é bem assim. Eu creio que se encaixam nesses casos o motivo da reconversão de Teo Bishop e Star Foster.

Eu não conheci Teo Bishop, mas eu conheci Star Foster. Eu traduzi e divulguei textos dela. Eu cheguei a adicioná-la no Google Plus. Eu comprei uma briga com ela depois que ela publicou um meme com Vivianne Crowley e eu respondi com um meme com Ray Bone. Diferenças, discussões, controvérsias e polêmicas acontecem na Comunidade Pagã e eu exagerei na minha cota. Então o leitor deve se perguntar qual a validade ou confiabilidade do Paganismo Moderno se vivemos às turras. Somos humanos, leitor, somos apaixonados pelas nossas visões e experiências, nós somos pessoas com personalidade e identidade forte. Se eu fosse levar em conta as dificuldades que Teo Bishop e Star Foster tiveram e eu mesmo tive [como testemunhei com a saga de Joãozinho] eu teria desistido do Paganismo Moderno muito antes deles. O que eu procurei no Paganismo Moderno foi o resgate das minhas raízes, da minha identidade, da minha origem e da minha essência, algo que eu jamais encontrei e encontrarei no Cristianismo. Eu digo com um certo orgulho que nossa obrigação é o de servir aos Deuses, não às nossas necessidades, carências, frustrações, traumas. Apenas isso é mais que suficiente para me deixar de fora de grupos, comunidades e redes sociais pagãs, dominadas por egos enormes e cultos de personalidade. Mas eu estou tranquilo, os Deuses estão me dando exatamente o que preciso. Eu não preciso procurar por aceitação, reconhecimento, público ou aplauso. Eu não preciso entrar em um grupo, uma comunidade, um coven para encontrar o Caminho Sagrado Entre os Bosques Sagrados, para adorar os Deuses e honrar meus ancestrais. Eu me encontro no Caminho Sagrado, eu estou no Bosque Sagrado, eu estou honrando meus ancestrais e eu estou servindo a meus Deuses.

Abandonar todas estas bênçãos e milagres para voltar a um cenário de medo, ódio, violência, intolerância, preconceito, dogmatismo, escravidão, rejeição, dessacralização, totalitarismo e ditadura, eu jamais farei, porque seria suicídio. Eu desejo sorte e felicidade a Teo Bishop e Star Foster, que sejam bem sucedidos nessa busca, ainda que tenham perdido a identidade.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Natal pagão

Jason Mankey propõe uma análise mais exata do mito natalino, o mito cristão que é o cerne do Natal, uma celebração que há tempos foi desencavado suas raízes pagãs.

Jason diz: “cristãos lutam com o seu passado pagão, e pagãos modernos e ateus têm suas batalhas também. Em vez de desfrutarmos a riqueza de nossas tradições, pessoas em ambos os lados gostam de atacar seus desafetos. Ideias de que a antiguidade pagã foi cristianizada e qualquer coisa pode ser feita para marginalizar Jesus é jogado em sua manjedoura. Eu não sou um grande fã do cristianismo também, mas eu não vou inventar coisas sobre seu fundador para me fazer sentir melhor sobre isso”.

Que o Natal excedeu suas origens, motivos e sacralidade, não há o que comentar, mas eu discordo da tentativa de amenizar ou esclarecer quais partes das raízes pagãs do Natal são exatas e quais não. Inegavelmente o mito de Natal, o mito de Cristo, ainda continua sendo e tendo um esqueleto com origem em diversos mitos pagãos.

Se for para esclarecer algo, se é para explicar mitos e religião comparada, que seja imparcial, o que Jason não faz ao desmistificar as equiparações de Cristo com outros Deuses pagãos.

“Dionísio não nasceu de uma virgem, porque seu pai Zeus, na verdade, gostava de ter relações sexuais com pessoas (e outras divindades). Ninguém jamais afirmou que Semele (mãe de Dionísio) era virgem.”

Diversos mitógrafos e mesmo escritores antigos citam Semele como sendo virgem quando Zeus a engravidou. Mesmo o atributo de “virgem” que foi dado a Maria/Miriam é controverso, pois no original significa “mulher não casada”, o que é bem diferente do sentido que se costuma dar. Ponto fora para Jason.

“Mithra não nasceu de uma virgem, ele veio a este mundo como um adulto que estoura através de rocha sólida”.

Jason não forneceu suas fontes para tal afirmação. A Wikipédia confirma este mito, mas lembra que existem variações. Em sua versão Védica, Mithra nasceu de Ahura-Mazda, uma Deusa Virgem. Ponto fora para Jason.

Curiosamente em outros textos de Jason fala-se das enormes similaridades dos símbolos usados no Natal que tem origem pagã, como eu mesmo publiquei em meu blogue. Podemos fazer as mesmas comparações com Hórus, Attis e inúmeros outros Deuses Pagãos. As diferenças mais ressaltam o quanto o Cristianismo se apropriou da imensa cultura pagã que existia nos povos que foram englobados pelo Império Romano. Com a terceira bola fora, Jason perde a partida.

Seja o leitor pagão, cristão, judeu, muçulmano, ateu, não faltam razões e motivos para celebrar a data do solstício de verão. Bruxos celebram Lussinata, pagãos celebram Saturnália, wiccanos celebram Yule/Litha. Então celebremos e que esse clima de concórdia perdure o ano todo!

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O trono vazio

Erick Dupree é um pagão monista e monoteísta com sua Deusa Una. Em sua coluna chamada “Alone in Her Presence”, Erick expõe a teologia da “religião da Deusa”, do Dianismo. Eu sou totalmente contra esse monoteísmo dissimulado de Paganismo Moderno.

Erick conta como a “Deusa” é conhecida por muitos nomes e esteve presente em muitos povos, em diversas épocas. Erick fala da Deusa Mãe e da Deusa Terra. Erick conta que a Deusa é todas as Deusas.

Eu havia anteriormente dito que este pensamento proveio de Dion Fortune e não tem embasamento histórico, antropológico, etnológico ou mítico. Essa concepção tem muito da visão de Gustav Carl Jung sobre “arquétipo”, mas para os diversos povos, com suas diversas Deusas, esta noção soaria sacrilégio, blasfêmia, heresia. Muito embora os conquistadores vissem e lessem os Deuses dos povos conquistados com as cores dos seus próprios Deuses, não os confundiam, apenas os comparavam.

Se a Deusa é antiga e amplamente presente em diversas culturas, o Deus também o é. Na antiguidade, havia sociedades matriarcais, patriarcais, sedentárias, nômades, caçadoras-coletoras, agrário-pecuaristas. Culturas diferentes, crenças diferentes, Deuses diferentes. Assim como a Deusa-Mãe, a Deusa-Serpente, a Deusa Terra, é uma constante, o Deus Pai, o Deus Touro, o Deus Céu é igualmente constante, portanto são contemporâneos.

A união do Deus com a Deusa era tão importante que sobreviveu ao aculturamento cristão até os dias de hoje, custa entender porque exatamente no Paganismo Moderno, queiram fazer o mesmo que as religiões abraâmicas fizeram, divorciando o Deus da Deusa. Nós sofremos com as consequências desse divórcio.

Sem a Deusa, o Deus se torna violento, ciumento, vingativo.

Sem o Deus, a Deusa se torna frígida, histérica, rancorosa.

Sem o Deus, quem irá arar a terra? Sem o Deus, quem irá semear a semente? Sem o Deus, quem irá ceifar o trigo? Sem o Deus, quem irá nos conduzir para dentro do ventre da terra? Sem o Deus, quem irá colocar o cetro no trono? Sem o Deus, a Deusa não pode ser coroada e o trono fica vazio.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Escolhendo o Amor

Erick Dupree escreveu um artigo no Patheos intitulado “Choosing Love over Fear”. Pode parecer estranho, afinal, muitas religiões afirmam que existem para que a humanidade conheça o Amor e saibam amar. No entanto, qualquer pessoa que saiba um pouco de história sabe muito bem que a História do Cristianismo [e de outras religiões abraãmicas] mostra que algumas religiões tem uma forma muito estranha de demonstrar amor. Mas vamos devagar, não vamos cair na generalização, análise superficial, desonestidade, calunia, injuria e difamação que os neoateístas fazem. A humanidade não precisa de mais intolerância e fundamentalismo.

Voltando ao assunto, em especifico o Paganismo Moderno, o que nós podemos oferecer como caminho para conhecermos, celebrarmos e vivenciarmos o Amor?

Antes vamos citar Erick explicando a expectativa das pessoas:

Pelo menos uma pessoa reaprende o que significa ter uma espiritualidade própria e escolher o amor ao invés do medo”.

Muitas pessoas procuram por uma forma de espiritualidade alternativa por causa de traumas ou de decepções. O Paganismo Moderno tem, como Sable Aradia definiu com precisão, a “Maldição da Gentileza Pagã”. Onde nas outras religiões, especialmente as monoteístas ou majoritárias dizem “não” nós dizemos “sim”. A despeito de toda nossa característica e inclusão, as pessoas ainda tem medo e eu não as culpo, principalmente se levarmos em conta a polêmica que Zsuzsanna Budapest causou e causa no meio do Paganismo Moderno.

Para os curiosos, simpatizantes e interessados no Paganismo Moderno saibam que nós não somos assim tão tolerantes nem inclusivos quanto gostaríamos de fazer crer. Meu caro dileto e eventual leitor deve ter acompanhado por este blog, eu fui sistematicamente banido e expulso de diversos grupos e redes sociais pagãs simplesmente por sustentar a tradição, os princípios e os valores da Wica. Quando o assunto é sexo, gênero, identidade/preferência pessoal, educação sexual e relacionamento então, eu custo crer que ainda não me queimaram em uma fogueira. Falar de Amor em um mundo onde o que manda é Ódio, Violência, Agressividade sempre será visto com suspeita.

Em outro texto eu fiz uma reflexão em como a humanidade é curiosa e esquisita. Nós temos tantas poesias, músicas, pinturas, filmes e teatros que falam sobre o amor, mas nós praticamos muito pouco aquilo que consideramos ser amor. Erick diz que o amor “pode te levar a abandonar” tudo o que você conhece: família, amigos, trabalho, religião. Eu não poderia discordar mais de Erick. Amor não é escolher algo ou alguém e deixar outros fora. Amor é sempre acrescentar, aumentar, ampliar, incluir. O ideal de Erick se parece muito com o ideal cristão. Para Erick, amor é “vazio”. O amor não é “vazio”, mas a sensação de plenitude. O ideal de Erick se parece muito com o ideal budista. Erick disse que no “vazio” do seu coração ele encontrou a Deusa, a Deusa imanente que está mais para o Monismo do que para um ente divino, mas ele não fala do Deus. Como pode haver amor?

Esta é uma falha das chamadas “religiões da Deusa”, sobretudo de suas vertentes mais feministas ao ponto de serem misândricas. A Deusa é incapaz de dar, receber, inspirar amor se negamos a Ela sua sexualidade, sua sensualidade, sua feminilidade. Ao omitir, negar e diminuir a importância do Deus, ao tornar a Deusa uma Santa Ameba, nós estamos negando a sacralidade do desejo, do prazer, do corpo, do sexo e do amor. Ao negar que a Deusa precisa de um Consorte nós tornamos o sagrado feminino mais uma triste imitação do ascetismo cristão. Como pode haver amor?

Vivemos por tempo demais debaixo do Ódio, da Violência, da Ignorância, do Medo. Vivemos por tempo demais debaixo dessa ditadura clerical e toleramos toda essa opressão e repressão por tempo demais. Basta de recalques, traumas, frustrações, neuroses e paranoias. Chega de discriminação, preconceito, intolerância, discriminação, segregação. Basta de modelos impostos, seja da Sociedade, seja do Estado, seja da Igreja. Todo ser humano tem a liberdade e o direto de amar quem quiser, quantos quiser. Celebremos o Amor enquanto Lei, como o Amor é, Criança e fruto da União [Hiero Gamos] do Deus com a Deusa.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Bendito Fruto

Ao passear pela internet, pesquisando imagens e textos, eu encontrei o site Morte Súbita. Ali eu acessei a coluna Paganismo e encontrei uma série de artigos que eu irei chamar candidamente de metafísica mamífera.

Eu selecionei quatro textos para escrever um texto inspirado sobre a Deusa que, como o Deus Cristão, está muito mal representada, pelas religiões da Deusa e pelos Diânicos. Nada pode ser mais sacrílego, blasfemo e herético do que negar a sexualidade e a sensualidade da Deusa, mas é isto o que muitos pagãos modernos fazem ao negar ou omitir o Deus, descrevendo a Deusa como se fosse uma Santa Ameba. Nada pode ser mais contraditório do que um sacerdote querer incorporar a Deusa por ainda não ter resolvido suas questões de identidade, opção e preferência sexual. Nada pode ser mais repugnante do que um sacerdote que nega não apenas sua natureza, mas distorce e deturpa a identidade do Deus.

Quando falamos do aspecto divino feminino, conhecido como Deusa, para a mente ocidental, dominada por uma cultura niilista e uma moral judaico-cristã, soa como uma concepção absurda.

Nos primórdios da humanidade, a coisa era bem diferente. A presença maciça de uma Deusa Mãe se estende por todo esse mundo, que é chamado de Gaia não por mera coincidência. O caro dileto e eventual leitor deve se perguntar onde Deus ficava nesse mundo matrilinear e matriarcal. Bom, se você chegou agora e ainda não leu meus outros textos, o Deus está bem presente, como o Guardião do Mistério e Condutor dos Peregrinos, desde pinturas rupestres em cavernas até estátuas em templos.

Mas há uma grande diferença em como nossos ancestrais imaginavam e cantavam a Deusa e em como muitos pagãos modernos, especialmente os que seguem alguma “religião da Deusa” ou alguma forma de Dianismo, imaginam e cantam a Deusa.

Lendo os textos de farsantes e vigaristas travestidos de sacerdotes da Deusa, os atributos que mais percebemos sobre Ela são a compaixão, a misericórdia, a piedade, a caridade... igualzinho aos textos evangélicos sobre o Deus Cristão. Sem dúvida estes são atributos da Deusa, mas são tão... idealizados, mentais, transcendentes, que fica difícil de imaginar que Ela é imanente, carnal, mundana e se manifeste na natureza. Como fica a Deusa em seu aspecto sexual, sensual, feminino, erótico, nesse idealismo... apolíneo?

A Deusa em seu ato mais sagrado e divino chega a ser um desafio e uma afronta ao feminismo histérico e misândrico. A Deusa é a plenitude do feminino, da sensualidade, da sexualidade, do erotismo, do sexo. Ela quer um Deus, Ela quer um Consorte. Ela quer ser beijada, acariciada, beijada. Ela quer ser penetrada. Ela quer oferecer este mesmo desejo, prazer, gozo e êxtase a todos os seus filhos e filhas. Por isso dizemos em nossas celebrações: “Todos os atos de amor e prazer são meus rituais”.

Então os símbolos da Deusa são: a) o triângulo com um vértice para baixo, simbolizando a pélvis e a vagina; b) seios desnudos, fartos, redondos.

Se um recém nascido pudesse falar, a deusa seria a maneira como ele descreveria o seio que o amamenta - se esse seio pudesse falar. De acordo com essa lógica, a imagem da Grande Deusa Mãe seria a extensão no espaço-tempo dos próprios seios”. [Morte Súbita]

Seus seios, por exemplo, eram o motivo pelo qual os Bailônios a chamavam de 'A Mãe dos Seios Frutíferos', aquela cujos seios nunca falhavam, nunca secavam - ocasionalmente eles eram simplificados a aros ou espirais estilizadas, mas geralmente eram expressos com todo seu potencial erótico e, de forma mais impressionante, eram expressos multiplicados para lhes dar mais ênfase”. [Wolfgang Lederer, citado pelo Morte Súbita]

A Deusa que descrevemos não é uma mera mãe humana, dando leite humano para a criança que nasceu de sua própria carne e sangue, nem simplesmente uma mera mãe divina, carregando uma criança humana ou divina: pois de seus mamilos pode sair não leite, mas mel - como na Palestina que, em seu nome, era conhecida como a terra do leite e do mel, ou Delfos, onde suas sacerdotizas eram chamadas Melissai, que significa "abelhas", e seu templo era construído de forma a se assemelhar a uma colmeia. Ela não só é mãe de todo tipo de animais, mas também alimenta a todos, dando a cada um o que é necessário e, sendo a "Alma Mater" que é, ela pode - maravilha das maravilhas - alimentar também homens barbados, estudiosos, lhes dando sabedoria. Resumidamente ela é a fonte de todo tipo de alimento, material ou espiritual”. [Morte Súbita]

Não é de se admirar que ela tenha tanto orgulho de seus seios. E, por causa disso, ela os segura, de forma bem natural, seja para exibi-los, seja para oferecer de forma mais conveniente sua plenitude". [Wolfgang Lederer, citado pelo Morte Súbita]

Estátuas da Deusa, segurando os peitos como se os oferecesse, foram encontradas por toda a Europa e Ásia pré-históricas”. [Morte Súbita]

Quando o antropólogo Weston La Barre diz que "mães criam magos; pais deuses", ele está afirmando que o transe mágico ou xamânico é uma volta ao êxtase no peito da mãe que nutre a todos, enquanto a religião é uma propensão anal de um deus temível que é uma versão aumentada do pai punitivo”. [Morte Súbita]

Várias tradições explicitamente sexuais que surgiram no fim do século XIX e início do século XX se tornaram púdicas e simbólicas. Mas a Grande Mãe persiste, com seus seios à mostra, para aqueles que sabem enxergá-los”. [Morte Súbita]

O que há de mais perturbador, proibido, vergonhoso, escandaloso, para uma sociedade doentia, dominada pela pulsão de morte e pelos recalques oriundos da religiosidade judaico-cristã do que a nudez feminina? O ocidente se julga tão superior ao oriente, tão mais liberal do que os países muçulmanos, mas o sexismo, a misoginia, o patriarcado, a coisificação da mulher, a vulgarização do sexo, a demonização do corpo/desejo/prazer, os tabus/regras/proibições quanto a sexo e relacionamento mostram que não estamos melhores, apenas mais hipócritas. A nudez feminina é permitida apenas como entretenimento do macho, como cabide de produto, como justificativa da supremacia masculina. Quando uma mulher mostra o seio, não se verá a pessoa, suas qualidades, sua humanidade, verá apenas a carne feita para usufruto do macho, desprovida de seu sentido sagrado, religioso ou divino. O que não significa que devemos nos tornar feministas celibatários misândricos, mas que a mulher pode e deve definir como ela quer se relacionar e ter sexo. Para isso, a mulher deve perceber que é uma manifestação da Deusa, aceitar sua sensualidade, sua sexualidade, sua sedução, seu erotismo, seu corpo, seu desejo, seu prazer e procurar vivenciá-lo plenamente, com o Deus, com o homem, além de quaisquer regras, tabus e proibições sociais.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Paganismo e Nova Era

Jason Mankey escreveu no Patheos o artigo “Paganism and New Age” e eu acho interessante para os pagãos brasileiros não traduzir o que Jason escreveu, mas analisar e comparar esses caminhos ou tendências do Mundo Contemporâneo e talvez colocar um contexto mais preciso para diferenciar um de outro.

Eu vou recorrer ao Oráculo Virtual [Google].

O movimento da Nova Era (do inglês New Age) tem como característica uma fusão de ensinos metafísicos de influência oriental, de linhas teológicas, de crenças espiritualistas, animistas e paracientíficas, com uma proposta de um novo modelo de consciência moral, psicológica e social além de integração e simbiose com o meio envolvente, a Natureza e até o Cosmos. Tendo muitas vezes como base um caráter liberal e de oposição à ortodoxia e o conservadorismo das religiões organizadas.

O movimento em si ocorreu nas décadas de 1960 e 1970, tendo como inspiração princípios teosóficos e escritos sincréticos do século XIX e início do século XX. Fazendo parte dos movimentos de contracultura da época e servindo como ferramenta de contestação às religiões e valores tradicionais.

Embora tenha deixado marcas que ainda se refletem na atualidade, o movimento nunca existiu de forma centralizada ou como uma só organização. Nota-se também que nem todas as religiões e filosofias sincréticas ou místicas apoiam ou se identificam com movimentos da nova era, embora muitas vezes sejam rotuladas dessa forma. [Wikipédia]

Paganismo (do latim paganus, que significa "camponês", "rústico" ) é um termo geral, normalmente usado para se referir a tradições religiosas politeístas.

É usado principalmente em um contexto histórico, referindo-se a mitologia greco-romana, bem como as tradições politeístas da Europa e do Norte da África antes da cristianização. Num sentido mais amplo, seu significado estende-se às religiões contemporâneas, que incluem a maioria das religiões orientais e as tradições indígenas das Américas, da Ásia Central, Austrália e África, bem como às religiões étnicas não-abraâmicas em geral. Definições mais estreitas não incluem nenhuma das religiões mundiais e restringem o termo às correntes locais ou rurais que não são organizadas como religiões civis. Uma característica das tradições pagãs é a ausência de proselitismo e a presença de uma mitologia viva, que explica a prática religiosa. [Wikipédia]

Neopaganismo, [ou Paganismo Moderno] por vezes referido simplesmente como paganismo, é um termo utilizado para identificar uma grande variedade de movimentos religiosos modernos, particularmente aqueles influenciados pelas crenças pagãs pré-cristãs da Europa. Os movimentos religiosos neo-pagãos são extremamente diversificados, com uma vasta gama de crenças, incluindo o politeísmo, o animismo, o panteísmo e outros paradigmas. Muitos neopagãos praticam uma espiritualidade que é completamente moderna em sua origem, enquanto outros tentam reconstruir precisamente ou reviver, religiões étnicas como os encontrados em fontes históricas e folclóricas.

A maior parte das religiões neopagãs são tentativas de reconstrução, ressurgimento ou - mais comumente - adaptação de antigas religiões pagãs, principalmente as da antigüidade pré-cristã européia, mas não restritas a estas, sem perder de vista as experiências e as necessidades apresentadas pelo mundo contemporâneo. Alguns neopagãos enfatizam sua conexão com formas antigas do paganismo, em uma forma de continuidade histórica marginal. [Wikipédia]

Agora vamos colocar o andor em marcha. Esse “orientalismo” apareceu na mesma época da Contracultura e do Paganismo Moderno. Mais fruto da colonização inglesa e fruto da cultura pop [os Beatles e outras bandas contribuíram e muito para ascender as inúmeras práticas do “oriente” para consumo da classe média e até intelectuais], a Nova Era pode montar seus primórdios ao Ocultismo do século XVIII e as muitas ordens místicas esotéricas que apareceram em decorrência desse Movimento Romântico. Maçonaria, Rosacruz, Teosofia e congêneres misturaram sem dó nem piedade as mais diversas práticas espirituais vindas do “oriente”, muitas vezes desprovidas de sua base, origem ou doutrina religiosa.

Muito do que sabemos e resgatamos do Paganismo Clássico e da Bruxaria Tradicional pode até ter sido trazido pela Nova Era, mas o estudo da história, da arqueologia, da antropologia e da etnologia pode filtrar muito do bagaço que é vendido com a embalagem de Wicca, Bruxaria e Paganismo. O mais provável é que o Ocultismo e a Teosofia copiaram partes do Paganismo Clássico, especialmente os ensinamentos esotéricos e partes das Religiões de Mistério, especialmente as práticas mágicas, com uma embalagem mais comercial e atrativa para o público que procurava formas de espiritualidade alternativas.

O Paganismo Moderno, em seus primórdios, sofreu bastante com essa falta de fontes, de bases e de estudos mais aprofundados e, infelizmente, ainda existe muita confusão e ecletismo que coloca o Paganismo Moderno com uma inconveniente proximidade com a Nova Era. Por isso que é necessário divulgar e esclarecer ao público que práticas espirituais têm sua origem e sentido por si mesmas. Ainda que façamos uso dessas práticas, isto não pode alterar nem distorcer nosso sentido de identidade, de origem, de prática e de propósito.

Por isso que eu tenho uma postura tradicionalista e politeísta. A ideia de Monismo ou Henoteísmo é uma influência desse “orientalismo”, dessa Nova Era comercializada. A prática espiritual é um acessório que ajuda, complementa, aprimora nossa experiência com o divino, mas não pode tomar o lugar dos princípios e valores que caracterizam nossa religião. A Nova Era é simplesmente uma espiritualidade de conveniência que beira a histeria kitsch. O Paganismo Moderno é uma religião, com Deuses, rituais e práticas com um objetivo mais coerente.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Deus Sol e o escaravelho

Por Geraldo Magela Machado.

Segundo o mito, o deus Sol, que era um deus pacífico, teria nascido de um ovo ou de um lótus. Esse deus foi o pai e mestre de todo o universo. Despertando no oriente e, conduzido pela sua barca de ouro de 770 côvados, medida egípcia equivalente a 400 metros de cumprimento, distribuía luz e calor pelo mundo.

Na forma humana durante o dia e com cabeça de carneiro com chifres recurvados à noite, o deus Sol, na cidade de Heliópolis, protege os egípcios, concedendo-lhes inúmeros benefícios, enquanto estes vão constituindo povos por toda a região do Egito: os núbios ao sul, os asiáticos ao norte, os líbios ao oeste e a leste, os beduínos (árabes do deserto).

Os demais elementos da natureza também tinham seus nomes ligados ao deus Sol: o ar era Chu, a Terra era Tefnut, Geb, e o céu era Nut, todos seus filhos. Foi o deus Sol (Rá), quem determinou que, caso um humano ofenda os deuses, este deverá oferecer um sacrifício animal, pois não eram aceitos sacrifícios de seres humanos.

Mesmo um deus está sujeito às consequências do tempo, e assim, o deus Rá começa a se degenerar, seus cabelos adquirem a cor do lápis-lazúli (pedra preciosa de cor azulada), seus membros enrijecem, seus ossos viram prata, seu corpo transforma-se em ouro e ele precisa de um bastão para caminhar.

Khepri era um dos vários deuses egípcios associados a animais. Seu nome significa escaravelho, e seu culto é citado nos textos encontrados nas pirâmides. O escaravelho tem por hábito botar seus ovos em esterco animal, assim como em corpos de outros escaravelhos mortos. Essa prática foi observada pelos egípcios e, daí, surgiu a noção de ressurreição e renascimento, associadas ao escaravelho.

Outra prática comum dos escaravelhos e que também foi observada pelos egípcios, é a de rolar bolas de esterco pela terra. Isso fez com que fosse associado ao deus Rá, que rola o Sol através do céu. Essa crença fazia com que os egípcios acreditassem que Khepri renovava o sol todas as noites para, no dia seguinte, apresentá-lo ao mundo, renovado.

Essa ideia de renovação associado ao escaravelho, foi levada tão a sério pelos egípcios que, aquele que trouxesse consigo uma imagem de um escaravelho, tinha garantido a persistência no ser e, se levasse essa imagem para a sepultura, teria certificado o direito ao renascimento para a vida.

Tido como amuleto preferido, os escaravelhos destinados aos mortos eram confeccionados com muito realismo, em pedra dura e colocados no lugar do coração, no peito das múmias, às vezes, incrustados numa moldura retangular. Estes amuletos já foram encontrados até no peito de certos animais tidos como sagrados pelo povo egípcio.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A Deusa de Parmênides

Karl Popper foi um teórico do conhecimento e um teórico da física quântica. Em seu livro “O Mundo de Parmênides”, Karl Popper nos brinda com uma profunda reflexão sobre a verdade objetiva e o conhecimento. A base de sua reflexão provém do poema de Parmênides “Da Natureza”, onde um filósofo pré-socrático apresenta sua cosmogonia como uma revelação de uma Deusa.

Aqui eu faço um parêntese com o livro “Contra história da Filosofia”, de Michel Onfray, onde o autor fala de outros filósofos pré-socráticos que foram “excluídos” da história da filosofia, evidentemente como um preâmbulo para as preferências de Michel Onfray. Ele não deve ter lido os originais ou não deve ter considerado o contexto destes pensadores antigos. Antes de qualquer evidencia, prova ou teoria, pensadores gregos apregoavam um materialismo e um atomismo, quase um prenúncio do niilismo de Nietsche. Quanto ao cacoete descrente de Michel Onfray, eu fiz minhas considerações anteriormente. Neste texto eu irei explorar o conceito de Karl Popper sobre o ser, o não-ser, verdade objetiva e a verdade conjectural.

Quando falamos de conhecimento, devemos nos referir ao conhecer, ou melhor, no latim, co-gnos-cere. No cerne do conhecimento encontramos a palavra grega gnose, algo que descrentes devem descartar como misticismo e superstição. Gnosis, episteme, aletheia, sophia, são todas palavras que tem em comum o saber e a verdade. Apenas podemos saber de algo quando aquilo que sabemos se aproxima da verdade. Esta é a verdade objetiva, que eu contrastaria da verdade conjectural.

Esta é a Via Dupla de Parmênides. A verdade objetiva é referente ao objeto, a verdade conjectural é referente ao aporte sensorial do observador. Popper chama a filosofia de Parmênides como sendo crítica ao sensualismo. A filosofia de Parmênides consiste na crítica ao ponto de vista que o conhecimento provém daquilo que se percebeu pelos sentidos, então cabe dizermos sentimentalismo, sensorialismo.

Então qual seria a fonte do conhecimento para se chegar próximo da verdade? Para desespero dos descrentes, Parmênides recorre à revelação da Deusa. Afinal, Parmênides diferencia o ser do não-ser, apenas podemos saber [conhecer] algo que é, o ser; o não-ser não pode ser conhecido porque não é real, mas uma ilusão. O conhecimento conjectural é o conhecimento oriundo dos sentidos, portanto, subjetivo, uma percepção aparente do real, pode até se aproximar da verdade, ser provável, plausível, semelhante, mas não é a verdade. A verdade, o objeto, a coisa em si, apenas pode ser conhecida pela razão. Mas onde fica a razão, se devemos descartar os organismos e os sentidos advindos destes? Onde fica a mente, o pensamento, o raciocínio, se nós temos que descartar o cérebro, visto que como órgão sensorial é sujeito ao engano da ilusão? Eis que aqui eu identifico a Deusa da revelação, não Diké, mas Maya. O ser, imutável, imóvel, que abarca o todo, do qual nós não podemos escapar, onde tudo é uma ilusão, inclusive a noção de tempo, espaço e movimento.

Para deixarmos a matrix, devemos superar a ilusão dos sentidos e as conjecturas que formulamos a partir deles. Ao estabelecermos a evidencia como sendo a verdade objetiva, estabelecemos um padrão, que é uma conjectura e, portanto, uma ilusão. Ao estabelecermos o resultado como sendo uma forma de estabelecer se um método é confiável, estabelecemos um padrão, que é uma conjectura e, portanto, uma ilusão. O real não pode ser definido a partir daquilo que tem evidência de existência, o real não pode ser compreendido a partir de mecanismos eficientes e eficazes. Nossas construções, a despeito de serem confiantes, eficazes, eficientes e práticas, são parte desse mesmo mundo de conjecturas, de ilusão, que apenas funcionam porque simulam ou reproduzem as forças e as leis da verdade objetiva, a natureza, a Deusa, Maya, imanente e transcendente.

sábado, 6 de dezembro de 2014

A Dança de Shiva

Eu escrevi no artigo “Pentagrama Invertido” este trecho:

“Essa relação espacial de que o que está em cima é superior ou dominante pode ser vista em muitas imagens católicas, onde o Santo pisa o Diabo, como também pode ser visto na estátua de Shiva sobre um demônio. Isso não faz o menor sentido, em termos espirituais, uma vez que “em cima” ou “em baixo” são referenciais humanos e terrenos. Para dar uma visão melhor deste simbolismo, eu gostaria de lembrar os muitos mitos em que o herói tem que superar ou vencer um animal (seu próprio ego material) para poder realizar uma missão. Entretanto o herói não pode matar o animal, senão mataria parte de si mesmo, tornando impossível de cumprir seu destino, levando o herói a assimilar, aceitar seu lado animal, dando ao herói os poderes mágicos necessários para terminar sua saga. Ou seja, Shiva não está “pisando” o demônio, mas sendo escorado por ele, dando a Shiva a base necessária para que Shiva seja Deus. A Matéria não está em confronto com o Espírito, nem está em sujeição, como querem muitos teóricos”.

Shiva e Kali são um Deus e uma Deusa do Hinduísmo difíceis de serem compreendidos pela mente ocidental. A dança de Shiva provoca o inverso da ação de Brahma, seus homens santos vivem em cemitérios e crematórios, sua fúria é temida por Vishnu e Brahma. Sua contraparte, Kali, é mais enigmática. Carinhosamente chamada de Kali Ma, ela enfrentou Raktabija, um Asura [demônio hindu] que estava desafiando os Deuses para lutar e Ela o derrotou comendo-o. Shiva é o Destruidor, Kali é a Devoradora.

Mircea Eliade e Joseph Campbell resumiram este mito perturbador e aterrador como o “mito do eterno retorno”. Em algum ponto, ciência e religião se tocam, quando falamos no princípio e fim do Cosmo, tal como nós o conhecemos. Tanto a religião quanto a ciência acreditam que o Cosmo irá se extinguir em algum momento, mas que outro aparecerá em seguida, das cinzas do Cosmo que se consumiu. Quem diria que a ciência acreditaria no mesmo princípio de que a existência física deste Cosmo é cíclica?

Voltemos a Shiva e a forma como Ele é representado, como se estivesse dançando, em cima de um Asura, dentro de um círculo, cuja a base que pode ser considerado o começo e o fim do círculo, senão a base da manifestação de Shiva.

Criação, Manutenção e Destruição, podem ser consideradas as formas em como a mente ocidental percebe a Trindade Brahma, Vishnu e Shiva. Shiva porta o tridente [trishula] que é o próprio simbolismo da Trindade e das três dimensões de existência. O círculo representa a ilusão da passagem de tempo das criaturas carnais enquanto o centro, imutável, como um espaço pleno, está Shiva regulando a manifestação material. Enquanto vivemos como forma material, somos perecíveis, como tudo que existe dentro da manifestação divina, incluindo o Cosmo. A dança de Shiva não tem a intenção de colocar o mundo físico, a matéria, a carne, como naturalmente malignas, como algo a ser expurgado, mas sim que devemos dominar nossas pulsões, usar o corpo para transcender a ilusão de Maya.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Apologia ao Frei Onfray

Humanos, por razões evolutivas, temos verdadeira alergia ao fortuito. Não foi por outro motivo que inventamos tantos panteões de deuses” – Hélio Schwartsman.

“Humanos, por razões evolutivas, por ter aversão ao fortuito, também inventaram as diversas ciências” – Profeta do Profano.

No mundo de Leucipo, há apenas átomos, vazios e movimentos efetuados pelos primeiros no segundo.

Esses átomos organizam-se e produzem simulacros. Eles existem em número ilimitado e, em associações relativas a sua forma, sua ordem e disposição, constituem a matéria e a substância de toda realidade, sem exceção”.

A questão permanece. Se a “matéria”, a “realidade”, é um “simulacro”, como decidimos o que é real, concreto, material e não imagem, ilusão?

Esses simulacros “são compostos de películas imperceptíveis que emanam dos objetos e penetram no corpo por seus orifícios. os átomos em suspensão no ar entram no interior do corpo pelo nariz, pelos olhos, pelos poros ou pelas orelhas. Os cheiros, os sabores as imagens, as impressões táteis, os sons são percepções que atraem essas estruturas em movimento no ar e seu trajeto do objeto e direção ao sujeito”. - Michel Onfray, Contra História da Filosofia, Volume I - As Sabedorias Antigas, pg. 42 – 43.

Tudo é átomo, inclusive o ar, então como os simulacros podem se movimentar sem resistência? Tudo é átomo, inclusive o corpo, o nariz, os olhos, os poros, as orelhas, que também são estruturas de simulacros construídas por átomos. O “corpo” não é um corpo. Tudo é átomo, inclusive a percepção? Tudo é átomo, inclusive o sujeito? Onde ficam os átomos ou o simulacro da percepção, do sujeito? A “percepção” não é uma percepção, o “sujeito” não é um sujeito.

E se nosso modelo de interpretação de nossas percepções não for suficiente para englobar todos os simulacros construídos pelos átomos? Não estaríamos limitando todo um Universo para nossa conveniência? E se os átomos também forem simulacros de partículas, energias e ondas que não tem existência física? Não estaríamos limitando toda uma Existência para nossa conveniência?

Eu sempre achei curioso como alguém define a realidade, geralmente dentro de um conceito arbitrário escolhido, um padrão, fora do qual todo aquilo que não se adequa é descartado.

O descrente fica ofendido quando vê que “ateísmo” é listado como uma religião. O caro dileto e eventual leitor irá ser condescendente comigo enquanto eu explico e analiso a verdade dessa acepção.

Antes de qualquer coisa, eu devo lembrar que religião não é simplesmente acreditar em Deus[es], eis o Budismo que exemplifica bem a questão. Religião é a crença de que um modelo, um padrão, um conhecimento, contém a verdade. A contestação ou crítica ao modelo, ao padrão, ao conhecimento é uma ofensa à verdade “anunciada”.

Diz o descrente: Para existir, para que se conclua pela existência, é preciso evidências. Quase sinto pena do descrente, pois ele concede à evidência uma qualidade transcendental. Algo só existe quando a evidência assim demonstra. A evidência está além do objeto, fato ou circunstância que ela supostamente representa.

Entretanto, o que são as evidencias, provas ou experiências nas quais a Ciência se escora para fazer suas afirmações? Primeiramente é necessário estabelecer um objeto de estudo, uma metodologia, uma coleta de material e trabalho de campo. Todos os itens são catalogados, separados e discriminados em suas características. A isto se chama amostragem, geralmente muito pequena se considerarmos o conjunto total. Esta amostragem é medida, pesada, dissecada para então ser colocada dentro de uma característica de conveniência. Então, cada evidencia até então apenas demonstra a existência da mesma dentro de um conjunto de realidade. O próximo passo é o de tentar comparar entre as amostragens e ver alguma similaridade, algum padrão entre as amostras ou resultados nos exames para, através de fórmulas e estatísticas, se definir o que se chama de leis da Ciência.

Qual é a "realidade" dos ateus? - A inexistência de Deus.

O Paraíso, para o ateu, é esta ilusão de ser mais racional, inteligente, lógico do que outras pessoas, simplesmente pelo fato de se dizer ateu.

O descrente, quando acuado em seus próprios argumentos, ou tropeçado nos exemplos que este mesmo usa para suas analogias, entra no mesmo raciocínio circular muito comum de se encontrar entre evangélicos.

O que se pode aprender ao percebermos a ciência como parte do contexto histórico é que mesmo ela é produto de uma concepção, de um padrão, de uma norma, de uma visão de mundo.

A maior dificuldade ao conceituar e ver quem são os Deuses e Deusas está em nossa percepção, que é finita e imprecisa, nós tendemos a ver a aparência/embalagem e não procuramos ver o conteúdo/essência.

Deus [ou pelo menos aqueles que sejam dignos deste título] não promete um mundo confortável e agradável, aprazível unicamente às necessidades humanas. Isto é aquilo que apenas "amigos imaginários" fazem. Discutir ou definir a existência de Deus nestes termos é incoerente, ilógico, irracional e um completo absurdo.

Há que se explicar muitas coisas quando se fala em Paganismo. Espera-se muitas coisas de nossos Deuses que Eles nunca, ao contrário do Deus Cristão, prometeram. Há que se ler na história, de forma séria e honesta, o que os Deuses Antigos nos davam, o que Eles esperavam de nós e o que nossos antepassados fizeram por Eles.

Uma coisa é certa: os Deuses Antigos nunca prometeram aos seus adoradores uma falsa paz, um falso amor, uma falsa salvação, uma falsa redenção. Eles nunca prometeram que a vida seria mais fácil ou mais branda se nós os adorássemos. Eles nunca nos condenaram nem nos julgaram por nossas falhas, jamais agiram como padrastos que apenas acusa a paternidade quando convém ou quando há uma obediência cega.

O que o ser humano (crente ou descrente) deveria perceber é que os mitos e das religiões não são (ou não deveriam ser) as donas da Verdade, mesmo porque a Verdade é dona de si mesma. Os mitos e as religiões são sistemas, como a Ciência, que aponta os indícios através dos quais se pode ter um vislumbre da Verdade.

A mitologia e a mitografia migrou do imaginário popular para a nobreza e para o clero, de onde vem a concepção moderna estereotipada da imagem do unicórnio. Sua origem e existência há muito foi integrada no imaginário, perdendo sua referência com a biologia das espécies e no mundo asséptico, estéril e mecanicista do ateu, qualquer coisa que não se encaixe ou não passe pelo escrutínio da ciência, o unicórnio é relegado a uma figura fantástica, impossível e improvável de existir, mera superstição e crendice, que deve ser expurgada. Impossível calcular a perda cultural que a humanidade teria se por acaso essa convicção se tornasse uma verdade absoluta e inquestionável.

No fundo, o transeunte apenas busca as mesmas coisas que nós. Quer respostas, quer conforto, quer segurança, quer ter uma ideia do que pode vir a seguir, quer ter a ilusão de que "sabe" de tudo e que tudo está sob seu controle.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A estética dos mitos

A noção de belo está presente nos mitos antigos. Este conceito varia conforme a cultura, a sociedade e a época. O que é belo sofre de variações dentro de uma mesma cultura conforme a idade de quem aprecia e de quem é apreciado.

Quando nos deparamos com os mitos clássicos, tal como herdamos de Hesíodo, devemos perceber que o mitógrafo reuniu os mitos conforme a concepção da época e refletiu a estética social e política da antiga Atenas. Chama a nossa atenção principalmente os mitos conturbadores e conflitantes dos Deuses anteriores aos Deuses Olimpianos, os Deuses Antigos, Deuses que chamamos Ctônicos.

Oriundos de Deuses ainda mais antigos e mais aterrorizantes e que geraram os Deuses do Olimpo, são Deuses abstratos, não tem uma definição, mas antes um fenômeno ou uma circunstância natural. Por sua essência e natureza obscura, são temidos e descritos muitas vezes como monstros. No entanto, sem a existência destes Deuses, sem que cumprissem com o que o Destino e a Fortuna lhes prescreveram, não surgiriam os Deuses dourados do Olimpo e não teria surgido a humanidade.

Um caso bem problemático e emblemático são as Górgonas, as Gréias e Equidna.

Fórcis é uma divindade marinha da mitologia grega. Filho de Pontos, deus do Mar e de Gaia, deusa da Terra. Casou-se com sua irmã Ceto, que engendrou filhos monstruosos: as Górgonas, Ladão, as Gréias e Equidna, a ninfa víbora. [Wikipédia]

Ceto é uma das divindades marinhas filhas de Pontos, Titã do Mar e de Gaia, a Mãe Terra. O nome Cetus, que significa "monstro", é como os antigos gregos denominavam as baleias, que para eles eram monstros marinhos.

Segundo Hesíodo, em sua Teogonia, Ceto era uma deusa extremamente bela que gerou filhas belas porém perigosas e odiadas pelos deuses.

Todavia, como é comum às divindades marinhas, Ceto possui um aspecto dual: enquanto era considerada dona de uma beleza divina, também eram vista com um monstro abissal capaz de gerar outros monstros iguais a si: as Górgonas, as Gréias e o dragão insone Ladão. Já Equidna, também sua filha, era uma criatura ambígua, com tronco de uma bela ninfa e cauda de serpente em lugar dos membros.

Ceto é então a personificação dos horrores e formas estranhas, coloridas e exuberantes que o mar pode produzir e revelar para os homens. [Wikipédia]

As primeiras gerações divinas tiveram diversas entidades monstruosas, porém em sua maioria eram apenas a personificação de alguns aspectos selvagens e violentos da natureza em seus instáveis primórdios. Os "monstros" propriamente ditos, por outro lado, eram somente feras violentas e perversas, nocivas à humanidade. Segundo a tradição, todos vieram da linhagem de Fórcis, gerados através de Equidna. [Grécia Antiga]

Górgonas eram divindades muito antigas e que já existiam quando Zeus assumiu o controle do Universo. Havia três Górgonas (Esteno, Euríale e Medusa) e três Gréias (Ênio, Pêfredo e Dino). [Grécia Antiga]

A Górgona é uma criatura da mitologia grega, representada como um monstro feroz, de aspecto feminino, e com grandes presas. Tinha o poder de transformar todos que olhassem para ela em pedra, o que fazia que, muitas vezes, imagens suas fossem utilizadas como uma forma de amuleto. A Górgona também vestia um cinto de serpentes entrelaçadas.

Na mitologia grega tardia, diziam-se que existiam três Górgonas: as três filhas de Fórcis e Ceto. Seus nomes eram Medusa, "a impetuosa", Esteno, "a que oprime" e Euríale, "a que está ao largo". Como a mãe, as Górgonas eram extremamente belas e seus cabelos eram invejáveis. [Wikipédia]

Medusa foi trazida para a Grécia da Líbia, onde as Amazonas líbias a adoravam como a Deusa Serpente. A Medusa (Metis) correspondia ao aspecto destruidor da Grande Deusa Tríplice Neith também chamada de Anath, Athene ou Athenna na África do Norte e Athana em1400 AC, em Minos, Creta.

A Medusa tinha originalmente o aspecto da deusa Atena da Líbia onde ela era a Deusa Serpente das Amazonas. Seu rosto era oculto e pavoroso. Estava escrito que nada nem ninguém poderia levantar seu véu, e todo aquele que se atravesse a fazê-lo morreria instantaneamente. Foram os gregos que separaram Medusa de Atena e as tornaram inimigas. [Alta Sacerdotisa]

Greias: Mulheres velhas, nome de Dino, Ênio e Péfredo, filhas de Fórcis e Ceto e irmãs das Górgonas, com as quais eram frequentemente confundidas. Já nasceram velhas. Todas as três, em conjunto, possuíam um só dente e um só olho, dos quais se serviam alternadamente. [Wikipédia]

O mito dessas Deusas ctônicas apenas nos é conhecido devido o mito de Perseu, um mito olímpico que se tornou mito da origem e identidade da Atenas antiga. Para a orgulhosa e soberana urbe, era uma questão social e política confirmar a supremacia de Atenas, confirmando a supremacia dos Deuses olimpianos. Essa tarefa coube a Hesíodo que recolheu, dos mitos dos Deuses Ctônicos, aqueles que o ajudassem na tarefa.

Os Gregos antigos não foram os únicos povos que tiveram um enorme trabalho em reformar sua mitografia para agradar os poderosos da época. Em diversas culturas e épocas é comum ver Deusas Serpentes serem mortas por um herói predestinado, por ser descendente do Deus Regente [ligado por descendência aos patriarcas e fundadores da urbe], mas isto não resolve o enigma da origem destes mitos, mais antigos, anteriores e pertencentes a algum povo dominado ou vencido pelos novos senhores.

Essa Legenda Áurea foi imitada pelos mais diversos senhores que tomaram o poder ao longo da história da humanidade e os casos mais patológicos são as religiões oriundas do monoteísmo abraãmico. Controversos e desafiadores, os Deuses Ctônicos nos lembram que as estruturas de poder, de ordem, de sociedade são artificiais e humanas. Negamos ou tentamos reformar esses mitos para se adequarem a uma visão de mundo limitada, como se estas estruturas, essas ilusões que criamos e produzimos, nos deixassem mais seguros, mas mesmo os mitos clássicos nos mostra que nossa carne foi feita das cinzas destes Titãs, ou seja, em nós habita a luz e a sombra. Nosso cosmo, nosso mundo, nossa natureza, nossa essência, são reflexos desta realidade divina. Assim como vemos o belo, vemos o mal apenas porque este está nos olhos de quem vê.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Dia de ação de graças

Hoje se comemora nos EUA o Thanksgiving Day, ou o Dia de Ação de Graças.

Diversos textos foram publicados no Patheos e essa comemoração americana ganhou espaço aqui na Republica de Bananas.

O Dia de Ação de Graças é um feriado celebrado nos Estados Unidos e no Canadá, observado como um dia de gratidão a Deus, com orações e festas, pelos bons acontecimentos ocorridos durante o ano.

O dia de Ação de Graças era comemorado na quarta quinta-feira do mês de novembro, na região da Nova Inglaterra, eram festivais em agradecimento às boas colheitas realizadas no ano. Por esta razão, o Dia de Ação de Graças é comemorado no outono (do hemisfério norte), após a colheita ter sido recolhida e atualmente é comemorado na última quinta-feira de novembro.

No Brasil, o então presidente Gaspar Dutra instituiu o Dia Nacional de Ação de Graças, através da lei 781, de 17 de agosto de 1949. Em 1966, a lei 5110 estabeleceu que a comemoração de Ação de Graças se daria na quarta quinta-feira de novembro. Esta data é lembrada por muitas famílias de origem americana, por algumas denominações Cristãs Protestantes, como a Igreja Luterana IELB (de origem americana), a Igreja Presbiteriana, a Igreja Batista, a Igreja Metodista, universidades confessionais metodistas e cursos de inglês. Também celebram igrejas evangélicas como a Igreja do Evangelho Quadrangular e algumas igrejas da Assembleia de Deus. [Wikipédia].

Para os pagãos, será Mabon [hemisfério norte] ou Lughnasadh [hemisfério sul], muito embora eu prefira simplesmente evitar usar termos na língua galesa e usar o bom português mesmo e celebrar a Festa da Colheita.

A tradição pede reunir os amigos para um jantar, a fim de celebrar a fartura e comemorar as conquistas.

Também é costume retirar um tempo para dar uma atenção à sua casa, como consertar objetos estragados, restabelecer os estoques ou simplesmente fazer uma faxina.

As noites começam a ficar mais longas, desde o Solstício de Verão; aproxima-se a época da partida do Deus para a Terra do Verão, deixando a sua própria semente no ventre da Deusa, de onde renascerá (mantendo o eterno ciclo do nascer-morrer-renascer). [Wikipédia].

Algumas comunidades cristãs estão divulgando eventos para esta Celebração da Colheita, mas eu não vi um anúncio da Comunidade Pagã Brasileira.

Existem festa e celebrações pela colheita em diversos povos e países, na atualidade especialmente na antiguidade. Na tradição, a Celebração da Colheita era marcada pelo cultivo do trigo, mas no Brasil, com nossas dimensões continentais, temos diversas colheitas para celebrar. A mais conhecida é, sem dúvida, a Festa de São João. Devemos dar graças pelo que recebemos, em abundância, da natureza, pela bênção dos Deuses.

Isto é algo que eu aprendi durante o período de treinamento e guardo com carinho. Devemos fazer uma lista das bênçãos que recebemos. Somos ágeis para nos lembrar das dificuldades, mas lentos em agradecer as bênçãos. Parece um tanto cristão, mas a origem é bem pagã. A tudo dai graça e celebrai.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O ideal elevado

Dizemos: "Mantenha puro seu ideal mais elevado”. Mas qual é nosso ideal mais elevado? Como mantê-lo puro? O que pode conspurcar o ideal mais elevado? Por que perdemos nosso ideal elevado?

Usando o oráculo virtual [Google] achei esta resposta:

Na raiz de todos os desejos é o desejo de viver o seu ideal mais elevado. A imagem ideal que você tem para si mesmo, que você quer expressar e experimentar, é o mais alto ideal que você deseja manifestar em sua realidade viva. Você vai notar que cada vez que você dissuadir a partir deste ideal, nunca é bom para o seu ser. Se você está sempre alinhado com o seu eu ideal, em pensamentos e ações, você nunca vai se sentir em conflito dentro de si mesmo. É só quando você acaba vagando em pensamentos, ou toma medidas, que estão em conflito com o seu ideal mais alto, que você vai sentir uma sensação de conflito dentro de você.

A única razão pela qual um ser humano decide viver abaixo de seu/ sua "imagem ideal" é por causa de pensamentos limitantes (pensamentos baseados no medo) criados a partir de um lugar de ignorância de sua verdadeira natureza e seu verdadeiro poder. Quando você percebe plenamente o poder do seu ser, você não vai mais sucumbir a viver abaixo do seu ideal mais elevado. Você é um criador poderoso e você pode criar qualquer realidade que você deseja experimentar, por sua crença em sua manifestação. Quando você tem esse poder, não há desculpa para você nunca se rebaixar abaixo do ideal mais alto que você pode imaginar para si mesmo.

Muita gente sente falta de dignidade em suas vidas, porque eles sentem que têm de viver abaixo do seu ideal, a fim de "espremer a vida" ou de sobreviver de alguma forma. Enquanto você não vive seu ideal, não é possível para você se sentir digno de seu ser. Sua dignidade está profundamente enraizada com a imagem que você tem de mais alto ideal que você deve estar vivendo. Quando suas ações/pensamentos não estão alinhadas com esse ideal mais alto, você sente falta de dignidade em si mesmo. Algumas pessoas, infelizmente, decidir desistir de seu mais alto ideal em uma tentativa de agradar aos outros ou para atender às expectativas de outra pessoa - a única razão pela qual eles fazem isso é porque eles sentem que precisam “lutar”, e fazem coisas que não gostam de fazer, a fim de conseguir atravessar a vida. Enquanto você acredita neste pensamento de ausência, não é possível se alinhar com o seu ideal mais elevado e, portanto, fará com que você leve uma vida conflituosa.

Quando você não vive o seu mais alto ideal, você está vivendo uma vida "medíocre" na melhor das hipóteses. Um monte de gente se resignou a viver uma vida medíocre por causa de sua forte crença nos pensamentos sem fundamentos. Eles se sentem "derrotados" pela vida, e desistem diante de suas circunstâncias, porque eles acham que é muito difícil alinhar os seus pensamentos com seus desejos, em meio à negatividade de sua realidade. Pode ser que você está vivendo uma realidade altamente negativa, onde você se sente enjaulado e preso atualmente, mas agora que você está percebendo a verdade de sua natureza (o seu poder como um criador), não há desculpa para aceitar a derrota ou a desistir de seus sonhos/desejos, em seu mais alto ideal.

Os pensamentos que você dá atenção aos irão moldar a sua realidade e este é o seu poder. Mas se você optar por se concentrar sobre a limitação/pensamentos negativos, em seguida, esse mesmo poder pode se tornar sua maior desgraça porque esta atenção irá atrair uma realidade limitada. As pessoas que conseguiram superar as circunstâncias mais difíceis, para viver a vida de seu mais alto ideal, são os únicos que desenvolveram a força de concentrar seus pensamentos, desenvolvendo uma convicção no bem-estar de vida e fazem um compromisso de ficar alinhados com o seu mais alto ideal . Sua realidade começa com a sua mente, é sempre de dentro para fora, é sempre sobre o que está acontecendo "dentro" de você e não o que está acontecendo fora de você. Pare de dar atenção aos pensamentos limitantes, não importa o quão atraente seu convite pode ser e assumir o compromisso de permanecer fiel ao seu ideal mais elevado - a vida sempre vai trabalhar para você, quando você ficar resolvido a nunca defender a negatividade.

Fonte: Calmdownmind

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Em nome da Deusa

Eu estou tentando prosseguir na minha jornada e superar minha mania em criticar ao invés de promover. Mas é difícil aturar cada vez que alguma figura pública do Paganismo escreve um discurso como se sua opinião fosse um texto sagrado.

Eu não consigo aceitar o discurso de Erick Dupree, assim como todo esse monoteísmo que prevalece no Dianismo e em outras “religiões da Deusa”.

Eu não posso aceitar o discurso de Aidan Kelly que procura conciliar o Paganismo com o Cristianismo.

Eu não posso aceitar que pagão algum faça o mesmo tipo de discurso que um cristão [padre ou leigo] faria.

Então se meus caros diletos e eventuais leitores me desculpam, eu vou criticar o texto de Aidan Kelly que, como se fosse um sacerdote cristão, ousa afirmar que fala em nome da Deusa.

Aidan Kelly diz, em nome da Deusa:

Eu sou o Um e os Muitos. Estou em cada Deus e cada Deusa. Todos os caminhos são meus”.

Monoteísmo puro. Dion Fortune foi desafortunada ao dizer que todos os Deuses são o Deus e que todas as Deusas são a Deusa. Aidan Kelly acaba de transformar a Deusa Estrela em um Jeová travestido. Nem todos os caminhos são da Deusa, nem todos os caminhos levam a Roma.

Eu sou a realidade por trás de todas as religiões, e toda a fé vem de conhecer-me”.

Considerando os aspectos das religiões abraâmicas, com o sexismo, a misoginia, o machismo e o patriarcado, a presença da mulher e mesmo da Deusa é quase inexistente, o que torna essa afirmação totalmente errada.

Todo o poder no Ofício é meu e vem de mim. Ele vem através de você, não de você”.

Diversos ramos do Paganismo e da Bruxaria discordam dessa frase. O Ofício não seria conhecido nem praticado sem o poder e a presença do Deus.

Eu me dou a cada um de vocês, pois, por si mesmo, você nunca poderia alcançar-me. Eu fiz por você o que você nunca poderia ter feito para si mesmo, pois eu te amo como uma mãe ama seu filho primogênito, que é o que você é, como todo ser é”.

Este certamente é um trecho inspirado no trecho da Carga da Deusa que diz: “E você que busca conhecer-me, saiba que sua procura e ânsia serão em vão, a menos que você conheça os mistérios: pois se aquilo que busca não se encontrar dentro de você, nunca o achará fora de si. Saiba, pois, eu estou com você desde o início dos tempos, e eu sou aquela que é alcançada ao fim do desejo”. No entanto, Aidan Kelly esqueceu da presença do Deus no mistério da Wicca Tradicional.

Honre a memória de meu servo Gerald Gardner, para ele restaurou minha adoração em sua Terra”.

Honre as forças com as quais ele me serviu e o grande trabalho que ele realizou. Não se incline sobre suas fraquezas humanas”.

Algo que o próprio Aidan Kelly não faz. Ele é uma persona non grata nos círculos tradicionais pelos livros de autoria dele atacando Gerald Gardner.

Todos os que seguem o seu caminho levará o seu nome. Não estabeleçam leis humanas para se separarem”.

Isto deixa de fora muitos grupos que se identificam como sendo Wicca sem o ser.

Todos os que optam por aceitar meus presentes e me seguem são seus irmãos e irmãs. Rejeitar qualquer um deles é rejeitar-me”.

Aidan Kelly fundou a NROOGD almejando receber reconhecimento e aceitação dos sacerdotes e sacerdotisas wiccanos. Esta linha pode ser entendida como uma tentativa desesperada de sancionar seus delírios.

Honre a memória de minha serva Doreen Valiente, poeta e sacerdotisa, pois ela falou com a minha voz e deu-lhe as minhas palavras. Estude-as, compreenda-as, viva-as”.

Isto também deixa de fora muitos grupos que se identificam como sendo Wicca sem o ser.

Dê meus dons livremente, dê a todos, porque eu sou a Deusa de toda a humanidade. Não presuma escolher quem pode receber os meus dons. Sou eu quem escolhe, não você”.

Eu discordo dessa postura de fazer da Wicca uma religião de massas.

Chamem-me para ter força para viver com honra e compaixão”.

Como bom praticante e estudante da Wicca Tradicional, eu chamo também ao Deus para a mesma intenção.

Ame a si mesmo; ame os outros até mais do que a si mesmo”.

A autoria dessa frase causaria uma briga em muitos caminhos espirituais.

Nunca deixem de aprender, porque eu lhe direi o que você nunca poderia saber por seus próprios esforços”.

Este é um trecho certamente inspirado na Carga da Deusa que diz: “Haverá assembleias, aos que anseiam aprender toda bruxaria, mas ainda não desvendaram seus profundos segredos. A estes eu ensinarei coisas ainda desconhecidas”. A Wicca tem seu mistério e seu caráter extático. No entanto, na história dos cultos de bruxas, essa função cabe ao Deus.

Abra o seu coração e você vai encontrar-me. Eu não vivo em outro lugar. Eu vivo dentro de você. Eu sou mais você do que você é”.

Este é um trecho certamente inspirado na Carga da Deusa que diz: “Pois eu sou a chama que queima no coração de todo homem e no cerne de toda estrela”. No mistério contido na Wicca Tradicional, o acesso e caminho para este coração são guardados pelo Deus.

Eu sou o conhecimento que habita em vós, porque eu sou alegria, sou amor, sou êxtase. Busque-me através da alegria, através da intuição, o que seu coração lhe diz é mais importante”.

Em diversas partes dos rituais da Wicca dizemos que a alegria e o êxtase são garantidos em vida, nesse mundo, tanto pela Deusa quanto pelo Deus.

Você não pode encontrar-me se você não me procura, nem se você me procurar, porque eu estive sempre aqui. Venho sem aviso prévio e derrubarei sua porta quando você menos me esperar”.

Um texto que repete o trecho da Carga da Deusa onde Ela diz que se não encontrarmos o que procuramos dentro de nós, não iremos encontrar fora de nós. Entretanto o Deus é quem é o Condutor, o Guardião da Porta e do Caminho.

O seu ego é quem impede de ver que eu estou aqui e sempre estou fazendo o que você precisa, a fim de conhecer-me. Saia do meu caminho; apenas a sua ignorância o impede de conhecer-me”.

Aidan Kelly fundou sua própria ordem, aviltou o nome de Gerald Gardner, deturpou, por razões e agendas pessoais, diversos princípios da Wicca. Ele é uma figura que infelizmente representa muitas das figuras que aqui no Brasil se arrogam o título de sacerdote, com o único propósito de formar um verdadeiro culto à personalidade em torno de si. Isto é ego, isto não é servir ao Deus e à Deusa.

sábado, 15 de novembro de 2014

Contra o Método

Autor: Paul Feyerabend

Capítulo XVIII

Dessa forma, a ciência aproxima-se do mito, muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor. Chama a atenção, é ruidosa e impudente, mas só inerentemente superior aos olhos daqueles que já se hajam decidido favoravelmente a certa ideologia ou que já a tenham aceito, sem sequer examinar suas conveniências e limitações. Como a aceitação e a rejeição de ideologias devem caber ao indivíduo, segue-se que a separação entre o Estado e a Igreja há de ser complementada por uma separação entre o Estado e a ciência, mais recente, mais agressiva e mais dogmática instituição religiosa. Tal separação será, talvez, a única forma de alcançarmos a humanidade de que somos capazes, mas que jamais concretizamos.

A idéia de que a ciência pode e deve ser elaborada com obediência a regras fixas e universais é, a um tempo, quimérica e perniciosa. É quimérica pois implica visão demasiado simplista das capacidades do homem e das circunstâncias que lhes estimulam ou provocam o desenvolvimento. E é perniciosa porque a tentativa de emprestar vigência às regras conduz a acentuar nossas qualificações profissionais em detrimento de nossa humanidade. Além disso, a idéia é prejudicial à ciência, pois leva a ignorar as complexas condições físicas e históricas que exercem influência sobre a evolução científica. Torna a ciência menos plástica e mais dogmática: cada qual das regras metodológicas se vê associada a pressupostos cosmológicos, de modo que, recorrendo à regra, damos por admitido que os pressupostos sejam corretos. O falseamentismo ingênuo dá por admitido que as leis da natureza se apresentem de maneira clara e não oculta por perturbações de magnitude considerável, O empirismo aceita que a experiência sensória seja melhor espelho do mundo que o pensamento. O culto do argumento tem como certo que os manipuladores da Razão oferecem resultados melhores que os do jogo incerto de nossas emoções.

A alteração da perspectiva decorrente dessas descobertas conduz, uma vez mais, ao longamente esquecido problema do mérito da ciência. A ele conduz pela primeira vez na história moderna, pois que a ciência moderna se impôs a seus oponentes, não os convenceu.

A ciência dominou pela força, não através de argumentos(isso é especialmente verdadeiro no que se refere às primeiras colônias, onde a ciência e a religião do amor fraternal foram introduzidas como algo natural, sem consulta aos habitantes e sem lhes ouvir argumentos). Hoje, damo-nos conta de que o racionalismo,inclinando-se para a ciência, não pode ser de qualquer valia em face da pendência entre ciência e mito e damo-nos conta, ainda, graças a investigações de caráter inteiramente diverso, que os mitos são muito mais válidos do que os racionalistas têm ousado admitir.

Somos, assim, forçados a suscitar a questão do mérito da ciência.

Exame do assunto revela que ciência e mito se superpõem sob muitos aspectos, que diferenças aparentemente perceptíveis são, com freqüência, fenômenos localizados que, em outros pontos, se transformam em similaridades e que as discrepâncias fundamentais resultam antes de propósitos diversos do que de métodos diferentes a tentarem alcançar um único e mesmo fim ‘racional’.

A busca de teoria é busca da unidade subjacente à complexidade que se percebe. A teoria dispõe as coisas em um contexto causal mais amplo que o contexto causal propiciado pelo senso comum: tanto a ciência quanto o mito recobrem o senso comum de uma superestrutura teorética.

Há teorias de diferentes graus de abstração e elas são utilizadas de acordo com os diferentes requisitos de explicação que se colocam.

A construção de teoria consiste em partir os objetos do senso comum para reunir os fragmentos de maneira diversa. Os modelos teoréticos nascem da analogia, mas gradualmente se distanciam do padrão em que a analogia se apoiava.

As idéias centrais do mito são vistas como sagradas. Teme-se que sofram ameaças. ‘Quase nunca se depara com uma confissão de ignorância’ e eventos ‘que fogem fortemente às linhas de classificação admitidas pela cultura em que ocorrem’ despertam a ‘reação do tabu’. As crenças básicas são protegidas por essa reação e também pelo artifício das ‘elaborações secundárias’ que, em nossos tempos, são séries de hipóteses ad hoc. A ciência, de outra parte, se caracteriza por um ‘ceticismo essencial’; ‘quando as falhas se acumulam rapidamente, a defesa da teoria se transforma inexoravelmente em ataquè a ela’. Isso é possível devido à ‘abertura’ do empreendimento científico, devido ao pluralismo das idéias que encerra e também devido a que ‘tudo quando escapa ou deixa de amoldar-se ao estabelecido sistema de categorias não é visto como aterrador, como algo a ser isolado e repudiado. É, pelo contrário, um ‘fenômeno’ intrigante — ponto de partida e desafio para a criação de novas classificações e de novas teorias’. Um estudo de campo a propósito da ciência leva-nos a descortinar quadro muito diverso.

Revela esse estudo que, embora alguns cientistas possam agir segundo o esquema descrito, a grande maioria segue trilha diferente.

O ceticismo é mínimo; dirige-se contra a maneira de ver dos oponentes e contra ramificações secundárias das idéias fundamentais que se defende, mas nunca se levanta contra as próprias idéias básicas. Atacar idéias básicas desperta reações de tabu que não são menos intensas do que as reações de tabu nas chamadas sociedades primitivas. As crenças básicas são protegidas por essa reação e, como vimos, por elaborações secundárias; e tudo quanto deixa de acomodar-se ao estabelecido sistema de categorias é declarado incompatível com tal sistema ou é encarado como algo escandaloso ou, mais freqüentemente, é simplesmente considerado como não-existente. A ciência não está preparada para fazer do pluralismo teorético o fundamento da pesquisa.

O dogmatismo pesado a que fiz alusão não é apenas um fato, mas desempenha também importantíssima função.

Sem ele seria impossível a ciência. Pensadores ‘primitivos’ mostraram maior percepção da natureza do conhecimento do que seus ‘esclarecidos’ rivais filosóficos. Torna-se necessário, pois, reexaminar nossa atitude em face do mito, da religião, da magia, da feitiçaria e em face de todas aquelas idéias que os racionalistas gostariam de ver para sempre afastadas da superfície da Terra (sem ter-lhes prestado maior atenção — típica reação de tabu).

A ciência reinar soberana porque seus praticantes são incapazes de compreender e não se dispõem a tolerar ideologias diferentes, porque têm força para impor seus desejos e porque usam essa força como seus ancestrais usaram a força de que eles dispunham para impor o cristianismo aos povos que iam encontrando em suas conquistas.

Contudo, a ciência não tem autoridade maior que a de qualquer outra forma de vida. Seus objetivos não são, por certo, mais importantes que os propósitos orientadores de uma comunidade religiosa ou de uma tribo que se mantém unida graças a um mito. De qualquer modo, não há por que esses objetivos possam restringir as vidas, os pensamentos, a educação dos integrantes de uma sociedade livre, onde cada qual deve ter a possibilidade de decidir por si próprio e de viver de acordo com as crenças sociais que tenha por mais aceitáveis. A separação entre Estado e Igreja deve, portanto, ser complementada pela separação entre Estado e ciência.

No espírito de cientistas e de leigos, a imagem da ciência do século XX é decorrência de milagres tecnológicos, tais como a televisão em cores, as viagens à Lua, o forno a raios infravermelhos e de informações vagas, mas nem por isso de menor força — algo como histórias fantasiosas — a propósito de como surgem tais milagres.

Segundo essas histórias fantasiosas, o êxito da ciência é o resultado de combinação sutil, mas cuidadosamente dosada, de inventividade e controle. Os cientistas têm idéias e dispõem de métodos especiais para desenvolvê-las. As teorias da ciência foram aprovadas no teste do método. Proporcionam melhor visão do mundo que idéias não passadas pelo crivo desse teste.

A história fantasiosa explica por que a sociedade moderna dá à ciência tratamento especial e por que lhe concede privilégios que não beneficiam outras instituições.

A razão desse tratamento especial está, sem dúvida, em nosso pequeno conto de fadas: se a ciência encontrou método que transforma concepções ideologicamente contaminadas em teorias verdadeiras e úteis, a ciência não é mera ideologia, porém medida objetiva de todas as ideologias.

Contudo, o conto de fadas é, como vimos, falso. Não há método especial que assegure o êxito ou o torne provável. Os cientistas não resolvem os problemas por possuírem uma varinha de condão — a metodologia ou uma teoria da racionalidade — mas porque estudaram o problema por longo tempo e conhecem bem a situação, porque não são tolos e porque os excessos de uma escola científica são quase sempre contrabalançados pelos excessos de alguma outra escola.

No fundo, pouquíssima diferença há entre o processo que leva ao anúncio de uma nova lei científica e o processo de promulgação de uma nova lei jurídica: informa-se a todos os cidadãos ou aos imediatamente envolvidos, faz-se a coleta de ‘fatos’ e preconceitos, discute-se o assunto e, finalmente, vota-se.

Sem embargo, enquanto uma democracia faz algum esforço para esclarecer o processo, de sorte que todos o entendam, a ciência ou o esconde ou o distorce, para que ele se Amolde a seus sectários interesses.

Só os fatos, a lógica e a metodologia decidem — é o que nos diz o conto de fadas. Mas como decidem os fatos? Que função desempenham no avanço do conhecimento?

Não podemos fazer nossas teorias deles derivarem. Não podemos apresentar um critério negativo, dizendo, por exemplo, que as boas teorias são as teorias passíveis de refutação, mas não contraditadas pelos fatos.

A sugestão de que uma boa teoria explica mais que suas oponentes também não é admissível.

Voltando-nos para a lógica, damo-nos conta de que nem mesmo seus mais simples requisitos são satisfeitos pela prática científica e não poderiam ser satisfeitos, em razão da complexidade do material. As idéias de que os cientistas costumam valer-se para apresentar o conhecido e avançar rumo ao desconhecido raramente estão em estrita concordância com as injunções da lógica ou da matemática pura e a tentativa que se fizesse para levá-las a essa concordância roubaria da ciência a flexibilidade sem a qual é impossível alcançar progresso.

Anotemos: só os fatos não bastam para levar-nos a aceitar ou rejeitar teorias científicas, pois a margem que deixam ao pensamento é demasiado ampla; a lógica e a metodologia eliminam demais, são demasiado acanhadas.

Mais pormenorizada análise dos lances de êxito no jogo da ciência mostra, indubitavelmente que há uma larga faixa de liberdade a pedir multiplicidade de idéias e a permitir a aplicação de processos democráticos, mas que está obstruída pela política e pela propaganda do poder. Esse o ponto em que o conto de fadas do método especial assume sua função decisiva. Oculta a liberdade de decisão que os cientistas criadores e o público em geral têm, mesmo no que se refere às mais sólidas e avançadas partes da ciência, antepondo-lhes a repetição dos critérios ‘objetivos’ e assim protegendo os grandes nomes (os Prêmio Nobel; os chefes de laboratórios de organizações como a Associação Médica Americana, de escolas especiais; os ‘educadores’, etc.) contra as massas (os leigos; os especialistas em campos não-científicos; os especialistas em outros ramos da ciência): só importam os cidadãos que foram expostos às pressões das instituições científicas (sofreram longo processo de educação), que sucumbiram a essas pressões (foram aprovados no exame) e que estão, agora, firmemente convencidos da verdade do conto de fadas. Dessa maneira os cientistas se iludiram a si próprios e aos demais com respeito à tarefa a que se dedicam, sem, contudo, virem a sofrer qualquer real desvantagem: dispõem de mais dinheiro, mais autoridade e exercem maior atração do que merecem — e os mais estúpidos processos e mais risíveis resultados que alcançam em sua esfera de atuação vêm rodeados de uma aura de excelência. É tempo de reduzi-los às devidas proporções e de atribuir-lhes mais modesta posição na sociedade.

O processo não se restringe à história inicial da ciência moderna. Está longe de ser simples conseqüência do primitivo estágio das ciências, nos séculos XVI e XVII. Ainda hoje, a ciência pode tirar e tira vantagem da consideração de elementos não científicos.

Combinando essa observação com a percepção de que a ciência não dispõe de método especial, chegamos à conclusão de que a separação entre ciência e não-ciência não é apenas artificial, mas perniciosa para o avanço do saber. Se desejamos compreender a natureza, se desejamos dominar a circunstância física, devemos recorrer a todas as idéias, todos os métodos e não apenas a reduzido número deles. Assim, a asserção de que não há conhecimento fora da ciência — extra scientiam nulla salus — nada mais é que outro e convenientíssimo conto de fadas.

A ciência moderna, de outra parte, não é tão difícil e tão perfeita quanto a propaganda quer levar-nos a crer. Uma disciplina, como a física, a medicina ou a biologia, só parece difícil porque é mal ensinada, porque as lições comuns estão repletas de material redundante e porque a ela nos dedicamos já muito avançados na vida.

Quão freqüentemente não é a ciência aprimorada e impelida a novos caminhos por influências não-científicas!

O caminho que leva a tal objetivo é claro. Uma ciência que insiste em ser a detentora do único método correto e dos únicos resultados aceitáveis é ideologia e deve ser separada do Estado e, especialmente, dos procesos de educação.