domingo, 31 de maio de 2015

O falo e o chifre

A proposta deste artigo é apresentar uma matriz figural para o masculino, determinada a partir das representações parietais e escultórias do Paleolítico, em confronto/conjunto com o feminino, na qual a protofiguratividade (conjunto de traços mínimos) é recorrente e dela se conota um sentido, um significado pleno de valor para a sociedade do período, que poderá ser reconhecida ao longo das eras em sua essência, embora recoberta pelos novos valores culturais.

A partir da distinção feita entre a representação do masculino e do feminino é possível estabelecer uma leitura significativa das representações parietais e escultórias encontradas no Paleolítico. Enquanto a figura da mulher ocupa o centro das atenções e representa a grande Deusa Mãe, o masculino é representado, principalmente pelos machos animais, privilegiando as regiões de força/virilidade, o dorso e o sacro (características sexuais primárias – órgãos reprodutores); a cabeça alongada e os chifres, que, como o corpo, têm inscritos os elementos de força, tomados aqui como arma de defesa ou de ataque e, portanto, de virilidade. A sobreposição de imagens de animais machos às figuras femininas, ou sua representação nas paredes dos abrigos onde as estatuetas das vênus foram encontradas, indica uma relação entre esses animais e as vênus.

O estudo do simbolismo sexual em contextos pré-históricos

Não se trata de ignorar os aspectos tecnológicos ou materiais da vida em sociedade, mas de considerar que são de igual importância as representações sobre a vida social, em qualquer época e lugar, mas tanto mais no que se refere aos povos do passado. Essas representações simbólicas seguem lógicas que são diversas daquelas derivadas do racionalismo iluminista e que caracterizam a ciência moderna. Os sistemas de crenças de cada grupo humano são meios de compreensão do mundo, de modo que, quando os azandes, por exemplo, tomam a bruxaria como uma realidade, essa explicação mágica se torna não apenas lógica e racional, como fornece um significado moral para o que acontece na sociedade.

Cremos que não e isto nos leva ao segundo aspecto da nossa abordagem sobre o passado mais antigo do seres humanos e suas representações: a sexualidade. De fato, haveria algo mais típico da nossa época do que a preocupação com o sexo? Não, por certo, no sentido de que a modernidade seja mais dedicada ao relacionamento sexual do que outras épocas ou sociedades: de fato, não há prova alguma de que, nesses termos, sejamos os modernos ocidentais mais propensos a tais atos do que nossos antepassados. O que nos caracteriza é a invenção da narrativa sobre o sexo, ao qual damos o nome de sexualidade, e somos, aí sim, prolíxos e prolíficos.

Preocupação central não é pouco e isso resulta dos movimentos sociais como o feminismo, mas também pela diversidade em geral. A própria discussão da masculinidade, neste contexto, adquiriu contornos novos e relevantes, em direção à discussão das identidades multifacetadas, plurais e mesmo conflitantes. Os temas relativos à sexualidade e ao gênero foram particularmente relevantes para a revisão do estudo da mais alta pré-história. Neste artigo, tratamos de uma forma de representação pré-histórica bem conhecida e estudada, mas pouco explorada em seus aspectos simbólicos a um só tempo religiosos e sexuais. Para isso, nos valeremos de uma perspectiva semiótica que permita discutir alguns aspectos do simbolismo dos nossos antepassados mais distantes.

Do chifre ao falo

A representação do macho (animal e/ou homem), diversamente das vênus, apresenta uma circularidade nas transformações sêmicas, ou seja: o lexema chifre, após as transformações, recai sobre o lexema falo, e vice-versa. Ambos (falo e chifre) apresentam o mesmo percurso, só que inversamente, confirmando a leitura antropológica do consorte da Deusa como veículo de morte por excelência e, ao mesmo tempo, veículo fertilizado. Dessa forma, o círculo em que ele se inscreve é caracterizado pelas transformações classemáticas e sêmicas por que passa a forma cilindróide e que levam do animal ao cutural, retornando ao animal/humano.

A análise de diversas representações animais, como o Bisão de Altamira, o Touro de Lascaux e outros machos sobrepostos às ancas/sexo das imagens femininas, levou a definição do conjunto sêmico e ao seguinte percurso temático-figurativo.

Compartilhando dos mesmos núcleos sêmicos e semas contextuais, a flecha e o falo parecem entrar em oposição pelo fato de a flecha ser um objeto de perfuração, cultural, que gera a morte, enquanto o falo é um objeto de penetração, natural (humano/animal), que gera a vida. Mas essa oposição é superficial, pois tanto a flecha pode gerar a vida – alimento e proteção do homem – quanto o falo pode gerar a morte – a reprodução humana como fator de destruição/caça de um maior número de animais e coleta de maior número de frutos, portanto, “morte” da natureza. Assim sendo, os termos chifre, flecha e falo assumem uma equivalência nos princípios de gerar e proteger a vida, mas também no perigo mortal que representam.Ao estabelecer essa equivalência o homem paleolítico criou uma fratura, uma metamorfose radical, na qual as figuras do mundo engendradas pela percepção se transmutam em figuras de sentido; ele transferiu os valores de um objeto a outro, num processo de fusão sincrética de dois termos opostos: natural x cultural, que leva ao mítico, ou seja, há, a princípio, uma negação parcial do processo natural, visto aqui como não consciente, não abstrato, e a afirmação de um “sobre-natural”, ou semi-simbólico: o chifre, a flecha/bastão e o falo equivalem-se e representam um todo que é da ordem do mítico – a agressividade/força/pujança sobre-natural capaz de fertilizar a Terra, gerar vida, mas também a morte.

A equivalência entre arma/falo é reforçada por outra representação maciça das cavernas paleolíticas – as chagas/vulvas sangrando sobre o dorso dos animais ou junto a falos. Um dos exemplos mais originais está na gruta de Fontanet: “num grupo de gravuras que compreendem vários bisões, vê-se nitidamente gravada uma estrutura vulvar simples sobre o dorso de um deles”. A vulva que abre o flanco do animal é um símile da chaga ou ferida feita pela flecha, do mesmo modo como o falo rompe o corpo feminino, “ferindo-o” e fazendo-o sangrar.

O intercâmbio entre caça e cópula > flecha/chaga <=> falo/vulva se estabelece por serem essas duas práticas geradoras de vida para a espécie humana e destruição/morte para a espécie animal: a caça mata o animal, enquanto a cópula (humana) põe em cena um aumento da população, gerando a necessidade de maior exploração do meio, criando um círculo de interdependência homem–natureza que terá de ser equilibrado.

A escolha de animais portadores de chifres, fortes e agressivos para consortes da Deusa Mãe decorre dessa equivalência entre o falo e o chifre. Esses animais cornudos assumem, na perspectiva paleolítica, uma dupla virilidade, sendo, portanto, mais agressivos e pujantes que os animais destituídos de cornos e mais competentes para fertilizar a grande–fêmea–terra.

É nessa ambivalência de vida/morte x gerar/destruir que se inscrevem as figurativizações do feminino: mulher, triângulo púbico, vulva – Deusa Mãe; e do masculino: animal cornudo, falo/flecha – consorte da Deusa. Signos bipolares, semi-simbólicos, míticos, que somados à percepção do ciclo da natureza, das fases da Lua, estabelecem a primeira hierogamia e ordenam o mundo a partir dos princípios macho e fêmea e de sua união – cabendo à fêmea a ligação com a Terra e ao macho, com a força animal e astral, a ligação com o Sol (fogo) e seus raios, com o relâmpago, com a chuva, que, como o sêmen, fecunda a terra.

A representação do homem como um símile animal, mesclando suas características ao do cornudo, por um lado visa atrair para o homem a potência animal, quer seja ela sexual, quer de força/agrecividade/ferocidade e, por outro, o homem “encarna” o animal, assume-se como Natureza – o homem do período agrupa os semas/signos de força de cada imagem, a virilidade está diretamente ligada à ferocidade animal, o falo e os chifres são o motivo fulcral para o estabelecimento do perfil do macho, portanto, o homem vem mascarado sob os traços do animal, como na cena gravada em uma das paredes da gruta de Tuc d’Audoubert, Ariège, na qual duas fêmeas parecem se seguir: uma de rena, outra de bovídeo, esta última com o sexo muito aparente; atrás destas, um homem de pé trajado como um animal. O homem à direita, caracterizado como animal, porta uma máscara com chifres, além da pele do animal sobre o corpo, nas mãos traz um arco musical, indício de uma magia de caça. A correlação aqui é óbvia, o sexo exposto da segunda fêmea e o homem com aspecto animal indicam a ligação entre a caça e a cópula, e vice-versa. Em todas essas representações observa-se o desejo de estimular a fecundidade/fertilidade da natureza, a sorte ou sucesso na caça, de beneficiar a sobrevivência do grupo.

Autores: Flávia Regina Marquetti & Pedro Paulo Abreu Funari

Obra: Reflexões sobre o falo e o chifre: por uma Arqueologia do Masculino no Paleolítico

sábado, 30 de maio de 2015

Os sabbats portugueses

Como se viu até agora, apesar da existência da metamorfose, dos demônios familiares, dos pactos demoníacos, verbais ou escritos, da alusão a relações sexuais com o Diabo não ocorre, na feitiçaria colonial, menção aos famosos sabbats, tão comuns na Europa. Em Lisboa, entretanto, três escravos afirmam ter estado em reunião que, de certa forma, pode ser considerada como sabática. Se tantas práticas de raízes europeias persistiram no Brasil colonial, por que não o sabbat?
As reuniões costumavam ocorrer sobretudo nos campos da Cotovia e em Val de Cavalinhos. Numa evocação talvez das bacanais e de Dioniso, o demônio lhes oferecia vinho e passas. Os assistentes, quase todos negros, mediam forças entre si, corriam pelos campos em pendencias, cantavam canções de pretos. Lembrando o sabbat europeu, esfolavam um bode e comiam sua carne; depois, traziam a pele do animal sob os chapéus, a fim de se livrarem de cutiladas.
No universo imaginário, o prazer sexual se apresentava libertador e integrador, restabelecendo a identidade entre natureza e cultura que se fazia mais intensa em terras africanas e que, como tantos outros traços culturais, o tráfico desestruturara. Hoje, estudiosos da bruxaria consideram frequentemente que as práticas orgiásticas atestam uma nostalgia religiosa, um poderoso desejo de retornar à fase arcaica da cultura – época onírica dos inicios fabulosos. Em outras palavras, numa abordagem mais antropológica, o sabbat da Época Moderna violava regras então recentes: convenções sexuais e sociais que alicerçavam a construção da ideia de lar, família e organização social. Dai a preeminência dada a práticas sexuais heterodoxas: sodomia, incesto, promiscuidade, homossexualismo. Por fim, o sabbat como projeção imaginária revelava recônditos do inconsciente coletivo, nos quais a atividade sexual sem limites se configurava simultaneamente como o grande tabu da cultura e o supremo desejo, inatingível. Sabe-se o quanto a tradição cristã demonizou a sexualidade, considerando satânica qualquer pratica que, em outros contextos culturais, tinha importante significado ritual.
O sabbat, portanto, era antes uma forma presente no universo mental dos inquisidores do que no dos colonos. As confissões dos três escravos são as únicas referencias a participações em sabbat existentes no período colonial. Nas suas relações com o sobrenatural, nas invocações do demônio, os colonos mestiços manifestavam-se, de preferencia, através da possessão ritual de influência indígena e africana. O caráter coletivo e a presença do Diabo ou de espíritos muitas vezes malignos [ou, pelo menos, ambíguos e ambivalentes] levaram os inquisidores a verem o sabat nestas manifestações. Na realidade, tratava-se de algo bem diferente, localizado na raiz da umbanda e dos candomblés atuais: os calundus e os catimbós. Se fosse de fato válida a diferenciação entre feitiçaria e bruxaria com base no caráter individual da primeira e no caráter coletivo da segunda, poder-se-ia dizer que a bruxaria colonial residiu basicamente nos calundus e catimbós.
Fonte: O Diabo e a Terra de Santa Cruz - Laura de Mello e Souza, pg. 257 – 261.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Nut: a Deusa Estrela

Quase dois mil anos após os templos no Egito terem sido fechados pelo Império Romano, um mago inglês recebe uma revelação de uma Deusa egípcia, Nut ou Nuit. A Deusa lhe solicita para que a ajude a desvendá-la, tornando-se seu profeta. O mago – Aleister Crowley – realizou isto ao publicar “O Livro da Lei”, o primeiro capítulo que contem a voz de Nuit. Quem é essa Deusa e como ela veio se comunicar com Aleister Crowley?
Deusa da Via Láctea
Nut é a Deusa egípcia da Via Láctea, na verdade, ela é a Via Láctea.
A Via Láctea é a galáxia que contém o nosso sistema solar. Nós não estamos sequer em um lugar importante nesta galáxia. Quando olhamos para a Via Láctea, nós estamos observando uma faixa da galáxia.
Como a personificação do firmamento, Nut é geralmente representada como uma mulher em forma de arco, com os pés e mãos tocando a terra. Ela está frequentemente acompanhada de seu consorte, o Deus da terra Geb, debaixo dela e o Deus do vento Shu separando Nut e Geb. Nut é representada na forma de mulher, na forma de vaca e na forma de porca.
Mito de Criação
De acordo com o mito de criação de Heliópolis, Nut é a filha de Shu e Tefnut, que são descendentes do Deus primordial, Atum.
Atum – o autogerado – surgiu no inicio do tempo e criou os primeiros Deuses ao se masturbar. Os primeiros eram Shu [deus do ar] e Tefnut [deusa da umidade]. Shu e Tefnut então se tornaram os progenitores de Nut (céu) e Geb (terra).
Em muitos panteões, Deuses do céu são masculinos e Deusas da terra são femininas. Esta inversão no panteão Egito deve estar ligada com o fato que o Nilo, não as chuvas, era a fonte regular de água no Egito. Para o início do tempo, céu e terra deveriam estar separados e isto era mostrado por Shu erguendo Nut para longe de Geb.
Nut e Geb eram os progenitores de Osíris, Isis, Seth e Néftis. E Osíris e Isis eram os progenitores de Hórus. Osíris é o deus da ordem, fertilidade e vegetação, ele representa o faraó morto e é também o Deus do submundo. Isis é uma Deusa mãe, uma maga e a personificação do trono do faraó. O filho deles, Hórus, representa o faraó vivo. Seth é o Deus do deserto, do caos, do estrangeiro e é o usurpador do trono. Néftis é uma Deusa funerária.
Nut Celestial, Mãe do Sol e do Faraó
Os Egípcios acreditavam que a terra era plana que o céu era um enorme corpo de água. O nome “Nut” pode significar “a aquosa”, embora isto não signifique que ela “chovia”, a ideia é mais como um grande lago ou mar. O movimento do sol através desse lago/mar era compreendido como uma viagem de barco.
Assim como era mãe de Osíris, Isis, Seth e Néftis, Nut era também a mãe das estrelas e do sol que ela dava a luz diariamente. O sol, Re, é representado sendo engolido por Nut ao entardecer, atravessando o corpo dela de noite e renascendo na aurora. Entendia-se que a cabeça de Nut ficava no oeste e sua vagina ficava no leste. A imagem de Nut engolindo o sol e as estrelas fez com que a identificasse com a Grande Porca que come seus filhotes.
Era com a capacidade do sol em renascer que o faraó procurava identificar-se, por isso a imagem do sol atravessando o corpo de Nut aparecia nas tumbas reais. Mais tarde ela apareceria em sarcófagos, enfatizando seu papel, pois ela literalmente abraçava o finado.
Deusa dos Mortos
Antes de estar representada em sarcófagos, Nut era uma divindade importante nos textos das pirâmides, nos quais ela aparece quase cem vezes. Estes textos, escritos nas paredes das pirâmides, instruíam ao faraó como se comportar e o aconselhava no que poderia encontrar no além-vida. Originalmente as instruções eram apenas aos faraós, Nut tinha um papel central na ressurreição.
Quando o além-vida se tornou mais popular, os textos das pirâmides se tornaram os textos dos sarcófagos. Estes textos tinham instruções similares, mas eram escritas no sarcófagos, então o que era originalmente um relacionamento exclusive entre Nut e o faraó, agora incorporava também os ricos. Eventualmente os textos dos sarcófagos tornaram-se o Livro dos Mortos, escrito em papiro.
Quando representada em sarcófagos, Nut era colocada na tampa, com o disco solar no processo de ser engolido ou renascido. Ela também era colocada nas laterais e dentro do sarcófago. Quando a tampa era colocada em cima do finado, um tipo de união era alcançada. O sarcófago simbolicamente tornava-se o corpo da Deusa de onde o finado renasceria.
Senhora do Sicômoro
Esta conexão com a madeira dos sarcófagos pode ser o que levou Nut a ser identificada com o divino sicômoro que alimenta os mortos no além. Em túmulos privados, Nut é representada como uma Deusa brotando do tronco do sicômoro, oferecendo água e alimento, ela é a Árvore da Vida.
Novo Aeon e Nut / Nuit
Como essa Deusa celestial e funerária tornou-se importante na Era Moderna? Por que Nut? Por que Egito?
Para responder essas questões nós precisamos ir do Egito Antigo para a Inglaterra da Era Moderna, quando três franco-maçons proeminentes encomendaram o Templo e Isis Urania da Ordem Hermética da Aurora Dourada, uma ordem exclusiva que incorporava, entre outras coisas, componentes egípcios.
Mas por que Egito? Era um sinal dos tempos. Após as campanhas [francesas e britânicas] no Egito, as investigações da arquitetura egípcia foram publicadas. Subsequentemente, um entusiasmo com tudo que fosse egípcio tornou-se popular no século XIX, particularmente na França, Bretanha, Espanha, Américas, Austrália e África do Sul. Foi nesse século que a Egiptologia tornou-se uma disciplina profissional [aka, “acadêmica”-NB].
Aleister Crowley foi iniciado na Aurora Dourada. Ali ele deve ter percebido a importância da magia cerimonial do Egito. Antiguidades egípcias também iriam se tornar significantes para ele. Crowley viajara em lua de mel ao Egito e ali, depois de algumas operações, Crowley e sua mulher conseguiram evocar o Deus Thot. Em outro evento, a senhora Crowley declarara que o Deus Hórus o esperava no museu do Cairo e ali a esposa de Crowley apontou uma estela que fora catalogada com o número 666, imediatamente identificada por Crowley com a “Besta do Apocalipse”. Esta estela seria mais tarde identificada como a Estela da Revelação.
Crowley traduziu a estela para o francês com a ajuda de um assistente do museu e então ele fez uma versão em inglês. Ele subsequentemente fez diversas invocações de Hórus para encontrar, explorar e descobrir o que Hórus queria. Durante estes trabalhos, Crowley recebia ditados de uma inteligência superior chamada Aiwass e estes ditados se tornaram o Livro da Lei.
Autora: Caroline Tully.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O consorte das Vênus paleolíticas

Nas representações parietais, os animais mais freqüentes são o bisão e o touro, nestes vê-se uma segmentação em dois blocos: um que toma todo o corpo do animal, privilegiando as regiões de força/virilidade, o dorso e o sacro (características sexuais primárias – órgãos reprodutores); o outro, formado pela cabeça alongada e os chifres, que, como o corpo, têm inscritos os elementos de força – aqui vistos como arma de defesa ou ataque e, portanto, de virilidade. Como ocorria nas Vênus, vê-se a repetição de uma rima plástica que recupera o percurso temático-figurativo presente no consorte da deusa: a força-viril ou a pujança criadora e destruidora. Mas, ao contrário da rima “tríplice” percebida nas Vênus, a dos consortes é dupla – apresentando uma bipolaridade explícita - positiva/vida e negativa/morte -, pois ao contrário da Deusa, que prenunciava a criação e delimitava o desconhecido, o consorte traz inscrito em sua figuratividade essa oposição entre o criar (órgãos sexuais) e o matar (chifres).

A base sêmica comum a cabeça/chifre e a falo (região do osso sacro): extremidade + superatividade compõem o seguinte suporte figural: extremidade + superatividade + cilindricidade. Pois tanto o falo quanto os chifres podem ser figurativizados por formas cilíndricas, planas ou não. 

Diversamente das Vênus, o bisão ou o touro apresenta uma circularidade nas transformações sêmicas, ou seja, o lexema chifre, após as transformações, recai sobre o lexema falo e vice-versa. Ambos apresentam o mesmo percurso, só que inversamente, confirmando a leitura antropológica do consorte da Deusa como veículo fertilizador por excelência . Dessa forma, o círculo em que este se inscreve é caracterizado por: 

Chifre > bastão/flecha > falo > bastão/flecha > chifre 

‘chifre’ > ‘flecha’ > ‘falo’

Tanto o cilindróide ‘chifre’ como o cilindróide ‘bastão’/‘flecha’ têm em comum o aspecto retilíneo, liso e sólido, ambos caracterizados como objetos de perfuração e utilizados para defesa ou ataque, portanto, arma. Estabelecendo a passagem do ‘chifre’ , de semas extremidade + superatividade + cilindricidade, à ‘flecha’ , de semas extremidade + superatividade + cilindricidade. Ocorrendo também uma alternância do natural ao cultural, visto que a flecha é um objeto feito pelo homem, portanto, da esfera do humano, e não natural como o chifre. Compartilhando dos mesmos núcleos sêmicos e semas contextuais, a flecha e o falo parecem se opor por ser a primeira um objeto de perfuração, cultural, que gera a morte, ao passo que o segundo termo é um objeto de penetração, natural (humano/animal), que gera a vida. Mas essa oposição é superficial, pois tanto a flecha pode gerar a vida – alimento e proteção do homem – quanto o falo gera a morte – a reprodução humana como fator de destruição/caça de um maior número de animais e coleta de maior número de frutos, portanto, “morte” da natureza. Assim sendo, os termos chifre, flecha e falo assumem uma equivalência nos princípios de gerar e proteger a vida e também no perigo mortal que representam. 

A equivalência entre flecha/falo é reforçada por outra representação maciça das cavernas paleolíticas – as chagas/vulvas sangrantes sobre o dorso dos animais ou junto de falos; um dos exemplos mais originais é o encontrado na gruta de Fontanet: “num grupo de gravuras que compreendem vários bisões, vê-se, nitidamente gravada, uma estrutura vulvar simples sobre o dorso de um deles”. A vulva que abre o flanco do animal é um símile da chaga ou ferida feita pela flecha, do mesmo modo como o falo rompe o corpo feminino, “ferindo-o” e fazendo-o sangrar. 

O intercâmbio entre caça e cópula > flecha/chaga > falo/vulva se estabelece, segundo P.Lèvêque, por serem essas duas práticas geradoras de vida para a espécie humana e destruição/morte para a espécie animal; a caça mata o animal, enquanto a cópula (humana) põe em cena um aumento da população, gerando a necessidade de maior exploração do meio, criando um círculo de interdependência homem-natureza, que terá de ser equilibrado, organizado por regras rígidas para que o homem não esgote sua fonte de vida, destruindo a si mesmo. 

A escolha de animais portadores de chifres, fortes e agressivos para consortes da Deusa Mãe decorre dessa equivalência entre o falo e o chifre, esses animais cornudos assumem, na perspectiva paleolítica, uma dupla virilidade, portanto, são mais pujantes que os destituídos de cornos e mais competentes para fertilizar a grande-fêmea-terra.
Autora: Flávia Regina Marquetti
Obra: A Proto-figuratividade da Deusa-Mãe

quarta-feira, 27 de maio de 2015

O muro de Zul Karnain

18:94.Disseram-lhe: Ó Zul Carnain, Gog e Magog são devastadores na terra. Queres que te paguemos um tributo, para que levantes uma barreira entre nós e eles?
18:95.Respondeu-lhes: Aquilo com que o meu Senhor me tem agraciado é preferível. Secundai-me, pois, com denodo, e levantarei uma muralha intransponível, entre vós e eles.
18:96.Trazei-me blocos de ferro, até cobrir o espaço entre as duas montanhas. Disse aos trabalhadores: Assoprai (com vossos foles), até que fiquem vermelhas como fogo. Disse mais: Trazei-me chumbo fundido, que jogarei por cima.
18:97.E assim a muralha foi feita e (Gog e Magog) não puderam escalá-la, nem perfurá-la.
[Corão Sagrado, Surata Al Cahl]

O Corão Sagrado, tal como a Torah e a Bíblia, está cheio de referências indicando as raízes pagãs desta religião de livro. Por exemplo, o resquício de três Deusas que resistiram ao reformismo religioso do Profeta:

53:19 Considerai Al-Lát e Al-Uzza.
53:20 E a outra, a terceira (deusa), Manat.
[Corão Sagrado, Surata Na Najm ]

Gog e Magog são nações que estão igualmente presentes nos textos proféticos da Torah e estão presentes no Apocalipse e em todos os casos estas nações estão vinculadas ao Fim dos Dias. Quando o Corão passou a ser escrito, foram usados trechos destes outros textos sagrados para emprestar a impressão de fidelidade. Mas e quanto a Zul Carnain?

Zul Carnain significa, literalmente, "aquele de dois chifres ou cornos", o rei com os dois cornos, ou o Senhor das Duas Épocas. A identidade de Zul Karnain é um mistério, pode ser uma referência a um rei ou pode ser mais uma referência a um Deus que existia antes do Profeta.

Alguns analistas acreditam que Zul Karnain pode ser Ciro da Pérsia ou Alexandre o Grande. A identidade de Zul Karnain pode estar associada a muitos dos Deuses dos povos que precederam a reforma religiosa empreendida pelo Profeta e neste sentido temos os Deuses dos Árabes, dos Persas, dos Fenícios, dos Acadianos e dos Sumérios. No Oriente Médio os Deuses eram representados portando chifres, enquanto na Ásia Menor o touro sempre acompanhava uma Deusa.

Karnain tem a mesma raiz de Kern e Hern, uma palavra de origem indo-europeu que não apenas denotava chifre, mas também poder, realeza e um antigo Deus Touro, de onde origina Kernunnos e Herne. Curiosamente, Shiva, ao se manifestar como o Senhor das Feras, assume a forma de Pashupati, que no vale do rio Indus é representado com uma enorme semelhança a Kernunnos. Alto relevos com cabeças de touro em diversos templos na Ásia Menor e no Oriente Médio mostram que provavelmente este Deus Touro era tão antigo e tão venerado como a Grande Mãe.

Um muro não era construído apenas para separar ou proteger uma cidade de invasores. A fundação de uma cidade, o próprio fosso escavado para o alicerce da urbe, tinha uma função sagrada e divina, como acontece no mito da fundação de Roma. Havia a necessidade de demarcar o profano e o sagrado, estabelecer um limite entre cidade e campo, entre humano e divino. O ato de escavar a terra remetia aos mitos de criação do mundo, o arado [cujo significado fálico o liga ao deus Touro] abria o solo [cujo significado telúrico o liga à Deusa Mãe] e propiciava a colheita assim como o Hiero Gamos propiciara a criação do mundo.

Este é o significado de lançar o círculo no ritual wiccano, mais do que separar, mas de demarcar o mundo além do mundo, o tempo além do tempo. Para entrar no mistério que é celebrado nos rituais wiccanos, o celebrante deve empreender a jornada para o interior do labirinto, levantar o véu da ilusão, encontrar o Deus Touro e unir-se com a Deusa Serpente.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Diferença entre tradição e costume

Yvonne Aburrow escreveu no Patheos na coluna Sermons from the Mound:
“Tradição é algo que cresce e evolui. Não está gravado na pedra, mas é mais como um discurso; se você começa com uma séria de premissas, ideias e valores, você desenvolverá ideias e práticas que são consistentes com o conjunto inicial. Tradições religiosas evoluem de acordo com as circunstâncias sociais, culturais e políticas”.
Eu tenho que discordar. A autora está confundindo tradição com costume.
Parodiando um comentário meu:
A tradição não evolui. As espécies evoluem. Por processos ditados pela natureza. Uma tradição não é um organismo. A tradição não mudou, foram os hábitos e costumes das pessoas que são membros ou sacerdotes das mesmas que mudaram.
Tradição (do latim: traditio, tradere = entregar ou "passar adiante"), é a continuidade ou permanência de uma doutrina, visão de mundo, costumes e valores de um grupo social ou escola de pensamento.
Ao nível da etnografia, a tradição revela um conjunto de costumes, comportamentos, memórias, rumores, crenças, lendas, música, práticas, doutrinas e leis que são transmitidos para pessoas de uma comunidade, sendo que os elementos passam a fazer parte da cultura.
Designam-se como costumes as regras sociais resultantes de uma prática reiterada de forma generalizada e prolongada, o que resulta numa certa convicção de obrigatoriedade, de acordo com cada sociedade e cultura específica. [Wikipédia]
Costuma-se comparar a escravidão ou outro exemplo de costume que tem em uma sociedade, antiga ou moderna, que são mantidos em nome da tradição. Costumes existem para satisfazer necessidades sociais e políticas de um determinado período, tradição é um conjunto maior que pertence à cultura de um povo, conjunto este que somente se mantém e se preserva quando há um valor universal contido nele.
Juniper Castália escreveu na Amber and Jet:
O Ofício que Gerald Gardner encontrou em suas passagens entre grupos teatrais, sociedades folclóricas e clubes de saúde não é o mesmo Ofício que praticamos atualmente, embora as raízes estão bem visíveis se a pessoa é iniciada e treinada de uma forma que mostre e preserve isso.
Os pedaços que Gardner encontrou e que seus iniciados desejam perpetuar são os pedaços que sobreviveram mais coisas que bruxas de outras fontes trouxeram a ele ou a seus iniciados e foram incluídos para o que se tornou as Tradições.
Os pedaços que ainda são praticadas e ensinadas, ainda existem e podem ser revividas. Quando uma prática não é mais ensinada, os iniciados seguintes não sabem o que fazer se devem aprender, ocorreu uma evolução e isso não é positivo ou negativo.
A evolução "criou" o gato doméstico. Eu imagino o que o tigre pensa dessa evolução. Um dia não haverá mais tigres, porque nós tiraremos todo o habitat deles. Um dia em um festival [público] alguém irá estranhar a presença de um tradicionalista. Substitua essa tradição por outra e nos tornamos dinossauros ou peças de museu porque os ecléticos se multiplicam rapidamente e poucas das Velhas Bruxas escolhem reencarnar e se juntar a nós novamente.
Portanto, eu acho que mudanças às vezes acontecem por uma falha no esforço, trabalho negligente e o desenvolvimento de hábitos que não são consistentes como o que veio anteriormente.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Apuleio e seu contexto histórico

As fontes que encontramos referentes ao século II são numerosas e riquíssimas.

Neste trabalho, as fontes literárias a respeito das religiões do período serão utilizadas em conjunto com as informações provenientes de monumentos e outros artefatos. Tais fontes devem ser olhadas a partir do contexto histórico em que foram produzidas. Com relação às fontes literárias, particularmente, devemos considerar a tríplice questão da autoria, texto e público alvo, dentro do contexto em que foram produzidas.

As obras literárias não devem ser vistas como fontes descritivas de uma realidade exata, mas sim, obra de um determinado escritor, nem sempre preocupado com a fidelidade na descrição dos fatos. Por outro lado, o escritor não fica alheio a seu período histórico, sendo, então, a literatura fruto de seu contexto social. Enquanto documento histórico, resgata a sociedade antiga, em termos de depoimentos e informações verbais. Assim, o escritor em questão, Apuleio, revela-nos infinitas possibilidades de interpretações e de elementos a respeito da sociedade romana do século II que descreve.

Conhecemos pouco a respeito da vida de Apuleio, embora podemos encontrar traços dela nas obras que deixou, sobretudo na Apologia, Florida e Metamorfoses. Em Apologia, Apuleio revela ter como origem uma província romana na África, provavelmente Madaura, próxima a Numídia. Teria nascido por volta de 125, de família aristocrática, fato que lhe possibilitou inúmeras viagens e uma boa educação. Em sua formação, teria estudado retórica e gramática em Cartago; em Atenas, conheceu a filosofia, se aprofundou no platonismo; e em Roma, teria estudado direito. Portanto, Apuleio era um grande conhecedor das ciências de sua época, dedicando-se também aos conhecimentos religiosos, adquiridos em suas viagens pelo Ocidente e Oriente. A obra De deo Socratis, expõe a teoria neoplatôncia de Apuleio. Em De platone et eius dogmate, Apuleio apresenta um resumo dos cursos de filosofia que freqüentou na época de estudante em Atenas. Em De mundo, trata dos problemas da constituição do universo.

A Apologia, obra retórica, contém informações de extrema importância para o estudo de sua biografia, a auto-defesa da acusação que recebeu por práticas mágicas. Este episódio teria início quando em uma de suas viagens hospedou-se na casa de um amigo, talvez em Trípoli, na África. Acabou casando-se com a mãe desse amigo, a viúva rica Pudentila. Tempos depois, Apuleio foi acusado pela família, de ter usado de magia para seduzi-la e que o teria feito visando sua fortuna. Isso foi um problema para Apuleio, pois a lei local equiparava as práticas mágicas ao envenenamento, e o crime era punido com a morte. Como advogado e bom retórico, Apuleio defendeu-se nos julgamentos, que teriam ocorrido entre os anos de 148 e 161; seus argumentos constituem o eixo central da sua obra Apologia. Apuleio convenceu seus acusadores de que não se utilizou da magia para o casamento, por outro lado, não os convenceu que não praticava a magia, devido ao grande conhecimento que demonstrou sobre o assunto.

Além de proporcionar a reconstituição da vida de Apuleio, a Apologia, também fornece elementos para a interpretação de Metamorfoses. Esta obra teria sido escrita por volta dos anos 160 e 170, sendo assim, posterior à Apologia, e encontramos nela a presença marcante de seus conhecimentos a respeito da magia e da religião de mistério. Agenor Ribeiro Viana apresenta em sua dissertação de mestrado um trecho da Apologia (Apologia, 55) onde Apuleio comprova sua experiência, de acordo com a tradução do pesquisador, “fui iniciado na Grécia em muitos ritos sagrados. Certos sinais e símbolos de tais ritos me foram ensinados pelos sacerdotes e eu os conservo com zelo. Eu, como disse, aprendi cultos de todo gênero e muitíssimos ritos e várias cerimônias pelo desejo de conhecer a verdade e por devoção aos deuses”. Neste contexto, José Carlos Fenández Corte argumenta que Apuleio constrói na Apologia uma imagem de si mesmo, cuidando de falar de sua educação, cultura e erudição, utilizando o humor. Exatamente por este motivo, acredita que o protagonista da obra Metamorfoses pode ser identificado com Apuleio. As Metamorfoses constituem um complexo conjunto de aventuras, envolvendo significativamente as religiões do século II, que teriam sido absorvidas por Apuleio ao longo de suas viagens. A importância da obra, enquanto fonte histórica, está na apresentação da visão de um provinciano da camada alta da sociedade romana sobre as diversas práticas religiosas do Império Romano de seu tempo. Com relação ao título da obra, esta encontra-se no plural. Acredita-se que o título remete-se às diversas transformações que aparecem na narrativa, sobretudo de humanos que se transformam em animais. Por outro lado, a transformação de Lúcio também pode significar duas etapas: Lúcio-asno e asno-Lúcio.

Há ainda outra interpretação, quando considera-se como uma metamorfose a passagem de Lúcio, com todas as suas características, para um novo Lúcio, agora iniciado na religião isíaca. Logo no início da obra, Apuleio explica que sua história se passa nas cidades de Hípata, Corinto e Concréias, todas na Grécia, mas a obra aparenta ser escrita fora destaslocalidades, talvez na própria Roma, não somente por ser escrita em latim, mas principalmente pelos ambientes apresentados. Inserindo Apuleio em seu contexto histórico, Ettore Paratore o considera um “filho de seu século”. O autor teria vivido durante a época dos Antoninos, compreendendo os imperadores Trajano, Adriano, Antonino Pio, Marco Aurélio e Cômodo, entre os anos de 98 e 192. Não cabe aqui a descrição de toda a política, economia e cultura que compreendia o período, porém, devemos pensar o século II como uma época de ouro, em que encontramos um florescimento econômico a partir de um incentivo ao comércio marítimo e a um poder fortemente exercido pelos imperadores que auto-denominavam-se deuses, por outro lado, encontramos poucos investimentos militares e a incapacidade de combater as migrações bárbaras que se iniciavam. No governo de Adriano, sob o qual se dá a formação cultural de Apuleio, temos uma unificação já praticamente estabelecida no espaço Mediterrânico, ou seja, um Império já formado. A tarefa mais difícil para o imperador era manter e fortalecer este Império. A política adotada por Adriano foi a de governar de forma pacífica e conquistar a confiança de todos aqueles que pertenciam ao Império. Para isso, Adriano conheceu pessoalmente diversas localidades do Império, aceitando e respeitando as diferentes culturas e, sobretudo, cultuando os deuses. Esta tática do imperador uniu ainda mais o Império, possibilitando uma maior circulação de culturas, portanto de religiosidades pelo Império.

A partir do século II, o Império Romano já havia adquirido muitas influências da religiosidade estrangeira, sobretudo helenística. De acordo com Paratore, em seu extenso trabalho sobre a História da literatura latina, a cultura, a língua e a mentalidade grega eram predominantes no Império Romano no período de Apuleio. O governo de Adriano é classificado como um “renascimento helênico”, a literatura latina procurava imitar um “modelo de incomparável beleza e originalidade”, que era o modelo grego. É neste contexto que Apuleio é considerado como um personagem literário de sua época, deixando que a filosofia e a religião helênica, e por sua extensão helenística, influenciasse sua obra. Segundo Paratore, “(...) [Apuleio] soube trazer para primeiro plano o palpitar místico obscuro que agitava a alma daquela época turva de transição, na qual os grandes valores políticos e morais da tradição oscilavam e em que as plebes orientais, possivelmente infiltradas na Grécia e Roma, traziam mensagens cada vez mais fascinantes de palingenese religiosa (...)”. Complementando essa idéia, encontramos em Francisco Lisi a descrição da época de Apuleio como um período de sincretismo entre a filosofia grega e as religiões de mistérios orientais, características muito evidentes nas Metamorfoses. A literatura do século II é designada pelos pesquisadores como pertencente à época de prata romana. Segundo E.E. Sikes, no artigo Latin literature of the silver age, esta época inicia-se no período pós-augusteo, momento em que a literatura e a filosofia grega continuaram a influenciar a cultura romana, no entanto, duas mudanças são destacadas pelo autor: a romanização das províncias e a não continuidade dos escritores de estilo republicano.

Neste período de mudanças políticas, que levam às mudanças culturais, surge a sátira latina, com o objetivo de ironizar a sociedade da época. Este gênero literário combina diversos fatores de cunho político, econômico, ético, religioso, ideológico entre outros, que compõem, em conjunto, o amplo contexto que explica e justifica o produto literário final. Zélia de Almeida Cardoso denomina o período de Apuleio como pós-clássico, que se inicia por volta de 68 d.C. e termina no século V. Neste período, encontramos autores que foram influenciados pelas fases anteriores, constituídas por influências helenísticas e com uma literatura a serviço da oratória e da política, em conjunto com o declínio da literatura pagã e a ascensão do cristianismo.

Com relação à religião, há na literatura romana a presença de uma religião nacional paralelamente a uma religiosidade grega, novamente como fruto da helenização, especificamente denominada por Ernst Bickel como uma “reabsorvição da cultura helenística pela literatura romana”. Esta presença marcante das crenças religiosas na literatura é o que encontramos em toda a obra Metamorfoses, expostas de diversas maneiras. Além da literatura destacada, é importante compreender a posição que os imperadores assumiam com relação à introdução de práticas culturais estrangeiras, sobretudo do culto isíaco. Percebemos a introdução do culto da deusa Ísis ainda no período republicano, quando não foi visto sob um olhar positivo, em alguns momentos, pelo Senado. Por outro lado, no período imperial, encontramos a simpatia de muitos imperadores pela deusa, muitas vezes por interesses políticos. Otávio Augusto, com a política da pax deorum apenas facilitou a difusão dos cultos isíacos; Tibério (14-37) utilizou a cultura egípcia a seu favor, associando sua imagem a Sarápis e talvez tenha mandado construir um dos templos de Ísis. Calígula (37-41) teria sido um iniciado nos mistérios, construído o templo da deusa no Campus Martius e inserido o festival em honra à deusa no calendário romano. No Império de Cláudio (41-54), o culto de Ísis apenas foi tolerado, embora tenha associado sua imagem a Osíris, como regrador da sociedade. No período de Nero (54-68), difundiu-se a filosofia Alexandrina e com esta a religião isíaca. Sob o governo dos flavianos, com Galba (68-69), Vespasiano (69-79), Tito (79-81), Domiciano (81-96) e Nerva (96-98) o Império passou por diversas dificuldades econômicas e políticas, neste momento, os imperadores continuaram a identificar sua forma de reinar com as divindades Ísis e Sarápis, no interesse político de manter a semelhança com os Faraós, com seu poder de cunho divino.

No período dos Antoninos, o Império Romano floresceu economicamente e foi possível manter de forma pacífica as províncias. O imperador Trajano (98-117) teria conhecido o Egito e cultuado seus deuses, chegando a ser representado em arcos com as divindades Ísis e Hórus. Sob o império de Adriano (117-138), Apuleio estaria formulando seu pensamento religioso e filosófico, influenciado pela política do imperador da pax deorum. Adriano foi atraído pela religião egípcia, tocado sobretudo pelos aspectos de mistérios. Teria encorajado a expansão da religião egípcia, já sob uma forma helenizada, após passar alguns meses no território egípcio. Adriano também teria construído e reconstruído templos isíacos e cunhado moedas com imagens da deusa, que continuaram com significativa circulação nos reinados posteriores.

O culto da deusa Ísis, em particular, oferecia atrativos a alguns imperadores romanos por estar relacionado, em sua origem, à legitimação do poder do governador. O imperador Adriano, de acordo com Anthony Birley, teria proporcionado a expansão do culto isíaco pela cultura romana em conjunto com a divulgação do culto do imperador, tendo o próprio Adriano identificado sua imagem aos faraós egípcios.

Uma relação interessante entre a deusa Ísis e o poder em Roma foi sugerido por J. Z. Smith, proporcionando uma melhor compreensão de certas características dos imperadores do século II. Na mentalidade egípcia, Ísis estava associada à agricultura, maternidade, ordem social, civilização e códigos morais, como aparecia em seu mito. Desta forma, como geradora do salvador Hórus, era a protetora dos faraós, auxiliando o governo, proporcionando a ordem social e o bem-estar da população. Se por um lado o culto da deusa beneficiava a legitimação do poder real, por outro, libertava a população de um poder tirano, ao passo que a deusa era vista como mãe, não cabendo as noções de tirania. Isso foi interessante no momento em que fora apropriado pelo poder real, quando sua autoridade passa a ser interpretada pela população como divina e as regras formuladas teriam inspiração semelhante. Os faraós eram vistos como aqueles que promoviam a paz e a justiça, não eram menos salvadores e benfeitores que os deuses.

Os imperadores romanos, ainda de acordo com Smith, teriam se apropriado desta imagem, assim a união entre divindade e autoridade significava um poder real soberano e perfeito, diferente de uma tirania e aceito pela população. Outro aspecto importante, destacado por Smith, é a relação entre a autoridade e a população, colocada em paralelo com a relação entre divindade e devoto. O iniciado e a divindade estabelecem um relacionamento de troca, quando o devoto cultua a deusa e recebe benefícios materiais e espirituais. O mesmo ocorreria entre o imperador e a população, quando o primeiro oferece um bem-estar para a sociedade, exigindo respeito e obediência em troca. Estes relacionamentos são saudáveis, beneficiando ambos os lados, não se identificando com uma ação tirânica. Se por um lado o interesse do imperador Adriano pelo culto de Ísis e Sarápis era claramente político, por outro, Takács considera que o interesse também era por questões intelectuais. Alexandria oferecia um leque de pensamentos científicos e filosóficos para entender os mecanismos do mundo, elementos que atraíam a atenção do imperador que, conseqüentemente, interessou-se pela ligação destes pensamentos com os mistérios de Ísis e Sarápis. Isso gerou uma possível iniciação do próprio Adriano e uma expansão do culto, até mesmo com a cunhagem de moedas com imagens isíacas e a identificação do imperador e sua esposa com o casal de divindades. O sucessor de Adriano, Antonino Pio (138-161) não demonstrou o mesmo interesse pela cultura egípcia. As moedas que cunhou, associando Ísis a sua esposa, demonstra uma representação fora de um contexto religioso, talvez seja somente uma continuidade da política adotada pelos imperadores anteriores.

No período dos Antoninos, como podemos notar, há um maior encontro de culturas, quando as influências gregas chegaram até os romanos e outras localidades, ao mesmo tempo em que a cultura das localidades africanas também estão indo ao encontro à cultura romana. Este fato encontra-se expresso na literatura latina do século II, classificada por Ernst Bickel como um estilo novo, africitas. A novidade teria como maior expoente Apuleio, dado que em suas obras pode-se encontrar elementos da literatura grega e romana, em conjunto com as questões religiosas do oriente, as quais já eram conhecidas no mundo greco-romano. A literatura teria sido elaborada pelo autor que possuía um significativo conhecimento da cultura das diversas localidades do Império Romano e respirou as práticas religiosas e a filosofia que se expandiam pelo Império no século II, tudo isso com o apoio das autoridades que se apropriaram das formas do culto da deusa Ísis.

Autora: Vanessa Auxiliadora Fantacussi.

Obra: O Culto da Deusa Ísis entre os Romanos no século II – Representações nas Metamorfoses de Apuleio – Capítulo II pg. 42.

Fonte: UNESP

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O mendigo espiritual e o trabalho com espíritos

Eu tenho pensando por algum tempo o que expressões como "eu trabalho com espírito fulano de tal" e "quando eu perguntei ao espírito fulano de tal para me dar uma oportunidade de trabalho eu sei o que significa realmente. O que está verdadeiramente em jogo ao pedir favores dos espíritos e de trabalhar com os espíritos?".
Quando você se encontra em uma das encruzilhadas da vida procurando o palácio de oportunidades e recorre à magia ou à convocação para se mover suavemente através do vale da tribulação para ganhar as portas abertas, o que está acontecendo neste exato momento em que você se aproxima de espíritos estranhos e lhes pede favores?
Eu tenho me intrigado há algum tempo com o mistério da mendicância, o que se passa nas tavernas baratas da vida e com os mendigos. Há duas coisas que, em intervalos aleatórios, mostra-se como um assunto único e interessante que talvez nós raramente prestamos atenção porque o mendigo é apenas algo fugaz e de passagem, que muitos pagam para se livrar - ou pagam para ajudar. Um fator é a bênção.
A bênção vem sempre se você dá um pouco mais do que o esperado. Podemos imaginar o que está acontecendo aqui: você dá algum dinheiro, uma quantidade que não fere seu estado financeiro ou não é um sacrifício de qualquer forma - em troca de receber uma bênção. Quem é essa pessoa que está abençoando você? O que está acontecendo aqui?
O outro fenômeno é previsões e profecia. Tenho inúmeras experiências com este, que vão desde os ciganos pegando a minha mão depois de lhes dar todo meu dinheiro e tomando minha mão e prevendo eventos que vão acontecer na semana até mendigos recebendo algum dinheiro, ir embora, parando, para voltar e me dizer uma frase ou duas de algo que eles sentiram que tinham a dizer e, em seguida, seguindo, como se a epifania que me deram fosse nada.
Eu vejo nossas relações com o espírito como uma imitação de qualquer outro tipo de relacionamento, seja com plantas animais ou com outros seres humanos. Trata-se de afinidade, de proximidade, de tempo, de dedicação e de trabalhar tanto quanto se fosse de afinidade e laços imediatos forjados em um momento de reconhecimento mútuo, atração e amor.
Trabalhar com um espírito é trabalhar em uma ligação, uma atração e as regras são bastante semelhantes às regras na construção de qualquer outra forma de relacionamento - com uma exceção bastante desconcertante - um espírito (um ser com um corpo imaterial e um espírito não preso a um túmulo) existe em um estado de justiça celestial perpétua. Com isso, quero dizer, a lei e a moral que liga a justiça materiais têm pouca influência sobre o que não é material, então, no domínio da justiça, encontramos um cenário que é diferente de como o concebemos em premissas materiais.
Eu fico pensando se esse paradoxo é resolvido pela presença e atividade dos mendigos, estas pessoas que dão bênçãos quando favores são dados. De alguma forma, quando nos aproximamos de um espírito para pedir favores, nós não estamos começando uma forma de mendicância espiritual? Mas uma vez que aqui mudamos para um campo onde se encontram a matéria e espírito, o equilíbrio e a relação é um pouco diferente.
Se seguirmos a ideia de aplacar um espírito com favores, como se fôssemos mendigos, nos colocamos em uma aceitação da necessidade, mas também a encarnação de bênção.
Se dermos um passo atrás e permitirmos que estas ideias fluam e tomem forma e figura, vemos que a necessidade, a bênção e a aceitação proporcionam o campo que nós conhecemos como sorte, porque o que é este encontro entre mendigos, espíritos e os homens, onde o dinheiro e bênçãos são negociados?
A sorte é a oportunidade abrindo quando estamos no lugar certo para vê-lo. Se nós podemos seguir em frente e aproveitar ou abraçar a sorte é uma questão de consciência e habilidade.
Fonte: Starry Cave.
Autor: Nicholaj Frisvold.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Ensaio sobre o sacrifício de animais

Mudanças acontecerão. Com a confirmação de que Claudiney Prieto é um Alto Sacerdote de 3° da Tradição Gardneriana, o cenário da comunidade pagã brasileira será alterado..
Minha fonte para textos sobre a Wicca Tradicional vem da época em que eu estava na Amber & Jet [Grupo Yahoo]. Ainda que a lista seja aberta para buscadores, ela é mantida por Altos Sacerdotes da Wicca Tradicional. Os textos e definições divulgados ali são suficientes para presumir quais são as características, os princípios e os valores básicos da Wicca Tradicional, o que eu tenho defendido neste blog.
Minhas outras fontes são livros, mas meus estudos servem apenas para sustentar a minha opinião, nada mais. Mesmo quando o assunto é sexo e magia sexual, mesmo quando o texto é de autoria de um/uma Auto Sacerdote/Sacerdotisa, ali terá a percepção e opinião dele/dela, dentro do que pode ser divulgado publicamente, sem infringir o voto de sigilo.
Então este ensaio sobre o sacrifício tem por base meus estudos sobre a história antiga, antropologia, religião antiga, paganismo moderno e observações pessoais.
Cito esta declaração:
"Da mesma forma que sacrifícios humanos não são mais realizados para Deuses de diversas culturas antigas ainda cultuados na atualidade, cordeiros não são mais imolados para Javé, Sacerdotes de Réia e Cibele não se castram mais em frenesi para servir a Deusa, os sacrifícios de animais também perderam completamente seu lugar nos cultos Neopagãos e são abominados por praticamente todos os seguidores do Neopaganismo".
Como estudioso e pagão moderno, eu tenho que discordar. Basta uma boa olhada na história do paganismo moderno e mesmo nas religiões majoritárias para vermos que o sacrifício de animais ainda são realizados. Existem ramos da bruxaria tradicional onde se pratica o sacrifício animal.
"Tal prática entre os Neopagãos da urbe, então, fere em muitos níveis e aspectos os princípios da legalidade, as normas éticas e o senso comum da sociedade".
Considerando que o "senso comum da sociedade" acha normal comermos carne, levando em conta o aspecto psicológico e antropológico do sacrifício animal, o sacrifício ritualístico de animais apenas fere os princípios das pessoas susceptíveis.
Eu recomendo a leitura do texto"A Natureza do Homem e do Divino". 
Falar em sacrifício, no mundo contemporâneo, suscita diversos pruridos. Quais são o espaço e lugar do sacrifício na tradição wiccana?
Vemos na Carga da Deusa:
"Eu não exijo sacrifício; pois saibam que sou a mãe de todos os seres vivos e meu amor é despejado sobre a terra”.
Cito este comentário:
“Esta simples declaração rejeita o até então realizada necessidade dentro do paradigma cristão prevalecente para o sofrimento como um requisito para a unidade com o divino”.
Então devemos entender o sacrifício de diversas formas, não apenas como uma oferenda, seja de objetos, frutos ou animais.
Temos também:
“Que os rituais sejam corretamente celebrados com alegria e beleza”.
Em um ritual a presença de um sacrifício não é algo que é pedido, mandado ou exigido pelos Deuses. Nenhum ritual existe por que algum Deus necessita dele. Nós fazemos um ritual por que este é o nosso dever, nossa obrigação. Como é um dever, o sacerdote tem que proceder com o sacrifício da forma correta, tal como a tradição, a cerimônia exige, para celebrar um determinado mistério de um mito.
Dentre as características da Wicca Tradicional, além de ser um sacerdócio, ser iniciática, ser Duoteísta e Politeísta, podemos considerá-la uma “religião da natureza”. Ora, basta uma observação da natureza para ver que há violência, morte, animais comem e são comidos. O sacrifício de animais serve exatamente para consagrar este aspecto da natureza. A realização do ritual tem uma função catárquica e alimentar fundamental para a comunidade. Seria completamente sem sentido e incongruente a presença de uma adaga em nossas cerimônias. Eu sei que existem tradições nos cultos contemporâneos de Bruxaria que realizam sacrifício de animais. Nós fazemos um banquete após nossas cerimônias. Eu não vejo muita diferença entre comer o animal sacrificado em um ritual e comer um filé comprado no açougue.
Talvez eu seja radical demais, tradicional demais. Em tempos onde as pessoas acham que todo animal tem o mesmo comportamento que o animal de estimação, onde se confunde “direito animal” com preservação ambiental, onde vemos os animais com a mesma aura do “bom selvagem” de Rousseau, falar ou defender o sacrifício de animais é contrariar esses pruridos e essa moral pequeno-burguesa.
Quem acha mesmo que a natureza e o animal são bonzinhos, eu convido passar um mês nas florestas, portando apenas um bastão, uma bússola e uma faca. Eu ouso dizer que dentro de uma semana até o vegan mais radical vai largar suas ilusões edulcoradas.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Mentiras brancas que pagãos contam

Jason Mankey escreveu o texto “Little White Lies: Christian Books on Modern Witchcraft”, no Patheos, em sua coluna "Raise the Horns". O que mais me preocupa não são as mentiras dos cristãos, mas as mentiras dos pagãos.
John Halstead escreveu três textos que eu traduzi no texto “A origem americana da neo-wicca”. Jason Mankey escreveu o texto “When Wicca is not Wicca”, que eu aproveitei para meu texto “Quanto o rótulo não faz o conteúdo”.
Em diversos textos eu reafirmo que quando falamos em Wicca, se fala em uma religião e, como tal, tem características, princípios e valores.
Curiosamente, quando eu simplesmente atesto isso, que é a definição que nos foi legada por Gerald Gardner e mantida por inúmeros Altos Sacerdotes e Altas Sacerdotisas da Wicca Tradicional, a reação mais comum é de raiva. Aparentemente tornou-se uma regra que qualquer um pode alegar ser wiccano e quando eu contesto isso com fatos, os argumentos giram em torno de questões sobre a minha “autoridade” [ou que autorização eu tenho para falar sobre a Wicca Tradicional], quando não me acusam de ser elitista, intolerante, desrespeitoso.
Então não foi surpresa alguma ao ver que meus comentários foram bloqueados na coluna “Daughters of Eve” por que eu contestei uma pessoa que se autoproclamava wiccana. Eu vou deixar de lado os argumentos batidos sobre aceitar a opinião do outro, sobre como a Wicca “evoluiu”, de que eu tenho uma visão restrita e de que eu estou ofendendo a pessoa. Eu não vou conseguir convencer os pagãos ou o público de meus argumentos.
Eu vou escrever sobre os perigos das mentiras contadas por pagãos a partir desta declaração:
A Wicca que eu sigo é aberta, amorosa e inclusiva. A Wicca que eu sigo não é dogmática e rígida. [Liona Rowan]
Quando se digita “Wicca” no oráculo virtual [Google] o interessado, curioso e simpatizante certamente ficará confuso. Existe uma miríade de páginas, de tradições, de grupos, de fóruns, de covens, alguns até fornecendo a iniciação na Wicca mediante uma módica quantia. Como chegamos a isso?
A Wicca se tornou um fenômeno de massas depois que esta chegou aos EUA, pelas mãos de Monique Wilson, que vendeu os itens de Gerald Gardner para a Llewellyn. Mas a conta não pode ser toda atribuída a esta sacerdotisa. Temos também Raymond Buckland, que mesmo sendo da Tradição Gardneriana, iniciou sua própria Tradição Seax, que inovou ao inserir a prática solitária e a autoiniciação.
Mas nem mesmo Raymond Buckland deve levar toda a culpa. Na mesma época, ou um pouco depois, apareciam vários grupos autoproclamados, a maioria se identificando como sendo a “religião da Deusa”, a “religião das bruxas”. Muitos destes grupos tomando uma forma de feminismo radical deram origem ao Dianismo. Neste cenário surgiu Starhawk, que deu início à Tradição Reclaiming, uma mistura da Tradição Diânica [Z Budapest] e da Tradição Feri [Victor Anderson], que praticamente se tornou a “bíblia” de muitos pagãos, pretensos bruxos e wiccanos autoproclamados. Esta é a origem da neo-wicca e da pop-wicca. Milhares de interessados tem acesso a esse material e a popularidade dessas vertentes cuidou de cimentar essas mentiras brancas, enterrando todas as características, princípios e valores da Wicca Tradicional. A Wicca tornou-se um vale tudo, uma “filosofia de vida”, onde tudo é possível e permitido.
Mas para quem é do meio, sabe que não é bem assim. Esta Wicca que é vendida e propagada pela internet não existe. Até pouco tempo Z Budapest era completamente contra o sacerdócio de homens, negava até que homens possuíssem espiritualidade. Causou um grande estardalhaço e escândalo quando Z Budapest proibiu que pessoas transgêneros participassem de um ritual para Lilith. Por anos, estes grupos autoproclamados difamaram Gardner, acusando-o de ser sexista, de ser homofóbico, no entanto estes mesmos grupos proíbem a participação de homens e transgêneros em suas tradições. Estes mesmos grupos atacam a Wicca Tradicional, mas clamam para serem reconhecidos, respeitados e aceitos pela Wicca Tradicional. Diversos pagãos que se autoproclamam wiccanos esbravejam, exigem que sejam respeitados, falam que estão sendo ofendidos, questionam a autoridade de seus críticos, mas ofendem quando não aceitam as opiniões de quem apenas expõe o que é a Wicca Tradicional e se colocam na posição de autoridade quando desmerecem o legado deixado por Gardner.
A Wicca Tradicional não é dogmática, não existe ortodoxia, mas ortopraxia. A Wicca Tradicional não é rígida, podem-se acrescentar coisas, mas não se pode retirar suas características, princípios e valores básicos. O que uma pessoa autoproclamada tem a dizer é irrelevante. Uma pessoa somente pode se declarar wiccana se tiver o treinamento e iniciação formal, em um coven tradicional, com Altos Sacerdotes e Altas Sacerdotisas com linhagem comprovada até Gardner. O resto é mentira.
PS: eu devo incluir também Scott Cunningham e Aidan Kelly na lista de personagens que "contribuiram" para o atual estado da Comunidade Pagã.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Feitiçaria, práticas mágicas e vida cotidiana

Ao qualificar o Brasil setecentista como úbere terreno para diamantes e impiedades, o romancista José Saramago mostrou aguda percepção histórica. Principal porção do império colonial português no século XVIII, o Brasil alimentou simultaneamente os desvarios megalômanos de D João V e as fogueiras inquisitoriais. Apesar disso, o estigma da colônia como produtora e perpetuadora de impiedades foi suficientemente forte para, dois séculos depois, aflorar na frase do escritor português.
Diamantes e impiedades caminhavam juntos. Ambos brotavam, abundantes, das terras coloniais, engastando-se um no outro como dois polos opostos e complementares. Cristãos novos, sodomitas, hereges calvinistas, feiticeiros, magos, adivinhos só poderiam ser compreendidos no contexto em que atuavam: o universo colonial com toda sua complexidade, o dia-a-dia dos colonos com suas aspirações variadas, ora nobres e legitimas, ora medíocres, mesquinhas.
Qualquer estudo sobre o tema [feitiçaria e bruxaria] se debate com múltiplos contextos e heranças culturais, chegando-se por vezes a contornar a questão através do resgate da sempre cômoda matriz indo-europeia. Júlio Caro Baroja distingue dois tipos de magia maléfica: os encantos e sortilégios, que supõem práticas individuais e a bruxaria propriamente dita, de características coletivas e associadas a verdadeiro culto. Norman Cohn adota a mesma posição: a bruxaria é coletiva, a magia é individual. Entretanto, preocupa-se também em distinguir feitiçaria [técnica que induz ao mal] de bruxaria [onde a pessoa é fonte do mal]. Gustav Henningsen diferencia minuciosamente bruxomania e bruxaria. A primeira é coletiva, possui superestrutura mitológica abundante e sistemática, define-se pelo pacto, não possui nenhuma função reguladora e conservadora da sociedade e, portanto, não pode ser estudada pela antropologia. A segunda é individual, tem superestrutura mitológica deficiente e assistemática, não se define pelo pacto, possui função reguladora e conservadora da sociedade, beneficiando-se das abordagens antropológicas.
Mais do que destrinchar as filiações das praticas magicas coloniais, interessa-me detectar o modo pelo qual se combinaram e em função de que contexto.
Nos primeiros momentos, ainda no século XVI, feitiçaria e praticas magicas mostram sua filiação cultural de forma quase transparente. Nelas, resgatam-se com facilidade os traços europeus, indígenas, mas raramente os africanos. Conforme avança o período, os traços se esfumaçam, se interpenetram e começa a surgir um só corpo de crenças sincréticas. É quando surgem formas especificamente coloniais, diversas de todas as outras.
Fonte: O Diabo e a Terra de Santa Cruz – Laura de Mello e Souza, pg. 153 – 156.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Mithra Petra Genetrix

“Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. [Mateus 16:18]
“Tirando-o da cruz, o envolveu nele, e o depositou num sepulcro lavrado numa rocha; e revolveu uma pedra para a porta do sepulcro”. [Marcos 15:46]
Os Evangelhos utilizam de muitos símbolos e simbologias místicas e esotéricas. Fenômeno e resultado de um processo histórico, o Cristianismo, como muitas religiões, foi sendo construído a partir de ensinamentos, pensamentos, doutrinas e iconografias das religiões existentes.
Como toda mitologia, os Evangelhos não podem ser lidos literalmente, mas pode-se ver perfeitamente que as noções de que pedra, rocha, caverna e túmulo estão interligados.
O culto de mistério de Mithra é o mito antigo mais conhecido e mais similar à simbologia cristológica. Para entender a simbologia da pedra, devemos entender o mito de Mithra.
Mithra é o personagem principal neste culto de mistério, derivado do Zoroastrismo, do Mazdeismo e do Zend Avesta. Este culto de mistério tem sua origem na Pérsia, o Zend Avesta tem uma origem Indo-Européia.
O problema é bem grande, quando falamos em Zoroaster, um reformador religioso que revolucionou as crenças originais de seu povo, que eram politeístas, em um culto monoteísta. O problema fica ainda maior, quando colocamos na equação que o culto a Mithra tornou-se conhecido no “mundo ocidental” graças às conquistas de Alexandre o Grande e depois da conquista da Grécia Antiga pelos Romanos. Registros e textos falando desse culto de mistérios chegaram devidamente helenizados ou romanizados, o culto a Mithra tornou-se um culto de grande influência no mundo Greco-romano por sua adoção pelos soldados romanos.
Nos textos sagrados do Mazdeismo, Mithra é identificado como o Divino Pastor e aquele que garante os juramentos, acordos, contratos e oferendas. Assim, Mithra exerce uma função similar ao de emissário de Ahruda Mazda [o Deus Supremo] e de medianeiro para o homem.
O culto de mistério desenvolvido em torno de Mithra foi um resquício de religiões que existiram antes de Zoroaster e seus elementos devem ser analisados dentro de uma visão teológica politeísta. O sacrifício do touro e o “nascimento” de Mithra de uma “rocha” são os símbolos que tem a presença mais constante neste culto de mistério. Quando a Pérsia sucumbiu diante das conquistas de Alexandre Magno, o politeísmo oculto no Mazdeismo se perdeu, bem como suas origens e mitos originais.
O sacrifício do touro, que foi assimilado e copiado por Gregos e Romanos, tinha muito mais do que uma importância social, tinha um significado místico e religioso. O touro é uma imagem constante nas religiões mais antigas, os Deuses antigos eram representados portando chifres de touro e eles eram descendentes de um Deus Touro antiquíssimo. Estas religiões antigas tinham o touro como simbologia em comum por terem surgido durante a Era de Touro, uma era ainda marcada por religiões e sociedade matrilineares, bem como a presença igualmente mundial de uma Deusa Serpente.
O sacrifício do touro assinalava a mudança da Era de Touro para a Era de Áries. Mithra era representado portando chifres de carneiro e, não coincidentemente, Cristo também porta a mesma simbologia. Esta simbologia está presente também na mitologia Grega, no mito de Teseu e do Minotauro. No mito de Teseu, o herói precisa entrar no labirinto para achar e matar o Minotauro. Esta é uma clara assimilação do culto de mistério de Mithra, que também precisa entrar em uma caverna para matar o touro. Aqui nós temos mais uma pista que nos leva para as religiões mais antigas que antecederam as religiões clássicas e as religiões monoteístas.
Na aurora da humanidade, os cultos aos Deuses aconteciam ou em florestas, ao redor de lagos ou de círculos naturais [nemeton], ou em montanhas e cavernas. Nas eras posteriores, conforme a religião foi se tornando mais urbanizada, os sacerdotes dos Deuses do período clássico construíram templos, uma pálida imitação da caverna primordial. A caverna era o templo primordial da Deusa Serpente, Deusa esta que, na forma de dragão, acaba sendo suplantada e superada por Marduk, Zeus, Apolo e Cristo. Não é mera coincidência que, dentro da caverna, o herói ou o Deus, teria que vencer e matar, ao menos simbolicamente, o touro que ali habitava. Dentro do espaço mais sagrado da caverna, a Deusa Serpente era defendida e guardada pelo Deus Touro. Evidentemente, os sacerdotes dos Deuses vitoriosos demonizaram o Deus Touro, omitiram e ocultaram a Deusa Serpente. Apenas em círculos mais secretos, se mantém o mistério de que os Deuses vitoriosos apenas tornaram-se o Deus Pai depois de terem copulado e casado com a Deusa Serpente.
Então a sequencia mais evidente do culto de mistério de Mithra é ele entrando na caverna, o encontro com o touro, o sacrifício do touro, a vitória de Mithra e então seu ressurgimento [renascimento] de dentro da caverna, ou rocha, ou pedra. A caverna era também representada por uma árvore ou um ovo [simbologias ligada à Deusa], mas ela também pode ser representada por uma tumba, um sepulcro. Por isso que Mithra é representado “nascendo” de uma rocha, homem feito, portando os símbolos de sua soberania sobre o mundo. Mithra não “nasceu”, mas renasceu, recebeu a iniciação e, depois que copulou com a Deusa, torna-se senhor do mundo.
Quando a Pérsia foi invadida por Macedônios e Romanos, estas conexões e simbologias ficaram perdidas. Os novos senhores do mundo, no entanto, não quiseram ou não puderam apagar as religiões antigas por completo. Novos tronos adotaram os Deuses vitoriosos dos mitos da Era de Áries, mas os resquícios dos mitos antigos sobreviveram, nos cultos de mistérios. Infelizmente, o culto de mistério de Mithra tornou-se uma mera imitação, foi adotado com júbilo entre os soldados romanos e tornou-se uma fraternidade militar. Em sua versão helenizada e romanizada, o culto recebeu cores belicosas, legiões cultuavam Mithra com a intenção de que, pela honra, pela virtude e pela vitória em batalha, o soldado renasceria como Mithra.
Por ter sido estruturado no meio militar, por ter ressurgido em outra cultura, patriarcal, sexista e misógina, o culto de mistério de Mithra, helenizado e romanizado, tornou-se um culto de mistérios masculino, excluindo qualquer presença ou participação do feminino, da mulher, da Deusa. Essa postura de que o masculino é superior ao feminino foi transmitido para as religiões monoteístas abraãmicas, bem como a supressão do feminino, da mulher, da Deusa. O mundo ocidental adotou a ideia de que Deus Supremo é o Deus da Guerra, esquecendo-se de inúmeras Deusas antigas que foram Supremas e Belicosas.
No mundo contemporâneo, o Paganismo Moderno tenta recuperar nossas verdadeiras origens e raízes. Da mesma forma como foi um erro divorciar o Deus abraãmico de sua Consorte, é igualmente um erro divorciar a Deusa antiga de seu Consorte. Da mesma forma como foi um erro dizer que Mithra “nasceu” de uma rocha, foi um erro dizer que Atena “nasceu” da testa de Zeus, como é um erro dizer que a Deusa antiga “nasceu” por partenogênese.
Pedras não engravidam nem podem dar à luz. A Deusa apenas pode engravidar e gerar o mundo com a presença de seu Consorte. Sem o Hiero Gamos o Universo não existiria.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Os ritos sagrados do sexo e da morte

Na maioria do mundo civilizado, ao menos há cinco mil anos atrás, existiam mulheres, xamãs ou sacerdotisas, que representavam os Deuses em rituais sexuais sagrados e, na Grécia Antiga, eram conhecidas como hieródulas. 

Uma hieródula devia ter capacidades semelhantes ao do xamã, ela podia viajar, em transe, para outras dimensões e se unir com seu espirito amante. Parte do papel de uma hieródula era passar a noite com um rei ou rainha recentemente coroado e, enquanto incorporava seu espírito amante, ela transferia a soberania da terra para a pessoa real em uma iniciação sexual. 

A soberania da terra somente podia ser passada por este tipo de coito interdimensional e era um contrato sagrado que a maioria das civilizações honrava. Você encontrará diversas referências ao Casamento Divino, o Casamento Alquímico ou o Hiero Gamos. 


Cena da paixão


Aqui nós começamos a descobrir o verdadeiro significado do termo “cena da paixão”, por que é sua paixão sexual que acende a operação alquímica do Casamento Divino. A cena da paixão era centrada na Deusa Demeter que perambula pela terra em luto por que sua filha, Perséfone, foi sequestrada por Hades. A semente sexual é representada pelo trigo e, na culminação dos rituais, a hieródula faria amor com o alto sacerdote ou o hierofante. 


Demeter e Perséfone


Por causa do seu foco no trigo, a dramática encenação e o tema da terra que permanece infértil até que Perséfone ressurja na primavera, alguns comentaristas acreditam que o propósito dos ritos da fertilidade era para propiciar os Deuses para ter boas colheitas e aumentar a produção de gado. Mas ritos de fertilidade existem muito antes do período agrícola então é obvio que devia haver um propósito mais profundo por detrás dessas cenas da paixão sagradas. 

Entretanto esta devia ser a forma como os mistérios sagrados eram vistos pelas massas, que não entendiam o propósito dos rituais. Eles atendiam a um mistério menor, que eram executados no equinócio de primavera, enquanto os mistérios maiores, onde a iniciação espiritual acontecia, era no equinócio de outono e apenas para poucos escolhidos. Os mistérios menores acabavam com um batismo com água enquanto os mistérios maiores eram encerrados com uma iniciação com fogo. 

Nos mistérios menores, os ensinamentos eram entregues na forma de alegorias nas quais o verdadeiro significado era oculto. Tudo isso era para preparar aqueles poucos que iriam seguir nos mistérios maiores, aonde os significados ocultos das alegorias seriam revelados e a iniciação pelo fogo aconteceria. Em outras palavras, apenas nos mistérios maiores que era mostrado ao iniciado que estas cenas eram alegorias que tinham um duplo propósito, ensinamentos tanto espirituais quanto astronômicos que eram percursoras para a iniciação espiritual. 

Uma destas cenas tem um Deus sol que morre e então renasce três dias depois, da mesma forma como o sol “more” ou alcança o nadir de seu ciclo anual no solstício de inverno e então começa sua jornada três dias depois. Mas como apenas poucos aprendiam os mistérios maiores, muitos saiam dos mistérios menores acreditando que haviam recebido a revelação que uma pessoa real morrera e renascera três dias depois. 


A iniciação pelo fogo e a pequena morte


Quando vemos o que iniciados disseram sobre os mistérios maiores, fica claro que os mistérios menores eram alegorias para ensinamentos espirituais mais profundos que conduziam para a iniciação. 

Cícero disse que os mistérios maiores que eles não apenas ensinavam um homem como viver, mas a como morrer. Não se estranha que os franceses chamam o orgasmo de pequena morte. Sexo e morte estão tão próximos que ambos são iniciações para outro portal. O que os homens não recebem pela magia sexual sagrada, eles buscam por isso na promiscuidade, estupro, violência e Guerra, devido ao anseio por este portal e os mestres da guerra sabem disso. 

Plutarco escreveu sobre sua iniciação: 

Quando um homem morre, ele é como que são iniciados nos Mistérios. Toda nossa vida é uma jornada por caminhos tortuosos sem saída. No momento que desistimos, vem terror, medo, espanto. Então uma luz vem para te encontrar, campos puros que nos recebem, cantos, danças e aparições sagradas. 

Apuleio escreveu no Asno Dourado: 

Mas acredita-o que é verdade; saiba que eu cheguei ao término da morte, e achado o palácio da Prosérpina, andei e fui gasto por todos os elementos, a meia noite vi o Sol resplandecente com muito formosa claridade, e vi os deuses altos e baixos, cheguei-me perto e adorei-os; eis aqui, dito, o que vi, o qual como queira que ouvisse, é necessário que não saiba; mas aquilo que se pode manifestar e denunciar às orelhas de todos os leigos, eu muito claramente direi.

Estes ritos de sexo sagrado perderam seus favores depois que as grutas de mistérios e bibliotecas foram destruídas pelo Imperador Romano Teodósio. A dominação violenta e belicosa das três religiões abraãmicas foi melhor servida desde então pela ignorância das massas sobre a existência do portal do sexo e da morte.

Autora: Ishtar Babilu Dingir.

domingo, 10 de maio de 2015

O êxtase

Estudar o êxtase é fantástico. E nós estudamos a mesma porcaria sobre o amor na escola e na faculdade. Este texto será dedicado ao êxtase religioso, do tipo de que muda a pessoa, como uma alma e faz com que uma mudança de paradigma seja incapaz de ser colocada em palavras. É um (ou todos) dos Mistérios da tradição moderna do Mistério Ocidental e certamente não se limita a algo recente e no começo de sua evolução. O êxtase religioso é tão antigo quanto a própria religião, mais velho do que a palavra escrita e assim um verdadeiro estudo vai levar de volta para a formação dos primeiros alfabetos e registros da religião humana.

Vamos definir a palavra êxtase. Google, o árbitro [o oráculo virtual – NT] de todas as coisas modernas, dá duas definições: uma simples e outra profunda.
A definição simples diz: "um enorme sentimento de grande felicidade ou excitação alegre”.
A definição profunda diz: "um frenesi emocional ou religioso ou estado de transe, originalmente um envolvendo uma experiência mística de auto-transcendência”.
Aqui começa o conceito do êxtase religioso.

A experiência mística de união com Deus, o êxtase religioso que tem sido a marca de santos e ascetas para imemorial tempo é uma e outra vez a ser confundida com e descrito como amor, a partir de quase todos os ângulos e em todos os sentidos. O amor é sublime. O amor é divino. Então, o que a experiência da união mística com o divino, de êxtase religioso, na Wicca, tem a ver com amor? Qual é o papel do amor na Wicca?

Dê uma olhada em qualquer versão da Carga da Deusa.

"E serão livres da escravidão e como sinal que são verdadeiramente livres, estarão despidos em vossos ritos, o homem e a mulher e irão dançar, cantar, banquetear, farão música e amor, tudo em meu louvor”.

A Wicca ensina que o amor é algo que elogia a Deusa e que isso é um sinal de liberdade. O êxtase religioso tem sido quase sempre descrito como uma experiência libertadora, aquele que levanta o místico para cima e para fora de seu/sua experiência humana, elevando-o/a para o nível do Divino, de modo que uma parte dele pode ser compartilhada através da experiência. é a derradeira experiência de liberdade a partir desta bobina mortal, cujo resultado é a encarnação do divino, a unidade com o divino.

"Pois meu é o êxtase do espírito e minha é a alegria do mundo; pois a minha lei é o amor para todos os seres”.

O culto ensina claramente que o "êxtase do espírito" pertence a uma Deusa cuja "lei é o amor para todos os seres”. No amor, o estado e o ato, podemos e devemos encontrar a nossa conexão com a Senhora da Lua, que é a Rainha das Bruxas. No amor, devemos buscar a consciência dela e de nossa conexão com Ela.

"Eu não exijo sacrifício; pois saibam que sou a mãe de todos os seres vivos e meu amor é despejado sobre a terra”.

Esta simples declaração rejeita o até então realizada necessidade dentro do paradigma cristão prevalecente para o sofrimento como um requisito para a unidade com o divino. Ela substitui este conceito com a veneração da Mãe e, especificamente, o amor de uma mãe, que se coloca como sendo livre e disponível para todos sobre a Terra. Mas onde encontrá-la? Onde até mesmo começar a olhar?

"E diante do meu rosto, amado pelos Deuses e pelos homens, permita que a sua essência divina mais interna seja envolvida pelo êxtase do infinito. Que minha adoração esteja no coração daquele que regozija, pois vede: todos os atos de amor e prazer são meus rituais e então que haja beleza e força, poder e compaixão, honra e humildade, júbilo e reverência em vós”.

A carga continua a afirmar o entendimento comum de que para contemplar a face do divino devemos estar envolvidos no arrebatamento do infinito, uma descrição apropriada do êxtase religioso. A acessibilidade flagrante desta Deusa manifesta-se na declaração de que não apenas os ritos wiccanos são todos os seus rituais, mas todos os atos de amor e prazer proporcionar o acesso a ela e a seus Mistérios. Quando buscamos a Deusa, para encontrá-la, de acordo com a sua própria carga, não devemos olhar em templos inacessíveis e covens que a veneram em segredo, mas dentro de nós mesmos e nossas próprias experiências de amor. Quando reconhecemos que Ela existe dentro de nós e dentro do próprio sentimento e estado de amor, então é que vamos encontrar a verdadeira libertação e união com o divino.

"E você que busca conhecer-me, saiba que sua procura e ânsia serão em vão, a menos que você conheça os mistérios: pois se aquilo que busca não se encontrar dentro de você, nunca o achará fora de si. Saiba, pois, eu estou com você desde o início dos tempos, e eu sou aquela que é alcançada ao fim do desejo".

Fonte: Gardnerians

Nota do tradutor: sem dúvida, existem diversas versões da Carga da Deusa, mas a vantagem é de que não precisamos citar literalmente a Carga, nem nos atermos à interpretação fossilizada dos textos sagrados. A liberdade que a Deusa e o Deus nos dão se extende aos textos sagrados, inspirados ou revelados. Cada trecho, frase ou sentença é como um bloco de informação. O Mistério está nas palavras que, como átomos, ao serem combinadas nos remetem ao mesmo resultado.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

As sacerdotisas da serpente e os antigos rituais sexuais

Mulheres vestidas com mantos escarlates, conduzindo rituais associados com serpentes, longe de olhares curiosos, servindo Inana [NB – Ishtar], a Deusa do amor, fertilidade e guerra. A cor de suas vestes era um simbolismo de seu poder, mas por que o sangue, em especial o sangue menstrual, parecia ser tão poderoso? Era pelo simples reconhecimento da nova vida que o ventre trazia? Ou este sangue tinha usos específicos?

O sangue tem sido parte de rituais de muitas religiões, desde a aurora do homem. Cristo afirmou que o sangue tem poder, mas por quê? Será que era por que este liquido nutritivo continha os encantamentos antigos?

O que a sociedade ocidental via como o Mal na forma de uma Mulher e de uma Serpente foi uma vez visto com a máxima veneração, ambas concedendo sabedoria e longevidade com todos que compartilhassem de suas essências. As sacerdotisas vestiam túnicas escarlates, a cor representando a fonte de seu poder e eram intituladas ‘hor’ (em grego, hieródulas), ou “muito amadas”, tendo influencia sobre reis e senhores nas terras que elas escolhiam habitar. Elas não ficavam casadas por toda vida, mas tinham filhos com diferentes reis e homens poderosos, assegurando alianças e proteções para seus descendentes. Talvez por causa desse comportamento nos relacionamentos que resultou que o significado de ‘hor’ tornou-se o que conhecemos hoje como “meretriz” [NB – ‘hor’ em inglês dá origem a whore e harlot]e a associação da cor escarlate com licenciosidade sexual e pecado.

Ao contrário das acusações que estas sacerdotisas estavam em prostituição ritualística, é mais provável que elas estavam no controle de suas escolhas de seus parceiros, junto com a alta sacerdotisa, que reencenava o casamento sagrado entre Dummuzi e Inana, com um jovem de sua escolha, uma vez ao ano, no equinócio de primavera. O mito de Inana deixa bem claro que ela não tinha vergonha em escolher amantes e os promovendo ao trono, suas sacerdotisas deviam seguir o exemplo.

Da Suméria ao Camboja, reis encenavam um ritual com a Deusa sob a ameaça de destruição do reino se o rei falhasse em sua obrigação. Este Casamento Sagrado [NB – Hiero Gamos] também conferia legitimidade ao seu reinado.

Como representantes do culto da Serpente, as mulheres certamente se asseguravam ao formarem alianças com homens poderosos e estabelecendo sua linhagem. Mas e quanto sua própria sociedade? Por que o sangue delas era reverenciado por aqueles que compartilhavam a mesma linhagem? Inana fazia parte do panteão sumeriano, identificado como sendo parte do culto da Serpente. Então as sacerdotisas tiveram origem dentro da sociedade sumeriana. Os Annunaki praticavam terapia hormonal, durante as batalhas os soldados bebiam o sangue de seus colegas abatidos, o que lhes dava a energia e a reidratação que precisavam. Originalmente os Annunaki bebiam o sangue menstrual das sacerdotisas, que se cria ter muitos nutrientes e continha a essência, que não apenas adiava a velhice, mas também os levava a um estado de consciência mais elevado. Durante as cerimônias do templo, as sacerdotisas também se excitavam, causando a liberação do fluído da glândula de Skene. Este fluído é plasma de sangue filtrado e também é uma fonte abundante de hormônios. Os Annunaki eram hábeis, então durante os rituais eles não bebiam a substância imediatamente, mas a destilavam.

Autora: Katrina Sisowath.

Fonte: Ancient Origins.