Embora tenha raízes fincadas no continente africano, o Candomblé é uma religião nascida em solo brasileiro. Na África, o que existe são os cultos tradicionais aos ancestrais e às divindades, praticados por diferentes povos de forma específica e descentralizada. Foi aqui, no Brasil, que esses cultos se reuniram, se reorganizaram e ganharam o nome de Candomblé.
Não se trata de uma simples importação de práticas religiosas, mas sim de uma construção coletiva, forjada com dor, esperança e resistência pelos africanos. Esse elo espiritual com o passado ancestral floresceu em um novo território e deu origem a uma religião viva, que reorganizou os saberes sagrados de várias etnias africanas em um sistema litúrgico coerente e harmônico.
Na África, cada povo cultua suas divindades em seus próprios territórios: Oxum é cultuada em Ijexá, Xangô em Oyó, os Voduns no Daomé, os Nkises no Congo e em Angola. Ao chegarem ao Brasil, esses povos foram misturados e impedidos de manter suas práticas religiosas originais. A repressão às culturas africanas e a imposição da fé católica exigiram uma resposta de resistência. E essa resposta foi a união.
No lugar de cultuar apenas suas próprias divindades, os iniciados criaram espaços onde todos os deuses africanos fossem celebrados em conjunto. Esse gesto de adaptação e solidariedade deu origem ao que hoje chamamos de Candomblé. O termo, que não existia nos territórios africanos, foi se moldando no Brasil a partir de palavras como kandombele, que significa festa ou dança popular, e kandombidé, traduzida como ato de louvar. No início, designava qualquer reunião entre africanos. Com o tempo, tornou-se o nome de uma religião afro-brasileira estruturada, marcada por ritos complexos, cânticos, danças e uma filosofia profunda de conexão entre o sagrado e o cotidiano.
Para preservar os ritos e os cânticos em línguas africanas, o Candomblé foi organizado em nações. Essas nações não são políticas, mas sim agrupamentos culturais e litúrgicos que preservam traços das etnias africanas de origem. As principais são a Nação Ketu, de matriz yorubá; a Nação Jeje, dos povos fons e mahin; e as Nações Angola e Congo, de tradição Bantu. Há ainda subdivisões, como o Jeje Savalu e Mudubi, o Ketu Ijexá e o Alaketu, além de fusões como o Nàgó-Vodun, que evidenciam a riqueza, a pluralidade e a capacidade de convivência entre diferentes tradições.
Cada nação mantém sua língua ritual, seus cânticos, folhas sagradas, toques de atabaques e formas próprias de culto. Essa diversidade interna é uma das maiores forças do Candomblé, que jamais se fechou em rigidez, mas soube acolher e reinventar-se.
Mais do que preservar o passado, o Candomblé é uma religião que se atualiza com o tempo. Converte a dor em dança, a opressão em resistência e o sofrimento em beleza. A cabeça, que entre os yorubás é chamada de orí, e entre os bantus de mutue, é o espaço sagrado onde habita o divino. Nela, o Orixá, o Vodun ou o Nkisi não se impõe para dominar, mas para orientar e cuidar.
É essencial reconhecer que foram as mulheres as grandes estruturadoras do Candomblé no Brasil. Mesmo em meio à invisibilidade imposta pelo sistema colonial, elas guardaram os segredos, fundaram os primeiros terreiros e formaram gerações. Os homens sempre estiveram presentes, com funções importantes como a de Ogans, mas desde o início a liderança espiritual era majoritariamente feminina, e continua sendo em muitos templos.
Para Mãe Maria de Xangô, ícone da Nação Ẹ̀fọ̀n e dirigente do Axé Pantanal, em Duque de Caxias, o Candomblé que praticamos é completo e eficaz.
"O culto de lá é diferente do que professamos aqui. O que os nossos antigos trouxeram e nos ensinaram é sagrado, é funcional, é verdadeiro. Eles têm a maneira deles de invocar os Orixás, e nós desenvolvemos a nossa, a partir do que foi possível preservar. O nosso Candomblé é perfeito porque vem do coração, da resistência e da devoção dos nossos ancestrais. E funciona, porque é cheio de axé e fé."
O Babalorixá e escritor Márcio de Jagun acrescenta que é importante abandonar a ideia de uma matriz africana única.
“O mais adequado é falarmos em matrizes africanas. O Candomblé é uma religião genuinamente brasileira, com ritos baseados em diversos cultos africanos. Com a diáspora, o culto aos Orixás também se espalhou para outros países, como Cuba, onde surgiram o Ifá cubano e a Santeria, e o Haiti, com o Vodu. No Brasil, o que nasceu foi o Candomblé, uma expressão religiosa própria, com raízes africanas e identidade brasileira. Digo isso também com base na minha vivência. Estive na África e presenciei ritos de Orixá que são bastante diferentes dos que realizamos aqui.”
Como se vê, o Candomblé não é uma cópia da África. É uma recriação dos cultos africanos em solo brasileiro. É uma resposta espiritual à tentativa de apagamento cultural. Prova de que, mesmo diante da violência, a alma africana resistiu. É também um pacto de união entre povos que foram rivais em suas terras de origem, mas que, aqui, diante da repressão comum, estenderam as mãos uns aos outros.
Essa união, que às vezes se vê ameaçada por vaidades e disputas desnecessárias, é justamente o que sustenta o Candomblé. Ele nasceu do encontro, do compartilhamento e da soma. Mais do que tudo, é uma celebração à ancestralidade, à natureza e à vida. Ensina que não existe espiritualidade verdadeira sem respeito, sem escuta e sem consciência de que somos muitos, e que a nossa força está em estarmos juntos.
Que Olódùmarè continue protegendo o Candomblé e que a luz dos ancestrais jamais se apague. Foram eles que transformaram a dor em fé, o exílio em esperança e a resistência em tradição. Que os Orixás, os Voduns, os Nkises e os Caboclos, espíritos dos povos indígenas que acolheram com generosidade os irmãos africanos, nos inspirem a preservar o que é sagrado, a respeitar as diferenças e a manter acesa a chama da fé e do afeto coletivo.
O Candomblé é mais do que uma religião. É uma lição viva de dignidade, união e amor à ancestralidade.
Axé para todos!
Fonte: https://extra.globo.com/blogs/pai-paulo-de-oxala/post/2025/08/candomble-um-rito-criado-no-brasil-com-raizes-africanas.ghtml