Entender-se uma pessoa LGBTQIAPN+ não é algo evidente, que no minuto em que viemos ao mundo já o sabemos. É preciso a nossa manifestação, que a nossa maneira de ser e os nossos desejos sejam expostos e notados. Entender-se LGBT+, enquanto classe social, também não é automático. A opressão social dificulta (por vezes impossibilita) o reconhecimento de nossos semelhantes, fato que frequentemente compromete o encontro de espaços seguros.
Mas o que é espaço seguro? Como saber que estamos em um espaço seguro? Para nós, LGBTs, essas não são respostas simples. A violência começa cedo, mesmo antes de nós termos plena consciência de que somos LGBTs. A repressão física ou moral é iminente à menor possibilidade de demonstração de algum gesto ou da ligeira passagem de um pensamento que se desvirtue da heterocisnorma. Seja na família, na escola ou na rua, vivemos em estado de alerta e de autocensura.
Sair do armário é o nosso primeiro passo rumo ao espaço seguro e, ao mesmo tempo, sermos o nosso próprio espaço seguro. É quando nós colocamos o nariz para fora d’água, para respirar e pegar fôlego. É o momento em que nós finalmente temos os olhos desvelados e conseguimos nos enxergar — e identificar também nossos pares. É quando nós nos encontramos, quando nos abrimos a dar e a receber acolhimento.
É a busca pelo nosso lugar que nos torna uma comunidade. É a vontade de se sentir pertencente que nos fez criar os nossos guetos, os nossos espaços seguros. Somos queer, porque somos pessoas estranhas à norma. Ser queer não é somente uma questão estética ou cultural, é também uma questão afetiva e ética. Afetiva porque lutamos por amor — e não é só pelo amor romântico. É pelo amor próprio e pelo desejo de se sentir uma pessoa amada. A nossa luta é por construir e fortalecer a nossa autoestima, como indivíduo e como comunidade.
É uma questão ética, porque rejeitamos o moralismo. Porque entendemos, através da nossa dor, que é o moralismo que nos divide, que nos separa de nossas famílias, nos faz sangrar vítimas de violência e nos traumatiza. Em nossa luta, nós dizemos: é proibido proibir! Admitimos que cada pessoa é o que se é e que a experiência da vida não segue exatamente uma regra. Somos pessoas diversas mesmo em nossas similaridades. Essa diversidade que se impõe e se une para dizer que a cis heteronormatividade é uma invenção moral, burguesa, patriarcal, religiosa, que aprisiona corpos e mentes, que diminui nossas possibilidades enquanto seres humanos. Que castra o desejo, a arte e o vir a ser de cada espírito.
Essa similaridade é o que nos une, mas, ao contrário do que o capitalismo nos quer convencer, a singularidade não é o que deve nos desagregar ou nos atomizar. Politicamente e socialmente, a identificação coletiva é muito importante e não implica no apagamento do indivíduo. Existem muitas maneiras de sermos queer, por isso as nossas letras. O mesmo também é verdade sobre cada letra de nossa comunidade: existem muitas maneiras de sermos Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Intersexo, Assexuais etc. Cada experiência é semelhante e ao mesmo tempo singular.
A nossa luta, portanto, não é (e nunca pode ser) por merecimento — ao contrário. A nossa batalha é para derrubar a norma, não para que ela nos aceite. Não queremos ser a vítima merecedora, que venceu todos os obstáculos e ganhou um prêmio do Luciano Huck ou foi convidada a palestrar no TED Talks para narrar sua experiência de sofrimento. Nós queremos abolir o sofrimento.
Tampouco queremos ser quem abandona a pessoa mais vulnerável que está ao nosso lado. A nossa luta é para que ninguém fique para trás. É pelo fim das classes, é pela união, é pelo reconhecimento da cidadania e da humanidade de cada pessoa. Queremos o bem comum, a paz, a dignidade, a concórdia. Por isso, nossa luta é essencialmente parte da luta socialista.
Rever nossas práticas, questionar nossos discursos e nossas referências intelectuais, assim como reavaliar nossa trajetória faz parte do processo. Não podemos ter pudor nisso. Erramos quando, nesse processo, queremos criar subpoderes e hierarquias para subjugar quem o outro é, quando abandonamos nosso processo comum, para salientar diferenças miúdas. Os nossos esforços devem ser sempre pela comunhão e pelo acolhimento, até porque é isso que nos une enquanto comunidade, enquanto classe.
Neste ano, celebramos os 30 anos da Parada LGBTI+ do Rio, a mais antiga do Brasil, uma manifestação que é resultado da nossa união e do nosso fortalecimento. Celebramos o dia em que olhamos para os lados e nos reconhecemos. A data é sobre termos nos unido para atirar tijolos em quem nos agredia. É sobre termos colocado a cara no sol. Chegar até aqui só foi possível porque agimos coletivamente. A competição e a agressão não fazem parte da nossa luta. Por isso, devemos preservar a nossa comunidade e garantir que ela se mantenha sendo o nosso espaço seguro. Viva às LGBTs, todas elas, esse povo animado!
Fonte: https://revistaforum.com.br/opiniao/2025/11/19/pelo-nosso-espao-seguro-por-monica-benicio-192498.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário