Tomemos como alento a reação popular diante do absurdo que representa o PL 1904/2024, de autoria do Deputado Federal Sóstenes Cavalcante, a voz de Silas Malafaia na Câmara dos Deputados, que propõe encarcerar mulheres vítimas de estupro que abortem os fetos oriundos do crime de violência sexual a que foram submetidas. E com uma pena superior à dos estupradores. Um projeto que pretende nos levar na velocidade das trevas para a era medieval. Apelando para o emocional das pessoas, que estão sendo confrontadas em sua dignidade humana sob um argumento pró-vida, a bancada evangélica tenta desestabilizar política e moralmente o governo e o STF, com uma pauta que sempre foi um grande tabu na sociedade. Convido-os a uma breve reflexão sobre quem é favorável ao aborto. Que mulher seria capaz de engravidar espontaneamente, só para ter o prazer de matar o feto que abriga em seu ventre? Que homem seria capaz de propor que uma mulher engravide, apenas para sentir o prazer de ver o feto sendo morto? Sinceramente, eu acho que ninguém seria capaz disso.
No entanto, apesar de ninguém ser deliberadamente favorável ao aborto, temos uma realidade diante dos nossos olhos. Essa realidade se apresenta através de situações que obrigam algumas pessoas a interromperem uma gravidez indesejada ou de risco. Anencefalia, risco de morte à gestante e estupro, são situações que estão amparadas pela lei. Nos casos de estupro (aborto humanitário) e risco à gestante (aborto necessário), o código penal de 1940 garante à mulher esse direito, por meio do artigo 128, parágrafos 1 e 2. Ou seja, a proposta de Sóstenes Cavalcante, além de desumana, nos leva a um retrocesso civilizatório que pode custar muito caro à liberdade e à autonomia das mulheres brasileiras. Algo que só poderia servir aos dogmas machistas e misóginos da Igreja (evangélica e católica), que sempre subjugou o sexo feminino e limitou as mulheres à condição de dedicadas esposas e férteis reprodutoras. O que é ratificado no posicionamento oficial da CNBB, ao emitir uma nota em apoio ao PL 1904, aliando-se ao neopentecostalismo no processo de encarceramento das liberdades individuais no país.
O que precisa ficar evidente para os fundamentalistas através de reações e manifestações populares, é que a sociedade brasileira não está submetida aos dogmas da igreja evangélica e não irá permitir que estelionatários, empresários e outros picaretas da fé alheia subvertam a ordem democrática em favor de seus interesses mais espúrios. Até porque, Deus não é evangélico e o Estado laico não pode ser convertido. Porém, a chamada “Bancada da Bíblia” pode ser enquadrada, colocada em seu devido lugar e orientada de que ela não manda e nem mandará no país. O enfrentamento a esses vendilhões do templo e da soberania nacional precisa ser intensificado e até tensionado, caso necessário. Sim, estou propondo uma revolta popular contra a bancada evangélica e contra a ordem teocrática que pretende se estabelecer. Se o governo não pode comprar essa briga por questões políticas, nós, o povo que o elegeu, podemos. Afinal, até o poder dessas igrejas emana do povo que garante o seu sustento e a vida luxuosa de seus proprietários. E muitos evangélicos não concordam com a marmotagem ungida praticada pelos lobos vorazes que representam o segmento.
Tenhamos a certeza de que eles estão apreensivos com a reação popular contra o PL do estupro evangélico, e já estão se movimentando diabolicamente para tentar reverter a possível perda de popularidade junto à própria comunidade. Uma das táticas é usar o discurso de que “o inferno está se levantando contra o povo de Deus”, como a deputada Júlia Zanatta, do PL-SC, utilizou na CNN quando lhe faltaram argumentos para se contrapor à deputada Fernanda Melchionna, do PSOL-RS, que escrachou a violência contra a mulher exposta no projeto de Sóstenes Cavalcante. Aliás, a deputada bolsonarista que anda com uma guirlanda de Natal na cabeça, talvez em celebração diária ao nascimento do messias nazista, tem sido usada na linha de frente do fundamentalismo, como um exemplo de mulher combativa às mulheres da “esquerda abortista”. Simone de Beauvoir explica. O que não se explica é ainda termos boa parte da sociedade se permitindo guiar moralmente pela desonestidade política, intelectual e religiosa da extrema-direita brasileira, disfarçada de igreja evangélica no parlamento. Ou seria da desonestidade religiosa da igreja evangélica neopentecostal disfarçada de extrema-direita política?
Mas como dialogar com os evangélicos que, mesmo não sendo fundamentalistas, creem nos dogmas da igreja como sendo divinos e determinados por Deus? Se usarmos a parte boa da Bíblia para nos contrapormos ao discurso que os maus líderes disseminam sobre eles, temos que estar preparados para ouvir e saber contrapor a parte ruim da Bíblia que eles usarão como defesa de sua “fé”. Uma parte do livro que costuma tratar as mulheres como animais de estimação de seus maridos, premiando a sua submissão e punindo a sua desobediência. O curioso é que boa parte dos evangélicos acredita na unção de Israel como terra santa e escolhida por Deus, mas desconhece as leis do país no que se refere ao aborto e ao casamento homossexual, dois temas que eles costumam repreender em nome de um Jesus que os judeus israelenses não têm como senhor e salvador de suas vidas. O aborto em Israel é permitido quando a pessoa gestante tem menos de 18 anos; quando a pessoa gestante não é casada ou quando a gravidez não é do casamento; quando a pessoa gestante tem 40 anos ou mais; quando a gravidez provém de relação incestuosa ou de estupro; quando o feto apresenta probabilidade de doenças; quando a gravidez põe em perigo a vida da pessoa gestante ou lhe causa danos físicos ou emocionais.
A verdade é que estamos falando muito e agindo pouco contra esse fundamentalismo político-religioso. A tentativa de diálogo com os exploradores da fé política tem sido inócua e contraproducente. Estamos lidando com verdadeiros gângsteres do evangelho de Cristo, mafiosos de uma orcrim bíblica que pretende tomar de assalto a sociedade, atribuindo a Deus a autoria do plano. Proprietários de igrejas que, se deixarem de existir, não farão a menor diferença do ponto de vista espiritual, uma vez que Deus não deixaria de existir se elas acabassem. Ou deixaria? Por outro lado, o número de pobres aumentaria e muitos que “trabalham” como pastores, bispos e apóstolos explorando a fé alheia, teriam que trabalhar de verdade e ter muita fé em Deus para sobreviverem como assalariados. CPI das igrejas evangélicas, fim da imunidade tributária para elas e proibição de candidaturas de líderes religiosos aos parlamentos, já seria um bom começo. Aliás, seria o fim do “poder de Deus” sobre a política brasileira.
Fonte: https://www.brasil247.com/blog/o-evangelho-dos-estupradores-segundo-a-biblia-bolsonarista
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