Sob o argumento de que trechos do livro “O menino marrom”, lançado por Ziraldo em 1986, apresentam conteúdo agressivo e induzem crianças a fazerem maldade, pais de alunos da cidade de Conselheiro Lafaiete pressionaram a Secretaria Municipal de Educação para que o livro fosse retirado temporariamente das atividades de leitura das escolas do município. A obra conta a história de dois meninos, um marrom e outro cor de rosa, que buscam compreender as suas cores. A inocente amizade entre os dois amigos, acaba de ser interrompida e criminalizada pelo fundamentalismo político-religioso que vem se espalhando e promovendo uma onda de retrocesso social, cultural e civilizatório na sociedade brasileira.
Segundo a Secretaria de Educação Municipal, “as suspensões dos trabalhos sobre a obra visam a melhor readequação da abordagem pedagógica, evitando assim interpretações equivocadas”. Entre os trechos do livro apontados como perigosos para crianças, está um diálogo entre os dois meninos em relação a uma “velhinha” que todos os dias atravessava a rua para ir à missa. “No final de algumas manhãs, já que o menino marrom não dizia nada, o menino cor-de-rosa resolveu perguntar: ‘Por que você vem todo dia ver a velhinha atravessar a rua? ’ E o menino marrom respondeu: ‘Eu quero ver ela ser atropelada’. Uma travessura infantil que nem se compara, por exemplo, ao capítulo 9, versículo 6 do livro de Ezequiel, onde Deus teria dado a seguinte ordem: “Matai sem dó: idosos, rapazes e moças, crianças e mulheres, até aniquilar a todos. Todavia não tocai em ninguém que tenha recebido o sinal da salvação. Começai, pois, a destruição pela minha própria Casa, o Templo”. Imaginem os seus filhos lendo isso?
Outro trecho do livro de Ziraldo que gerou a preocupação dos pais com relação a segurança física de seus filhos, foi a parte onde o menino cor de rosa, já adolescente, está se mudando da cidade e o menino marrom o acompanha até a rodoviária. No caminho, ambos falam em eternizar a amizade com um “pacto de sangue”. Ziraldo lembra como surgiu essa brincadeira e escreve: “Um deles foi até a cozinha buscar uma faca de ponta para furar os pulsos e misturar o sangue dos amigos eternos. Ficaram os dois, os bracinhos espichados, as mãozinhas fechadas para cima, os pulsos à mostra, latejando. A faquinha na mão de um, esperando o pacto. Os dois ali, parados, sem um sorriso sequer, só o ruído das suas respirações ofegantes, olhando firmes um no olho do outro, sem piscar: pacto é pacto. E a faquinha parada no ar. Até que um deles resolveu a questão: ‘não tem um alfinete?' Lúdico e pueril demais em comparação ao livro dos Gênesis, capítulo 22, onde Deus manda Abraão matar o seu próprio filho Isaque, para fazer um pacto a sua fidelidade com ele.
“E aconteceu, depois destas coisas, que tentou Deus a Abraão e disse-lhe: Abraão! E ele disse: Eis-me aqui. 2 E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi. ” Por sorte, um anjo enviado pelo próprio Deus que havia pedido a execução, apareceu e disse a Abraão que tudo não passava de uma pegadinha e que Deus estava apenas testando a sua fidelidade. Se os pais dos alunos da cidade de Conselheiro Lafaiete deixarem os seus filhos lerem esse trecho da Bíblia, eles terão dois problemas. Primeiro, explicar para as crianças porque um deus de amor pediria o sacrifício de um ser humano apenas para exaltar o seu poder, segundo, convencer a curiosidade infantil dessas crianças de que esse Deus, mesmo sendo onipotente, onipresente e onisciente, ou seja, sabedor de todas as coisas, não sabia se Abraão era ou não fiel a ele. Por que testá-lo, então?
De fato, o que está por trás dessa sanha censora é uma ideologia política fascista que não consegue se sustentar por si mesma, uma vez que representa o atraso, a castração do senso crítico e cerceamento das liberdades individuais, e apela para a chamada pauta moral como base de sustentação de seu projeto de poder. Aliada a essa barbárie cultural está o segmento neopentecostal evangélico, um partido político imperialista e neoliberal, que se disfarça de igreja para converter os mais desavisados e alienados. Também se alia a eles nessa cruzada neomedieval, as forças de segurança do Estado burguês brasileiro que, através das Escolas Cívico-Militares, poderão concretizar o sonho da escola sem partido. O que, na verdade, seria uma escola sem condições intelectuais de fazer oposição ao projeto de poder que eles querem estabelecer. Um poder amplo e irrestrito, que lhes permitiria controlar as mentes através da educação, e formar uma sociedade de ovelhas cegas e obedientes ao evangelho do deus capital. O menino marrom ficaria branco de susto diante de tamanha perversidade.
O outro trecho citado como problemático pelos pais, pode revelar um viés racista e homofóbico da censura ao livro de Ziraldo. Saudoso do amigo, o menino marrom lhe escreve uma carta onde diz: “Meu querido amigo, eu andava muito triste ultimamente, pois estava sentindo muito a sua falta. Agora estou mais contente porque acabo de descobrir uma coisa importante: preto é, apenas, a ausência do branco. ” Uma mente suja e fundamentalista, com o perdão do pleonasmo, é bem capaz de associar a saudade sentida pelo menino marrom, a um sentimento homoafetivo pelo amiguinho. Sem falar que o quê de racismo expresso pelo fundamentalismo deve ter se sentido ofendido, diante da constatação do menino marrom, de que não havia diferença existencial entre a sua cor e a do menino rosa, porque, no fundo, elas se completam. A supremacia branca imperialista que patrocina o fundamentalismo neopentecostal no Brasil pira. Se pelo menos o menino marrom fosse o Obama, eles conseguiriam reescrever a história a seu gosto.
Tempos sombrios, difíceis e desesperadores que estamos vivendo. Enquanto isso, a Bíblia, e seus livros vermelhos de sangue, segue sendo recomendada para todas as idades. Até que uma criança, orientada pelos ensinamentos religiosos de seus pais fundamentalistas, leia Êxodo 32:25-28, e, assim como Moisés, sinta-se escolhida por Deus para determinar o extermínio dos seus ímpios e infiéis coleguinhas na hora do recreio. Que os meninos marrom e cor de rosa não estejam estudando nessa escola. Deus nos livre dos fundamentalistas!
Fonte: https://www.brasil247.com/blog/o-menino-marrom-pergunta-a-biblia-e-leitura-para-criancas
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