Vivências com cerimônias de ayahuasca, aplicações de kambô (secreção extraída da rã Phyllomedusa bicolor) e rapé são realizados mensalmente durante todo o ano por aldeias em nove municípios do estado. Eventos têm atraído milhares de pessoas não apenas do Brasil, mas de vários outros países. Julho e agosto concentram o maior número de eventos.
A renda anual de aldeias que recebem turistas varia de 150 mil a 2 milhões de reais por ano, segundo informações do governo do Acre, que este ano inseriu 20 festivais indígenas no calendário oficial do estado. Estrangeiros, principalmente da Europa, representam a maior parte do público.
Brasileiros também comparecem, mas geralmente chegam por meio de agenciadores que vendem pacotes fechados de vivências com ayahuasca e outras medicinas tradicionais. Entre os municípios que sediam os eventos estão Porto Walter, Assis Brasil, Marechal Thaumaturgo, Feijó, Tarauacá, Mâncio Lima, Cruzeiro do Sul, Jordão e Santa Rosa do Purus.
As etnias Huni Kuin, Yawanawá, Ashaninka, Puyanawa e Shanenawa se destacam com festivais turísticos já consolidados e com um público fiel de brasileiros e estrangeiros que retornam todos os anos. A atividade movimenta não apenas a economia nos territórios indígenas onde acontecem os eventos, impacta positivamente também diversos setores, como rede hoteleira, guias, condutores, barqueiros, transporte, mercadinhos, farmácias, bares e restaurantes.
Falta ainda ser contabilizado o volume real desse fluxo de viajantes em busca do etnoturismo no estado. "Não temos um número exato, porque as lideranças não têm o hábito de monitorar essa informação, mas estamos trabalhando nisso, incentivando e orientando o registro", disse o governador do Acre, Gladson Cameli.
Entre 2022 e 2023, o Acre recebeu turistas, principalmente dos Estados Unidos, Alemanha e Portugal, de acordo com dados da ForwardKeys, consultoria espanhola de análise do setor turístico, e da Embratur (Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo).
"Não temos como afirmar que todos chegaram ao estado com o objetivo de participar dos festivais e vivências indígenas", pondera Cameli. Mas, o governador afirma que o etnoturismo se tornou a principal atração local.
Segundo ele, o modelo auxilia na preservação das florestas e cria oportunidades. "As aldeias indígenas em quase sua totalidade têm sua economia baseada na agricultura. O fomento ao etnoturismo contribui com novas formas de geração de renda nessas comunidades e reduz o desmatamento e queimadas para a produção agrícola.”
"Nós apoiamos estes festivais não só com recursos financeiros, mas também com projetos sociais de educação, saúde e no suporte básico das aldeias", afirma o governador. No ano passado, o estado também criou a Sepi (Secretaria Extraordinária de Povos Indígenas do Estado), com o objetivo de implementar políticas públicas para promover e proteger os direitos dos povos indígenas.
Cameli diz que estão sendo realizados investimentos em obras para melhorar a acessibilidade aérea e por estradas e a infraestrutura na capital e interior. Entretanto, não foi informado o volume de recursos aplicados.
Um dos maiores eventos e também o mais conhecido do circuito de etnoturismo do Acre é o festival Mariri, dos Yawanawá, que neste ano está previsto para acontecer de 10 a 15 de agosto na Aldeia Mutum, às margens do Rio Gregório, em Tarauacá, no interior do estado. No ano passado, o evento reuniu cerca de 2 mil pessoas. Outro fator que tem contribuído para a popularização desses encontros é a aproximação de indígenas com artistas famosos e do trânsito deles em grandes eventos e campanhas.
Um caso emblemático é justamente o do povo Yawanawa, que acumula participações em projetos de nomes e marcas famosas, despertando a curiosidade das pessoas em conhecer as aldeias. Teve álbum de música ancestral com o DJ Alok, coleção de óculos da marca Chilli Beans e uma coleção de roupas com a Farm Rio. E uma coisa vai puxando a outra. De acordo com o governo do Acre, a circulação de celebridades por aldeias só tem aumentado.
Entre os nomes mais conhecidos, Cameli cita o DJ Alok, o apresentador Richard Rasmussen, a atriz Letícia Spiller, o ator Joaquim Phoenix, o diretor James Cameron e o estilista Francisco Costa, que criou uma linha inspirada na Amazônia após uma visita à região.
"Outros estilistas, como os da Farm e Oskar Metsavaht, fundador e diretor de arte da Osklen, já visitaram aldeias acreanas e tornaram isto público", afirma o governador. E nas cidades do interior, há também inúmeros relatos sobre a presença de famosos indo para as aldeias, mas em visitas sigilosas para não despertar a atenção da mídia.
Festivais indígenas sempre aconteceram nas aldeias desde tempos imemoriais, mas há cerca de 20 anos teve início um processo de abertura para receber pessoas de fora. Os primeiros eventos que começaram a consolidar um circuito de etnoturismo na região foram realizados pelos Yawanawa e Katukina.
"Se tornaram muito importantes para o fortalecimento das culturas, das vivências, da língua, da culinária e da união entre os povos, porque é quando se reúnem os territórios e as comunidades com turistas brasileiros e estrangeiros", conta Francisca Arara, secretária dos Povos Indígenas do Acre.
Ela também comemora o avanço do protagonismo feminino. "Sou a primeira mulher secretária indígena do nosso estado". Segundo ela, é outro movimento que está ganhando força por lá. "Metade da minha equipe é composta por mulheres", destaca. Ela acredita no bom resultado desse equilíbrio de forças para o fortalecimento da cultura indígena e dos festivais.
"A expectativa é que em breve todos os eventos indígenas sejam incluídos no calendário oficial das festividades do Acre", diz a secretária. Nos próximos meses de julho e agosto serão realizados 10 festivais indígenas que contam com algum apoio do governo estadual.
Atualmente todas as etnias acreanas fazem festivais e vivências, com exceção dos povos isolados. Tudo indica que o etnoturismo tornou-se uma tendência na região. O crescimento acelerado da quantidade de eventos do tipo na última década demonstra isso. Em 2013 eram apenas três, a partir deste ano 20 passaram a fazer parte do calendário oficial do Acre, mas em 2018 o número total já passava de 40, segundo informações da secretaria de comunicação do estado.
A mola propulsora desse movimento parece ser a ayahuasca, bebida psicodélica, preparada a partir de duas plantas amazônicas, o cipó Banisteriopsi caapi e folhas do arbusto Psychotria viridis. O consumo do chá, que no Brasil é permitido para uso ritual, está crescendo globalmente, em grande parte graças aos sinais animadores da ciência. Pacientes com dependência e depressão apresentaram melhoras significativas em pesquisas clínicas recentes.
Mas o avanço dos estudos sobre o potencial terapêutico da ayahuasca e o consequente interesse de grandes farmacêuticas em transformar a beberagem num medicamento é uma preocupação para os povos indígenas. Pajés, curandeiros e xamãs, fundamentais para o início das pesquisas psicodélicas, cobram que o conhecimento ancestral indígena sobre as plantas alucinógenas tenha seu valor reconhecido.
O assunto foi tema de debates durante a última edição da Conferência Indígena da Ayahuasca, realizada em 2023 às margens do rio Juruá, a apenas 18 quilômetros da fronteira entre Brasil e Peru. Esse é outro evento que vem ganhando força no Acre neste caso de escopo político. O próximo encontro está previsto para acontecer em janeiro de 2025.
A primeira edição da Conferência Indígena da Ayahuasca ocorreu em 2017 e surgiu como uma forma de reação a outra conferência: a Aya Conference, organizada pelo Iceers (Centro Internacional para Educação, Pesquisa e Serviço em Etnobotânica), que em 2016 aconteceu em Rio Branco, reunindo a nata da ciência psicodélica na capital acreana. Indígenas foram convidados, mas sentiram-se coadjuvantes durante o encontro.
"A ayahuasca é uma bebida sagrada dos povos originários da Amazônia, um elemento central de rituais xamânicos herdados da cultura indígena", defende o governador do Acre. "Faz parte da cultura, da tradição dos nossos povos, principalmente como elemento de cura e purificação.”
Mas, o político lembra que o uso precisa ser feito em um contexto seguro, com pessoas que tenham conhecimento. Cameli relata ter bebido ayahuasca e conhecido de perto as chamadas medicinas da floresta em trabalhos espirituais de várias aldeias indígenas do Acre e também no Santo Daime e na UDV (União do Vegetal), grupos religiosos que também usam o chá em seus rituais.
"Sempre me trouxe clareza e reflexão sobre a minha vida". Ele defende que são tradições verdadeiras com raízes espirituais fincadas no conhecimento de mestres e pajés. "As medicinas da floresta devem ser valorizadas porque são um patrimônio espiritual da humanidade".
Reconhecer o chá amazônico como patrimônio da humanidade parece algo ainda bastante distante de se tornar realidade, afinal nem no Brasil houve avanços nessa direção, apesar do histórico de uso tradicional. Por acaso, há 16 anos arrasta-se o processo de reconhecimento do uso ritual da ayahuasca como bem cultural de natureza imaterial no Iphan. Recentemente a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal no Acre, cobrou agilidade do órgão.
Iniciado em 2008, o processo para a patrimonialização do chá amazônico foi paralisado em 2013. Isso porque o levantamento solicitado pelo Iphan dos usos rituais da ayahuasca identificou a necessidade de incluir os usos indígenas da bebida psicodélica e de expandir a pesquisa para outras comunidades.
Questionado sobre o caso, o governador do Acre se declara favorável ao processo. "A ayahuasca é um patrimônio imaterial do povo brasileiro". Mas, defende a inclusão do conhecimento tradicional. "É impossível falar na patrimonialização dessa medicina da floresta sem incluir os povos indígenas", conclui Cameli.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/psicodelicamente/ayahuasca-kambo-e-rape-festivais-indigenas-atraem-visitantes-e-fortalecem-comunidades-no-acre/
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