O movimento “não é não” é contra Pepe Le Pew. Foi feito para pegá-lo. Somente isso. De real e efetivo, não tem nada contra a violência sobre a mulher. É um movimento para proteger gatas de gambás sem-vergonha.
A cabeça do identitário tem minhoca. Em geral, ele não se resolveu sexualmente, ele passou por traumas, mas certamente não por um trauma provocado por Pernalonga beijando Gaguinho, ou o Pica Pau falando que queria Iates, dinheiro e mulheres. O trauma do identitário foi provocado por uma imagem realmente ruim. O pai batendo na mãe. Ou simplesmente o pai fazendo sexo com a mãe (o modo objetivo que o sexo entre nós é realizado é necessário para o gozo, mas não é entendido pela criança). Ou uma investida de violência ou algo parecido por conta de alguém da família ou próximo, ou mesmo disfunções que fazem com que a pessoa não sinta nenhum prazer não só no sexo, mas na vida em geral. As imagens variadas nos atingem. Não ligamos para as problemáticas, ficamos invocando as não problemáticas. Ficamos invocando contra imagens que nos parecem problemáticas por conta de movimentos ideológicos sobre nós. Não investigamos as imagens. Não entendemos as imagens e suas relações com crianças pequenas.
Não nos interessamos por imagens “perigosas” quando crianças, não fazem sentido para nós quando somos crianças, e então as abandonamos. Pouco do que os adultos nos protegem realmente iria nos influenciar. Os adultos censuram imagens que a eles são imorais, mas não às crianças. Mas, uma ou outra imagem, mesmo sem sentido, nos atinge na infância, nos capta, no faz normalizar certos comportamentos. Age de maneira mais semiótica que semântica. E então, gera uma série de reações futuras. São as imagens sobre as quais boa parte dos adultos não dão atenção que geram problemas. A semiótica é sorrateira.
Não podemos colocar as crianças em redomas, mas podemos ser mais atentos a respeito de imagens de violências efetivas que explodem na mídia. Todavia, nem sempre sabemos o que é a violência que, como imagem, atinge a criança subrepticiamente. Pepe Le Pew, o “beijo gay” e os filmes sanguinolentos de Tarantino não são responsáveis por nada de mal. Eles são imagens propositalmente ficcionais. O mundo infantil parece entender isso. O mundo adulto inculto não entende.
Dependendo da imagem, ela pode nos induzir, uma vez adultos, a nos tornamos não necessariamente medrosos, mas o pior: insensíveis à dor alheia. É aí que mora o problema. Agora nas férias, a Globo exibiu um filme onde o herói da trama fazia outros ensacarem uma moça negra: cena de asfixia, cena de tortura contra a mulher, contra a mulher negra: os torturados eram todos negros. Depois, para que a trama pudesse andar, os bandidos eram acusados de pedofilia. Claro né? Pensei na Globo como o canal Brasil Paralelo, passando filmes que Damares, Michelle Bolsonaro e Trump gostam. Os três, eu acredito, não são insensíveis, eles são hipersensibiizados pelas cenas. Adoram. Damares só goza assim. Aliás, o enredo, os diálogos é que podem pegar adultos. Pode pegar bolsonaristas ou propensos a não respeitarem a lei, e fazê-los continuar a serem bolsonaristas. Agora, a imagem do ensacamento, essa imagem, ela é perigosa: pega crianças, sem elas saberem. Pegam pelo cantos dos olhos.
Imagem assim pode gerar a forma de um adulto gozar, e ao mesmo tempo gerar um adulto incapaz de ser contra a tortura, pois se trata de coisa que gera a insensibilidade à dor do outro. É nisso que a mídia guarda seus problemas. Não queremos censurar. Não sabemos censurar. Mas precisamos aprender que a subjetividade maquínica tem uma parte de sua formação feita pela profusão de símbolos, não por discursos. Os que lidam com a mídia deveriam estudar isso, e tentar melhorar o que geram na TV e na infosfera em geral.
A inflação semiótica e a deflação semântica, que mostrei em livros recentes, está se fazendo valer. Não deveríamos estar preocupados com as imagens de lutas, beijos ou mesmo sangue. Deveríamos estar preocupados com as imagens que normalizam o sofrimento do outro. O problema todo está na simbologia, o que realmente gera o adulto que, antes de ser traumatizado, está disposto a compactuar com traumas que atingem outros, principalmente se os outros são mesmo Outros.
As crianças não gritam e não fazem caretas diante das piores imagens. É por aí que deveríamos começar a investigar.
Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista.
Fonte: https://ghiraldelli.online/2024/01/04/as-imagens-perigosas/
Nota: a palavra "identitário" não está bem empregada. Os conservadores e grupos de direita se apropriaram desse termo e tem o utilizado para suas pautas. A lei "não é não" infelizmente foi necessária por causa do assédio inconveniente de muitos homens que se acham no direito. Mas é preocupante e exagerado. Ao ver a propaganda no metrô, com duas mulheres sentadas e cercadas de funcionários do metrô, é um elogio dos sistemas de repressão do Estado. Parece que são uma segurança privada. Nós não precisamos de mais repressão e opressão sexual. Nós não precisamos desse Puritanismo. O que falta é orientação e educação sexual.
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