Bárbara, que nasceu em Bocaina, município de 10 mil habitantes no interior de São Paulo, conta que não sabia o quanto o gesto poderia repercutir internamente na instituição.
A defensora escolheu a graduação em direito para se emancipar de um contexto familiar rígido.
"Desde meus 8 anos de idade, tive vários problemas com a minha família que não aceitava a maneira como expressava essa identidade. O direito surgiu como opção porque, no meu imaginário daquela época, poderia me dar independência financeira. Mas só quando estagiei na Defensoria Pública, comecei a ver sentido no que estava fazendo".
Em 2017, fez estágio voluntário na Defensoria Pública de São Paulo, em Ribeirão Preto, onde cursou a faculdade. Depois, trabalhou por mais de um ano na área da infância e juventude do órgão.
Bárbara se reconhece como uma pessoa não-binária há dois anos com ajuda de Grey's Anatomy, série da qual é fã. Em 2021, quando apareceu a primeira personagem não binária, interpretada por ER Fightmaster, ela começou a refletir sobre esta possibilidade.
"Fui pesquisar sobre a vida de ER, li entrevistas e percebi que não era só uma questão de expressão de gênero, era uma questão de identidade", conta.
"Vi essa pessoa falando sobre como existem muitos números entre 0 e 1. Existem muitas identidades entre o masculino e feminino, além de homem e mulher. A pessoa pode se sentir confortável sem precisar decidir estar em lugar nenhum. E percebi que estava confortável nesse limbo. Embora seja lida como mulher 100% do tempo, isso parou de me bastar".
Nesta época, Bárbara conta que começou a brincar com outras expressões de gênero. "A primeira vez que fui numa barbearia, não conseguia parar de chorar na frente do espelho porque parece que foi um alívio tão grande. Sempre quis ter cabelo curto, pude. Ou a primeira vez que entrei numa loja e comprei uma roupa na seção masculina. Tudo isso me foi negado durante a infância e adolescência", relata.
"Só sabia que tinha alguma coisa em mim que não estava dentro da caixinha que esperavam. Essa questão da minha expressão de gênero na infância incomodou muito, porque era uma criança moleca. Depois, quando adulta, me via como uma sapatão mais masculina, caminhoneira. Mas ainda assim, esses rótulos não me bastavam."
Bárbara não alterou nenhum documento até agora porque em São Paulo, estado onde nasceu, o registro para pessoas trans também se enquadra entre masculino e feminino.
"Não existe o meio termo, então não poderia ser retificado extrajudicialmente. Teria que entrar com um processo judicial, mas que não era prioridade para mim, no momento, porque me sinto confortável com os meus pronomes", conta.
Ela afirma que não imaginava a repercussão do seu gesto, ao preencher o formulário da Defensoria Pública, para a instituição. "Não imaginava que seria a primeira em todo o país", diz.
"Essa questão da identidade de gênero é uma coisa muito recente para mim. Na verdade, quando olho para trás depois de muita terapia, entendo que na verdade, é uma questão que me acompanha desde a minha infância, só que apenas de dois anos para cá isso tem vindo com mais força para mim. Acho que eu me encaixei a vida inteira, só não sabia o nome".
Nos próximos dois meses, a nova defensora participa de um curso de formação em Curitiba até conhecer qual será a comarca onde vai atuar, que deve ser no interior do estado, onde o órgão precisa expandir o serviço. Independentemente de onde seja, ela sabe que quer se especializar na vara da infância e juventude. E também expandir este debate sobre identidade de gênero — dentro e fora da instituição.
"É um tema espinhoso porque falta muita informação. As pessoas acham que a criança com 10 anos entendeu que é trans e já vai fazer a transição, reposição hormonal ou cirurgia. Não é assim que funciona. Existem outros tipos de protocolos, por exemplo, o bloqueio de sinais de puberdade, que seria o crescimento dos seios ou pelos, para dar tempo para essa criança ou adolescente refletir sobre isso. E esta pessoa deve ser assistida por uma rede com assistência social, psicólogo, médico", afirma. "Precisamos começar a enxergar as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos".
Para ela, a Defensoria Pública é um espaço importante de garantia de políticas públicas em diversidade. "A Defensoria Pública é um megafone de vozes. É uma instituição vocacionada para proporcionar acesso à justiça. Penso que, como defensoria não-binária, posso trazer esse letramento para a instituição", diz.
"Ainda existe um grande preconceito por conta dessa visão de mundo extremamente binária, que foi reforçada nos últimos anos. Seria importante, no primeiro momento, a gente trazer o letramento, expor isso dentro da instituição, expandir isso para a sociedade. É a chance das pessoas de entenderem o que é verdadeiramente o outro".
Fonte: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2024/05/03/1-defensora-nao-binaria-toma-posse-no-parana.htm
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