quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Cainitas e outros gnósticos

As notícias que temos dos cainitas chegaram até nós por Ireneu de Leão (Adversus Haereses, 31,1 - 1995), Filástrio, Bispo de Bréscia (Liber de Haeresibus, 2), Hipólito de Roma (Refutatio Omnium Haeresium V, 16-9) e, principalmente, por Epifânio de Salamina (Panarion Haeresium, 38).  

Por sua vez, as referências explícitas a Caim, e a sua reformulação identitária, (relativamente à proto-ortodoxia cristã) enquanto topos teológico, fazendo-o descender directamente dos arcontes intermédios do Pleroma ou coadjuvantes de Samael/Yaltabaot/Jahvé (o primeiro arconte), são especialmente abundantes na Biblioteca gnóstica/hermética de Nag Hammadi. Encontram-se referências a Caim na “Hipóstase dos Arcontes” e em “Sobre a Origem do Mundo” (evangelhos afins de um judaísmo esotérico), no “O Evangelho de Filipe” e na “Exposição Valentiniana” (valentinianos) e no “Apocalipse de Adão” e no “Apócrifo de João” (marcadamente sethianos onde, mais amplamente, se incluirá o Cainismo).

Em todos estes textos, Caim assume uma clara ascendência divina, ainda que, sempre, por via de uma familiaridade com os arcontes e não, directamente, com o pré-Pai, o Deus gnóstico criador, anterior a Yaltabaot, mero demiurgo ou intermédio criador, cego face à sua natureza criada e invejoso da proximidade ontológica do Homem face ao criador verdadeiro. Ao contrário de Caim, Seth, por exemplo, é, pelos menos nos textos de Nag Hammadi, e particularmente no “Apocalipse de Adão” (65), apresentado como provindo de uma nova geração, mais pura e perfeita, aquela que, exactamente, veio substituir Abel (e Caim). Seth, ao contrário de Caim (e do próprio Abel), seria filho autêntico de Adão e Eva e não de Eva e de Yaltabaot, como Abel e Caim, filhos ilegítimos e impuros, resultado de uma relação entre seres de espécies diferentes.   

Sabemos bem, no entanto, como as escrituras gnósticas são, por um lado, múltiplas e, por outro, incongruentes, seja pela natureza multitudinária das próprias seitas gnósticas, seja pela natureza fragmentária do que chegou até nós. 

De qualquer modo, não nos chegaram textos directa e ostensivamente cainistas, no sentido em que fixam certa doutrina ou organização teológica.  

O que conhecemos dos cainitas provêm-nos dos heresiólogos, particularmente de Ireneu de Lião e de Epifânio de Salamina.      

Em particular, escreve Ireneu:  

“Outros dizem que Caim deriva da Potência Suprema e que Esaú, Coré, os sodomitas e semelhantes eram todos da mesma raça dela; motivo pelo qual, mesmo combatidos pelo criador, nenhum deles sofreu algum dano, porque Sofia atraiu a si tudo o que lhe era próprio. Dizem que Judas, o traidor, sabia exactamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres. E apresentam, à confirmação, um escrito produzido por eles, que intitulam Evangelho de Judas” (Adversus Haereses, 31,1).

Como sabemos, o “Evangelho de Judas” veio integralmente ao mundo contemporâneo em 1978, em Jebel Qarara, no Egipto Médio, tendo sido recuperado e divulgado em 2000, sob o fogo de grande divulgação mediática. Mas, como é manifesto, a sua existência era já bem conhecida no mundo antigo, pelo menos até ao adormecimento da gnose, aí algures pelo século V ou VI EC. 

É certo que o “Evangelho de Judas” nada nos diz, directamente, do Cainismo e, na verdade, a não ser pelo efeito de uma eventual lacuna, nem sequer é referenciado. Mas, como assinalam os estudiosos dos textos gnósticos, a lógica interna do “Evangelho de Judas” é em tudo congruente com aquilo que dos Cainitas nos diz Ireneu e, sobretudo, Epifânio (Panarion, 38) e Hipólito (Refutatio Omnium Haeresium V, 16-9). 

Desde logo, numa breve e curiosa referência (que muito nos será útil mais à frente), Hipólito atribui (lendo a heresia ofítica) o “sinal” de Caim “à serpente universal … o sábio oráculo de Eva. Este é o mistério do Éden; este é o rio que flui do Paraíso; este é o sinal com que foi marcado Caim. Caim é aquele cuja oferenda não foi aceite pelo Deus deste mundo, quem, em troca, recebeu o sangrento sacrifico de Abel; pois o dono deste mundo deleita-se com sangue. 

Esta serpente é a que, nos últimos dias, no tempo de Herodes, apareceu debaixo da forma de homem…” (Refutatio Omnium Haeresium V, 16-9)          

A aproximação de Caim à estirpe pneumática e gnóstica de origem ofítica, com origem na serpente instrutora, é aqui por demais evidente, realizando-se uma clara inversão daquilo que é a compreensão proto-ortodoxa da serpente, a desafiadora por antonomásia, e de Caim.  

Mas onde mais vastamente se tematiza o Cainismo é em Epifânio de Salamina (Panarion Haeresium, 38). Vale a pena sintetizar aqui o conjunto das referências de Epifânio, parafraseando, grosso modo, a síntese de Piñero e Torralas-Tovar (2006: 68-69) que, adverte-se já, nem por isso seguem aquilo que percebemos directamente dos Cainitas na Biblioteca da Nag Hammadi, como, aliás acontece com a referência já citada de Hipólito.  

Assim, escreve-se no Panarion, 38: 

Que a seita cainita toma o seu nome do Caim bíblico;

Que Caim e Abel são de descendência angélica, uma vez que também o são Adão e Eva, de que são originários, embora Caim de uma genealogia mais forte e Abel de uma mais fraca;

Que Caim, Esaú, Coré e os sodomitas têm ascendência angélica e que, portanto, devem ser valorados positivamente;

Que os Cainitas também se inspiram nestes personagens;

Que o Demiurgo tentou-lhes fazer mal mas que não conseguiu, pois eles refugiaram-se no Pleroma;

Que Judas recebeu uma revelação especial;

Que existe um Evangelho de Judas;

Que parte das suas doutrinas provém dos Apóstolo Paulo, de que se escreveu a “Ascenção”, contendo doutrinas esotéricas (texto que nunca foi descoberto);

Que os Cainitas se afastam, em tudo, do Criador (o demiurgo, Yhavé) e que ascenderão até às esferas superiores através do sacrifício de Cristo, acto que Judas de algum modo intervém;

Que Cristo sacrifica o corpo de que está revestido;

Que Judas entregou um Cristo mau para sacrifico;

Que Judas cumpriu um sacrifício divino, por desígnio divino;  

Que Judas é digno dos maiores louvores.

A síntese, imagino, é suficientemente clara quanto ao que os Cainitas pensam e quanto às chaves interpretativas com que se aproximam dos textos canónicos, particularmente do Génesis e das várias Paixões evangélicas. Assim, independentemente das interessantes questões hermenêuticas que a sua praxis interpretativa levanta, o que vale a pena assinalar é o lugar central que, na economia do seu pensamento, e da sua acção, ocupa o gesto da inversão textual, relevante não só, embora grandemente, pelo próprio gesto, mas, sobretudo, pelo que esse gesto traz consigo de uma antropologia, um soteriologia e ontologia novas, embora, como não podia deixar de ser, radicadas no pensamento circulante, mesmo que subterraneamente. 

Como para a maioria dos gnósticos, o que a descrição cainita de Ireneu, Hipifánio e Hipólito nos mostra é, antes de tudo o mais, uma recusa do javheismo, a partir de uma narrativa mitológica completamente diferente daquela que se dá no Génesis judaico mas, também, uma recusa da Paixão como acontecimento histórico, exactamente porque a história não é, para os gnósticos, nada mais nada menos que a própria condição de aprisionamento javheista, configurada pelo arconte demiúrgico. 

Em particular, a narrativa gnóstica do génesis intelectualiza-se, complexiza-se e aprofunda-se dramaticamente face à descrição linear que dos episódios é realizada pela ortodoxia. Os conflitos genesíacos são lidos não como simples conflitos familiares, mas como autênticos dramas políticos e cosmológicos, em que os papéis e estatutos dos contendores principais (Jahavé e a Serpente, Sophia/Sabedoria, a intercessora do pré-Pai) estão em instável posição e em que o prémio do vencedor é a própria alma do humano ou, se quisermos ir mais longe, a alma de cada um dos próprios contendores principais. Visando uma via de inscrição experiencial mais profunda que o simples reconhecimento histórico e cosmológico, a posição hermenêutica/gnóstica no Génesis exige ao intérprete uma relação com o texto que vise uma transformação interior mais que um simples reconhecimento nomológico, que, vindo do exterior, sempre será visto como uma ameaça à sua integridade, na verdade a ameaça por antonomasia à sua integridade pneumática.  

O mito gnóstico (numa apresentação genérica e passando por cima das imensas variantes e pormenores) coloca no início (na verdade antes de todo e qualquer início concebível, num topos sem tempo e lugar) um pré-Pai, unidade e fonte de toda a realidade. Por um processo misterioso, este pré-Pai assimetriza-se e dá à luz uma tríade que, por razões várias, se vai dividindo em sucessivas multiplicações de si mesma. Conforme os sistemas em presença, estas entidades, resultado das sucessivas divisões e subdivisões do pré-Pai (os eons), podem ser trinta e três ou de número virtualmente infinito. O conjunto destas entidades constitui o Pleroma, o universo do divino propriamente dito. Uma das questões mais misteriosas é, então, a de saber se o pré-Pai é verdadeiramente uno ou múltiplo ou se, até, é unitas multiplex, para utilizar a linguagem de Giordano Bruno, chave notavelmente anacrónica para a interpretação esotérica da gnose cristã primitiva de aqui falamos. A questão da Unidade ou da Multiplicidade do pré-Pai é central na compreensão da gnose cristã primitiva, já que ela irá mais facilmente autorizar uma compreensão do divino em termos de uma Unidade monológica ou, pelo contrário, em termos de uma divisão “originante” (nos termos da qual no princípio estaria não a Unidade - o Um - mas a diferença – o Dois -, ou a Unidade como Diferença – o Um como Dois), fonte de toda a divisão posterior, permitindo à gnose lidar com o problema do Mal em termos da natureza do próprio divino.  

Então, por outra razão misteriosa, algures no Pleroma o estado de Graça e de plenitude que aí se vivia vai ser interrompido desde um gesto de Sophia/Sabedoria, que quis criar sem ter em conta a sua natureza conexa com a totalidade do Pleroma, particularmente com o pré-Pai. A criação de Sophia foi a de algo disforme e assutador:  

“Logo que viu a obra desejada, esta transmutou-se na figura de um estranho dragão com rosto de leão, de olhos resplandecentes como relâmpagos. Lançou-o para longe dela e daquele lugar, a fim de que nenhum dos imortais o visse, porque o tinha criado em ignorância. Envolveu-o numa nuvem luminosa e colocou-o num trono no meio de uma nuvem para que ninguém o visse excepto o Espírito Santo, que é chamado a ‘mãe dos viventes’. E deu-lhe o nome de Yaltabaot” (Apócrifo de João, 10, 6-12).

Yaltabaot, está bom de ver, é Javhé, e tudo que dele resultou só poderá ser visto como impregnado da sua ignorância, arrogância e maldade, com excepção do Homem, resultado da acção do pré-Pai, via Yaltabaot, mantendo-o embora na ignorância da natureza da sua criação. Esta acção do pré-Pai visou responder positivamente ao arrependimento e pranto de Sophia/Sabedoria que, por sua vez, encarnou na espiritual/mensageira/serpente para insuflar o espírito no Homem, a quem, entretanto, arranjou uma auxiliar, Eva, ela própria uma emanação da sua intelecção e que se constituiu como sua companheira (nalgumas versões entretanto violada por Yaltabaot, dando origem a Abel e Caim). 

Uma das passagens mais impressionantes e belas deste mito é o poema em que o escritor do “Apócrifo de João” descreve o Jardim do Éden como uma prisão venenosa, em que  

“O seu alimento é amargo,

A sua beleza é perversa,

O seu alimento é enganoso,

As suas árvores são a impiedade,

O seu fruto é um veneno mortal,

A sua promessa é a morte” (21, 14-19).

A inversão, está, enfim, completa. O Paraíso é campo de morte e Javhé o seu jardineiro. A expulsão do paraíso constitui não um acto da vontade de Javhé mas o resultado de uma trama de Sophia/Sabedoria, visando salvar a geração Humana da prisão dourada de Yaltabaot. Na verdade, Adão e Eva não foram expulsos do paraíso. O que ocorreu foi uma fuga, planeada e executada por intersecção do pré-Pai e do arrependimento de Sophia/Sabedoria. 

Daqui até ao mais completo antinomianismo vai apenas um passo. 

A salvação só se alcançará, então, através da negação deste mundo e dos seus condicionamentos sociais, antropológicos e cosmológicos, resultado da lei mosaica e Javehista, até à completa reintegração pleromática, que não constitui mais, afinal, que um regresso do sopro divino a si mesmo, numa curiosa inversão salvífica, em que não é o criador que salva a criatura mas a criatura, o homem decaído, que salva o criador, ao mover-se no sentido da sua plena reintegração em si mesmo.  

Para os gnósticos, então, as leis deste mundo não se lhe aplicam a não ser por decaimento ou fraqueza e o pecado, a infracção dessas leis, não é coisa que se lhe pegue, uma vez que a sua natureza não é deste mundo, já que este mundo é o mundo do arconte Yaltabaot, o Javehista cego e arrogante que se diz o Deus único mas que não passa de um aborto da divindade. 

Não será difícil entender, agora, como faz sentido que os gnósticos elejam como seus heróis exactamente aqueles que são os vilões da ordem Javehista, já que são esses que representam, de modo especialmente conspícuo, o combate antinomianista e anti-Javehista. 

Ora, de todos estes vilões, Caim não é, com certeza, dos mais pequenos e, portanto, daí a sua relevância teológica.  

Mas a figura, ou o topos, da inversão, se assenta em si mesma como um gesto destrutivo e iconoclasta, nem por isso põe de lado a necessidade de subtis argumentações teólogicas, que exploram até ao limite interpretativo as margens, os não-ditos e as ambiguidades bíblicas mais subtis, numa reescrita infinita da Palavra de Deus. E essa reescrita infinita (que, sem dúvida, inspirou a Cabala judaica) configura, certamente uma das mais fortes relativizações e desconstruções do divino Javehista, desde logo a partir da assumpção de um certo tipo de experiência de si e do mundo só acessível a um conjunto especial de eleitos, os pneumáticos, ontologicamente e existencialmente preparados e predispostos para uma via esotérica e secreta da compreensão da Palavra, de que mesmo os textos bíblicos canónicos não deixam de dar testemunho.  

Ora, esta experiência do “estranhamento” - a fenomenologia existencial do próprio que autoriza e exige aquele giro hermenêutico tipicamente gnóstico - constitui uma “descoberta” e tematização exemplarmente novas, especificamente gnósticas, emergindo no início da EC como a experiência de que a nossa alma não é deste mundo e que nas maiores profundidades de nós mesmos existe um irredutível absoluto que quer retornar a si mesmo e que só não o faz por força do enclausuramento cosmológico.  

Por sua vez, a relevância desta experiência de estranhamento e de nihilização da existência é que ela é a condição de possibilidade da autêntica experiência religiosa de si, de re-conhecimento ou re-ligação ao seu si mesmo mais profundo, na verdade a única via necessária à autêntica experiência religiosa.     

Mais explicitamente, este processo experiencial de estranhamento percorre um caminho de terror, angústia, medo, crime, despertar e lucidez, que o notável Evangelho da Verdade descreve com impressionante beleza e fulgor:

“Uma vez que existia terror, perturbação, instabilidade, vacilação e discórdia, eram muitas as ilusões e as vácuas ficções que os ocupavam, como se estivessem submersos no sonho e convivessem com sonhos inquietantes. Fugiam para um qualquer lugar, ou davam a volta extenuados, depois de perseguir outros, ou agrediam, ou eram agredidos, ou caiam de grandes alturas, ou voavam pelo ar, ainda que não possuíssem asas. Por vezes, acontece-lhes como se alguém os fosse matar, ainda que ninguém os perseguisse, ou, então, como se eles próprios matassem os seus vizinhos, porque se encontravam manchados de sangue. Uma vez que os que passam por estas coisas acordam, nada vêem, ainda que estivessem no meio de todas estas confusões, uma vez que elas não existem. Semelhante é o motivo dos que rechaçaram a ignorância para longe de si, da mesma maneira que não têm em nenhuma consideração o sonho, como também não consideram as suas trinta acções como algo de sólido, mas abandonam-nas como um sonho tido durante a noite. Apreciam o conhecimento do Pai como o amanhecer. Cada um deles actuou desta maneira como quando estavam adormecidos enquanto eram ignorantes. E este é o modo como chegaram ao conhecimento, como se despertassem. Feliz será aquele que chegue a dar a volta e acorde! E bem-aventurado é o que abriu os olhos do cego. E o Espírito correu atrás dele apressando-se a acordá-lo. Tendo estendido a mão ao que jazia sobre a terra, firmou-o sobre os seus pés, porque ainda não se tinha levantado” (Ev.V, 29, 30). 

Entretanto, para quem pense que a experiência do estranhamento como via de acesso à experiência religiosa esotérica mais profunda e autêntica pode ter tido um lugar específico, temporalmente definido, mas entretanto ultrapassada, Peter Sloterdijk, num livro luminoso intitulado “O Estranhamento do Mundo”, dá voz a essa mesma experiência do estranhamento e da religiosidade através de palavras tão próximas do evangelho valentiniano que não deixa de nos surpreender, atribuindo-lhe, mesmo, o estatuto de caminho único de acesso à religiosidade no mundo contemporâneo: 

“Na medida em que ser homem na modernidade significa, primeiramente, automediação e autoconexão à rede, os bons velhos conceitos metafísicos Deus e Alma apenas podem ser pensados no modo de teorias das catástrofes; como desconexão à rede, interrupção da mediação, choque, pausa. Tilich, o teólogo fronteiriço, expôs isto inequivocamente através das suas metáforas divinas e expressionistas; segundo ele, Deus já só é possível no cosmos auto-centrado como um invasor furtivo; apenas como infractor e perturbador é que ele se pode manifestar como a diferença a respeito de tudo o que se comunica e conecta com a rede. […] Analogamente, certos psicólogos do século XX situaram o local ontológico da alma nas interrupções – nos sintomas neuróticos, nas convulsões, nas síncopes. Na era da conectibilidade, as chances da ‘alma’ residem nas catástrofes nervosas” (Sloterdijk, 2008: 69).     

Repare-se, mais uma vez, como a hipótese de Sloterdijk, levantada para os actuais tempos limite, se articula quase perfeitamente com a catástrofe nervosa do Evangelho gnóstico do século III EC, que progride notavelmente da catástrofe para o amanhecer, da experiência do estranhamento para a experiência mística do divino:

“Fugiam … extenuados … perseguir … agrediam … agredidos … caiam … voavam … matar … matassem … manchados de sangue … acordam … confusões … não existem … rechaçaram a ignorância … não têm em nenhuma consideração o sonho … não consideram as suas trinta acções como algo de sólido … abandonam-nas como um sonho tido durante … Apreciam o conhecimento do Pai como o amanhecer.”

Voltemos, então, ao Cainismo.  

É esta experiência de estranhamento que conduz à necessidade de tornar Caim um herói, de acordar do sonho através de um processo dissolução da “aliança” tornada aprisionamento nomotético.

Assim sendo, não será rigorosamente nada de estranhar que a experiência gnóstica de estranhamento tenha em vários autores e pensadores contemporâneos as mais variadas tematizações, de que Peter Sloterdijk, na Filosofia, é talvez, o caso mais impressionantes.  

Mas é na literatura que a Gnose mais se expressa e, assim, o “Caim”, de Saramago, é mais uma expressão dessa expressão da gnose eterna, que se revela, desde há milénios, na experiência mais ou menos subterrânea da Humanidade.

Fonte (citado parcialmente): https://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_14/francisco_teixeira.html
Nota: talvez eu esteja errado ou exagerando, mas eu vejo aqui uma semelhança com a Bruxaria Tradicional de Tubal Caim.

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