Chega a ser uma confissão ao deparar com um texto intitulado "Apologia ao preconceito" [original perdido] no blog do Roberto Cavalcanti. Meu xará deveria ter lido, antes de começar seu texto, a seguinte definição do Wikipédia:
Preconceito é um juízo preconcebido, manifestado geralmente na forma de uma atitude discriminatória perante pessoas, lugares ou tradições considerados diferentes ou "estranhos". Costuma indicar desconhecimento pejorativo de alguém, ou de um grupo social, ao que lhe é diferente. As formas mais comuns de preconceito são: social, racial e sexual.
De modo geral, o ponto de partida do preconceito é uma generalização superficial, chamada estereótipo. Exemplos: "todos os alemães são prepotentes", "todos os norte-americanos são arrogantes", "todos os ingleses são frios".
Observa-se então que, pela superficialidade ou pela estereotipia, o preconceito é um erro. Entretanto, trata-se de um erro que faz parte do domínio da crença, não do conhecimento, ou seja ele tem uma base irracional e por isso escapa a qualquer questionamento fundamentado num argumento ou raciocínio.
Partindo dessa premissa, passemos à análise do texto:
Em teoria, o preconceito em si não é bom nem mau. Pode ser certo ou errado, conforme ele venha a se aproximar ou não de um conceito. Por isso o preconceito só possui valor prático. O preconceito funciona como um juízo pré-concebido; como uma ideia não muito amadurecida sobre determinado objeto, muito aproximada da ideia de estereótipo. Um estereótipo não é o preconceito em si, mas uma espécie do gênero preconceito.
O autor não cita qual é essa "teoria" nem o autor desta que afirma que o preconceito em si não é bom nem mau. O preconceito se baseia não em um raciocínio, mas em uma concepção pré-estabelecida, incutida na mente do indivíduo, partindo de visões generalizantes ou estereotipadas a respeito de algo ou alguém. A função do preconceito é o sectarismo, uma ilusão muito empregada por determinados grupos para se sentirem "melhores" ou "superiores", moral, social, politica, cultural ou religiosamente em relação aos objetos, comportamentos ou grupos que são, por prepotência e arrogância dos primeiros, "menores" ou "inferiores".
O estereótipo comumente se baseia num juízo formado acerca de determinado fato pela sua observação sistemática e repetitiva.
Estereótipo é a imagem preconcebida de determinada pessoa, coisa ou situação.[Wikipédia]
Estereótipo: substantivo, conceito infundado sobre um determinado grupo social, atribuindo a todos os seres deste grupo uma característica, frequentemente depreciativa; modelo irrefletido, imagem preconcebida e sem fundamento.[Wikicionário]
Portanto, não há juízo algum no estereótipo, não há uma observação "sistemática e repetitiva", mas uma visão incutida nos indivíduos, partindo da generalização.
Há um motivo para que o autor parta da desconstrução da palavra "preconceito" que é, curiosamente, criticar o "politicamente correto", sendo que o autor parte de um [ou vários] preconceito para definir a ação do [digamos] "patrulhamento ideológico":
A palavra “preconceito” virou uma espécie de mantra politicamente correto. É utilizada de forma tão recorrente para censurar a veiculação de determinados argumentos, que vem funcionando hoje quase como um reflexo incondicionado destinado a silenciar interlocutores.
Sutilmente [ou nem tanto, ao menos para mim] o autor descreve a crítica como censura, mas censura o uso da palavra "preconceito" nas críticas a determinados argumentos. Em breve saberemos a quais argumentos, afinal o autor está apenas no preâmbulo de sua premissa.
A roupagem ética do preconceito enquanto patrulhamento ideológico é o igualitarismo.
O autor falha, pois não explica nem argumentou como ou porque a roupagem ética do preconceito seja o igualitarismo. A crítica a algum argumento, especialmente os que usam a palavra "preconceito" visa exatamente desfazer a generalização ou a falta de fundamento que existe no argumento criticado.
Isto porque a igualdade virou um princípio ético em praticamente todas as legislações dos países ocidentais.
O princípio da igualdade tornou-se um conceito ético e virou lei nos países civilizados para evitar ou limitar as ações violentas, de um grupo ou de uma sociedade, tendo por base o estereótipo e o preconceito contra outro grupo, geralmente minoritário.
Assim, o igualitarismo é tolerante às diferenças e desigualdades, exceto, logicamente, a quem se oponha a tais misturas indiscriminadas, que é logo vítima da intolerância dos igualitaristas, com o rótulo de preconceituoso.
O princípio da igualdade e as leis baseadas nele é exatamente o direito à diferença, mas que, obviamente, deve combater o preconceito, uma vez que este não se baseia no respeito à diferença.
Fato é que a ausência de preconceitos conduz à ausência de distinções de qualquer natureza e vislumbra uma sociedade igualitária. Assim, induz-se promiscuidades de toda ordem sob o pretexto de combate ao preconceito.
O princípio da igualdade não elimina as distinções, as elogia e garante espaço para que todas se manifestem igualmente, sem as distorções incutidas pelo preconceito.
A demonização do preconceito responde pela ruptura com qualquer ideia de hierarquia, seja social, cultural ou moral, com vistas à produção de uma sociedade sem classes. Qualquer diferenciação valorativa deve ser abolida.
O princípio da igualdade coloca a hierarquia em seu devido lugar, como função em relação a algo ou alguém, dentro de um contexto. Fora do contexto, a hierarquização torna-se um preceito exatamente para que um grupo arroga a si mesmo a posição prepotente como sendo "melhor" ou "superior" a outro grupo, ou seja, um preconceito.
Se procura abolir qualquer diferenciação valorativa, logicamente combate-se igualmente a moral.
Assim, no combate aos preconceitos combate-se a moral.
O princípio da igualdade não tira nem abole o valor da diferenciação, mas os garante para que todas as diferenciações possam coexistir no espaço social, para evitar que se façam julgamentos morais baseados no preconceito.
A ciência, regra geral, parte de determinadas observações preconceituosas.
A Ciência é o conhecimento ou um sistema de conhecimentos que abarca verdades gerais ou a operação de leis gerais especialmente obtidas e testadas através do método científico.
A palavra ciência, no seu sentido estrito, se opõe à opinião (doxa em grego), e ao dogma, afirmação por natureza arbitrária.[Wikipédia]
Algo que pode ser testado e observado por métodos científicos, que se opõe ao dogma e à afirmação arbitrária dificilmente parte de observações preconceituosas.
Funcionam como o núcleo da produção científica, pois cientistas costumam partir de pressuposições (preconceitos) para confirmarem ou não uma tese (conceito), ou seja, através da produção científica, um conhecimento inseguro (preconceito) torna-se seguro (conceito).
Os cientistas partem de uma hipótese [uma teoria provável mas não demonstrada, uma suposição admissível], não de um preconceito [um conceito infundado não é provável nem admissível].
Na "Política", afirmou Aristóteles que "se o homem, chegado à sua perfeição, é o mais excelente dos animais, também é o pior quando vive isolado, sem leis e sem preconceitos".
Isto é muito natural, pois o isolamento é causa de autodestruição, a ausência de leis implica na preponderância perene do mais forte sobre o mais fraco e a ausência de preconceitos desmoraliza e desnorteia a sociedade.
Curiosamente eu não encontrei a passagem citada pelo autor, mas esta:
Pois se o homem, ao atingir sua máxima realização, é o melhor dos animais, também é, quando está afastado da lei e da justiça, o pior de todos eles.
Quando o autor escolhe um trecho de Aristóteles de forma deliberada conforme lhe convém este pretende emprestar a propriedade do citado ou da obra escolhida ao seu próprio argumento, ele tem a intenção de convencer o leitor de que o que o autor afirma é certo ou verdadeiro. Entretanto a citação foi alterada, o que indica desonestidade intelectual e, ao apelar à propriedade do citado, indica uma falácia ad verecundiam.
A ética de combate ao preconceito é, como visto, uma retórica de fundo comunista, pois visa banir do nosso convívio a moralidade e substituí-la por uma ética igualitária.
O princípio da igualdade deve combater o preconceito porque este não possui moral alguma, visto que parte de um conceito sem fundamento. O princípio da igualdade é observado por países civilizados, tanto pelos que são comunistas quanto os que são capitalistas.
Sem a separação clara dos bons e dos maus costumes, que ensejaria uma visualização clara dos bons e maus cidadãos, e nisso estabelecer discriminações, parece ter como seus fins últimos inviabilizá-las, proibindo toda sorte de proselitismos neste sentido.
Aqui o autor tenta induzir o leitor de que este defende determinados valores universais, mas o preconceito não provém da distinção entre os costumes e os cidadãos, mas da estigmatização de uns em detrimento de outros. A discriminação, tanto dos costumes quanto dos cidadãos, não concede aos pertencentes à essas categorias qualquer privilégio ou preferência, não se tem um comportamento nem se é um cidadão "bom" somente por pertencer a esta categoria, não se é "melhor" ou "superior" que outros simplesmente por pertencer a determinada categoria.
A religião cristã é uma religião repleta de toda sorte de preconceitos e tem como base a Bíblia, como todos sabemos.
A Bíblia é um manual de preconceitos e discriminações.
Começa-se a vislumbrar a real intenção e questão do autor. Ele quer fazer uma apologia ao preconceito com a intenção de justificar ou defender [daí a necessidade de uma apologia] o "direito" que os cristãos fundamentalistas se dão de serem preconceituosos sob a guarida da religião. A bíblia tem preceitos, não preconceitos, que são direcionados ora ao povo Judeu [portanto, não aos Cristãos], ora aos Cristãos [portanto, não a toda a sociedade].
Quando escolhemos previamente determinados locais a serem frequentados ou pessoas a serem evitadas. Baseando-se na ideia de estereótipo, o ser humano tira conclusões antecipadas sobre determinado objeto e, com tais conclusões psiquicamente enraizadas, tende a tomar rápidas e objetivas decisões. Assim, o preconceito serve como norma de prudência para onde quer que rumamos.
Quando escolhemos os locais que frequentamos e pessoas que evitamos, isso se chama bom senso, não preconceito. Toda escolha é feita tendo por base a reflexão, levando em consideração fatos reais, não os incutidos por meio do preconceito.
Um grande malefício no combate aos preconceitos é o de minar a capacidade reflexiva do ser humano, por censurar seu espírito crítico. A capacidade crítica do ser humano é condicionada por certas barreiras que ele não pode romper, sob pena de chegar a conclusões ideologicamente indesejadas.
A capacidade reflexiva e o espírito crítico do ser humano não devem ser baseados em preconceitos, visto que são infundados. Ao aceitar ser condicionado pelas barreiras incutidas pelo preconceito, o ser humano deixou de ter tal capacidade crítica, torna-se uma marionete.
O que se quer ocultar do público nessa pretensa "defesa do preconceito" é que se tenta usar a religião como desculpa. Este discurso em defesa do preconceito, de um cristão fundamentalista, sequer pode ser intitulado de "opinião", mas sim de sentença arbitrária, baseada em uma interpretação distorcida e tendenciosa da religião cristã. Nem se trata de defender a capacidade crítica do ser humano, mas de garantir e resguardar o totalitarismo arbitrário dessa interpretação distorcida e tendenciosa, que quer impingir seus preconceitos, escondidos sob a capa da crença, de forma covarde e hipócrita.
Repostado. Texto originalmente publicado em 27/10/2009, resgatado com o Wayback Machine.
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