No final dos anos 1940, duas missões norte-americanas grandes e importantes chegaram ao Brasil com o objetivo de evangelizar os índios: a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), braço brasileiro da News Tribes Mission – e que hoje mudou o nome para Ethnos 360 –, e a Summer Institute of Linguistics (SIL).
“Nossa relação com os evangélicos e a MNTB é muito antiga, vem desde as décadas de 1940 e 1950. E os resultados são a modificação da nossa vida tradicional do povo Marubo. Só perdemos. Eles condenaram determinadas práticas, que foram abandonadas com o tempo”, define Eliesio da Silva Vargas, representante jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Foi a partir da década de 1950 que a MNTB se instalou em Vila Nova, comunidade Marubo, no Vale do Javari, oeste do estado brasileiro do Amazonas.
Além de levar doenças e causar mortes, os missionários alteram ritos e visões ancestrais indígenas, e consequentemente sua cultura e organização, ao inserir valores cristãos.
“Eles estão em vários lugares do mundo. Desde o século passado estão entrando em grupos indígenas sem nenhum controle. Têm uma coisa capilar, fundam igrejas locais, formam pastores locais e, quando não conseguem entrar numa aldeia, ficam na cidade em volta tentando entrar, fazendo tradução da Bíblia”, explica a antropóloga Aparecida Villaça, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Essa é uma das primeiras providências dos evangélicos ao pisar terras indígenas: traduzir a Bíblia, ou trechos dela. Afinal, o objetivo final é salvar almas. “Há manipulações brutais, vi traduções de trechos selecionados, e o deus deles é todo poderoso, castiga, tudo vê, tudo olha, se zanga”, descreve Lúcia Helena Rangel, antropóloga e professora da PUC-SP.
Na terra onde vivem os Jarawara, povos da região dos rios Juruá e Purus, por exemplo, os missionários chegaram a inventar um ser invisível e demoníaco, que só poderia ser combatido se os indígenas se convertessem à religião evangélica, relata Lúcia Helena.
Inicialmente, os missionários tinham apoio dos órgãos indigenistas, principalmente nos anos 1960, quando ainda havia o Serviço de Proteção ao Índio [órgão responsável pela política indigenista no Brasil e que foi substituído pela Fundação Nacional do Índio, a Funai, em 1967]. “Eles entendiam que a catequese era parte da questão civilizatória e que os missionários ajudavam nisso.”
Entre os casos da presença de missionários junto a povos indígenas e isolados e de recente contato, há atuação da MNTB entre os Zo’é, os Waiãpi, os Yanomami e os povos do Vale do Javari. Também a organização Jocum (Jovens com uma Missão) está presente entre os Suruwaha.
No final da década de 1980, os missionários da MNTB forçaram o contato com os Zo’é e, como consequência, um quarto deles adoeceu e morreu. Nos anos 1990, a Funai expulsou os missionários, mas alguns seguiram na região. Em 2014, Warren Scott Kennell, ex-missionário do grupo, foi condenado a 58 anos de prisão pela Justiça dos Estados Unidos por abusar sexualmente de meninas de uma tribo indígena na Amazônia e por filmar os atos.
A entrada de missionários em tribos no Brasil passou por três etapas. A primeira corresponde à dos estrangeiros evangelizando indígenas, quando chegaram ao país. A segunda, de brasileiros evangelizando indígenas. E a terceira é a formação de índios pastores que evangelizam outros índios. A fronteira final é acessar os isolados.
Esse processo causou mudanças na cultura, na religião e na formação política das aldeias, de acordo com os entrevistados para esta reportagem. A atuação dos evangélicos teve mais sucesso em locais e momentos em que não havia políticas públicas para essas populações, sobretudo atendimento à saúde.
A forma como se aproximam segue um modus operandi. Em geral, eles se aproveitam das brechas do Estado, como a falta de estrutura sanitária. “Vão às aldeias e levam muitos medicamentos. Também aprendem a língua dos indígenas e vão conquistando confiança”, descreve Lúcia Helena Rangel.
Na aldeia indígena onde vive o povo Deni, no rio Cunhuá, o Distrito Sanitário Especial Indígena foi criado em 2000 e começou a ser implementado em 2001, quando o Estado começou a mandar equipes para o local. Esse distrito é uma unidade de responsabilidade federal correspondente a uma ou mais terras indígenas.
“Lá é uma área endêmica de malária, com muita mortalidade infantil, surtos de sarampo e tuberculose. Os missionários montaram uma estrutura fixa na aldeia e foram os primeiros fornecedores permanentes de remédios. E tinham a possibilidade de remover pacientes em situações graves, como picada de cobra”, explica a antropóloga Adriana Maria Huber Azevedo, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Esse auxílio tem um preço: “Depois utilizam isso para criar um sentimento de dívida entre os indígenas e impor a pauta deles.” Ela compartilha relatos de pessoas que disseram que os missionários queriam impedir, por exemplo, o uso do rapé, um pó feito de folhas de tabaco e usado normalmente com fins espirituais. “Eles diziam que tinham raiva dos missionários, mas que deviam a vida a eles. ‘Quando eu estava doente, ele me deu remédio, pagou avião para eu ir para a cidade’.”
A forma como se instalam nas comunidades também segue um padrão: fazem uma pista de pouso, colocam uma antena de TV por satélite, rádio no sistema de telefonia e vão assentando as famílias ao redor da pista. “Até remuneram os indígenas para esses serviços”, comenta a antropóloga.
A partir daí, criam-se dependências. “E começam as interferências políticas, a proibir o rapé, a pajelança [prática de cura feita pelos pajés], o discurso moralista em relação à sexualidade dos indígenas, que muitas vezes não têm só um parceiro, começam a impôr um cristianismo moralista e capitalista.”
Fonte: https://bocado.lat/pt/missionarios-traduzem-biblia-e-criam-demonios-para-converter-indigenas/
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