Quem assistiu ao primeiro (e provavelmente único) debate entre os presidenciáveis dos EUA, Kamala Harris e Donald Trump, viu o candidato de extrema direita ser desmentido ao vivo por uma completa insanidade.
Ele afirmou que imigrantes haitianos entraram na cidade de Springfield (Simpsons?), Ohio, e começaram a roubar pets de pessoas para comer.
A ministra da Segurança de Javier Milei, Patricia Bullrich, afirmou que anarquistas veganos enviaram uma bomba para o escritório da Sociedade Rural Argentina, uma organização ruralista ligada à extrema direita. No entanto, o principal suspeito do caso é, na verdade, um apoiador de Milei.
No Brasil, neste ano, o pânico moral sobre o tráfico de crianças para escravidão sexual no Marajó tornou-se um dos temas recorrentes de histeria coletiva — relatos diziam que grupos internacionais desconhecidos estavam invadindo a região para roubar crianças. A história se espalhou de forma difusa e óbvio, foi esparramada por Damares para prejudicar o governo Lula.
O que todas essas histórias têm em comum? A presença de um grupo nefasto, desconhecido e subterrâneo, supostamente articulado para perpetrar os mais inimagináveis atos de crueldade contra o "cidadão de bem", realizando um fato. Uma hora o fato é mentira, outra hora o agente é mentira. Nunca os dois são verdadeiros.
A narrativa é sempre a mesma: o propagador de fake news pega um tema que existe na realidade — como tráfico infantil, imigração ilegal ou um atentado terrorista — e, em vez de tratá-lo como um problema de segurança pública, coloca-o sob a responsabilidade desse grupo nefasto.
É a mesma lógica da "mamadeira de piroca", do "pizzagate" de Hillary Clinton ou da "vachina". Um "outro" distante — um bilionário, um político, um oriental —, desconhecido do público e aliado às esquerdas, age de maneira irrevogavelmente imoral.
Esse "outro" dialoga com um sentimento quase primitivo de medo do desconhecido. O inimigo não pode ser um sujeito comum, da mesma etnia que você, oriundo do seu país, ou o sistema que falha em proteger as vítimas. Existe um inimigo oculto, invisível e desconhecido, que te ronda e, subitamente, irá destruir tudo o que você conhece.
Essa história não é nova. É o velho "perigo vermelho", inventado e fabricado pela mesma extrema direita desde 1917, ano da Revolução Russa.
Ou o antissemitismo, ainda mais antigo, oriundo da Idade Média.
Os judeus vão roubar seu dinheiro, destruir sua família e acabar com a civilização alemã/francesa/italiana, etc., dizia a extrema direita, especialmente em momentos de crise do capitalismo.
Os comunistas vão roubar seu dinheiro, destruir sua família e acabar com a civilização ocidental, dizia a cartilha liberal e neoliberal durante a Guerra Fria.
Os imigrantes vão roubar seu trabalho e seus pets, destruir sua cidade e acabar com a América, dizem Donald Trump e os neofascistas europeus.
Os anarquistas veganos vão destruir suas fazendas, matar os ruralistas e acabar com a economia argentina, diz Javier Milei.
Você entendeu.
O "estrangeiro" — no sentido mais amplo da palavra — é instrumentalizado para se tornar o motivo de todos os males e medos da sua vida.
(Que o diga o Caturo, aquele português pagão esquisito)
Os métodos mudam: a grande imprensa fomentou o pânico por muitos anos e agora a história muda com as redes sociais. Mas o conteúdo ainda segue sendo um enigma pedagógico.
Resta a nós entender qual é a força capaz de reverter o medo. Nos EUA e no Brasil, os governos de extrema direita foram derrotados, por margens pequenas, em uma condição específica: a pandemia de Covid-19.
Existem outros fascistas que conseguiram se manter no poder, como Viktor Orbán, na Hungria, e outros que ainda podem chegar, como Marine Le Pen, na França.
Esse é o grande desafio da esquerda e dos democratas ao redor do mundo: entender como fazer com que o medo passe e mostrar, de alguma maneira, que essa é a mesma história do século passado, reinventada de maneira cada vez mais tosca e surpreendente.
Fonte: https://revistaforum.com.br/opiniao/2024/9/11/os-veganos-de-milei-os-cachorros-de-trump-ou-como-fazer-uma-fake-news-165381.html
Nota: quem entendeu a referência levanta a mão. Valendo um pedaço de torta de maçã.
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