quinta-feira, 5 de outubro de 2023

A demonização da política

Autor: Francisco Fernandes Ladeira.

“Eu cresci assistindo Casseta & Planeta, eu assisti Danilo Gentili. O deboche, o escárnio sempre fizeram parte da direita”. Esta declaração foi dada por Ana Priscila Silva de Azevedo, em depoimento à CPI dos Atos Antidemocráticos, como justificativa sobre sua participação no ataque às sedes dos Três Poderes, ocorrido no último dia 8 de janeiro.

A fala em questão poderia ser lida como mais um delírio bolsonarista; porém revela a importância da grande mídia para a demonização da política no Brasil.

Segundo Jessé Souza, o discurso de demonização da política possui uma intenção bem clara: diminuir a atuação da esfera estatal em benefício de interesses privados. Em outros termos, trata-se de uma propaganda do clássico paradigma neoliberal: menos Estado; mais mercado.

Dessa forma, busca-se transformar o Estado em reino de todos os vícios, politicagem, ineficiência e corrupção; e, por outro lado, idealizar o mercado como o reino de todas as virtudes, competências e eficiência. Assim, é ocultado o saque dos recursos públicos por parte dos grandes capitalistas (que “compram” os políticos para que ajam de acordo com seus interesses).

Para Márcia Tiburi, a demonização da política tem origem no interesse que os donos do poder econômico têm em dominar a política. Quanto menos gente na política, melhor para as elites que querem se aproveitar dela.

Nessa lógica, o Casseta & Planeta Urgente (mencionado por Ana Priscila) se destacou, na década de 90 e início dos anos 2000, como programa de “humorismo político” (que fez muita gente acreditar que a corrupção era um mal endêmico da política brasileira).

Segundo Hélio de la Peña, um dos integrantes do programa, o Casseta & Planeta Urgente “era uma metralhadora giratória de piadas. Não poupávamos ninguém, independentemente das nossas opiniões pessoais. Trabalhávamos em cima do humor e não havia vaidade”.

No entanto, ao contrário do afirmado por de la Peña, essa crítica política era seletiva. Homens públicos que compactuam com o liberalismo econômico eram poupados de chacotas, enquanto políticos com ideias mais à esquerda eram ironizados. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, era apresentado como um presidente sóbrio, disposto a acabar com a excessiva burocracia estatal. Em contrapartida, Lula era representado como um bêbado (constantemente com uma garrafa de bebida alcoólica nas mãos).

Já Danilo Gentili (o outro nome do humor citado por Ana Priscila) se tornou conhecido nacionalmente após sua participação no CQC, atração da Rede Bandeirantes especializada em sátiras e críticas políticas.

Assim como o Casseta & Planeta Urgente, o CQC tinha a demonização da política como matéria-prima. Sua marca registrada era causar situações constrangedoras para figuras do cenário político, naquilo que o sociólogo Nilton José Dantas Wanderley, em artigo para o Observatório da Imprensa, classificou como “jornalismo de emboscada” nos corredores do Congresso Nacional.

Ainda de acordo com o cientista social, tratar o Congresso como uma casa de tolerância não é uma atitude politizada (ao contrário do que muita gente pensa).

Jogar todos os congressistas na vala comum, demonizando a política, é um viés retrógrado e conservador. Quebrar ou fragilizar nossas instituições não é um bom negócio para ninguém (e o ato golpista de 8 de janeiro confirmou isso). O Congresso é uma amostra da sociedade. E como tal, tem gente boa e gente ruim.

Como não poderia deixar de ser, em 2008, na eleição municipal de São Paulo, o repórter Rafael Cortez, do CQC, perguntou a José Dirceu: “O senhor foi cassado pelo mensalão, o pessoal do PT não ficou bravo com o senhor?”.

Na mesma ocasião, Cortez também questionou a então candidata do PT à prefeitura paulistana, Marta Suplicy, se ela não ficava incomodada de ter o apoio de Paulinho da Força para sua campanha e de pessoas que participaram do “Esquema do Mensalão”.

Buscando alavancar os índices de audiência, o CQC costumava dar palco para políticos com opiniões polêmicas. Um deles era um deputado federal do baixo clero, com posicionamentos misóginos, racistas e homofóbicos. Seu nome: Jair Messias Bolsonaro.

Em trabalho acadêmico, a jornalista Camila Schatkoski Apratto conclui que, à medida que as falas de Bolsonaro geravam mais polêmica, mais espaço era cedido a ele na grade do CQC. Logo, o “programa de infotenimento ignorou práticas comuns ao jornalismo e usou das repercussões das falas polêmicas e preconceituosas de Bolsonaro para atrair audiência, servindo de palanque, contribuindo para a criação da figura de Jair como irreverente”.

O resto é história.

Evidentemente, seria controverso creditar ao Casseta & Planeta Urgente e ao CQC os atos golpistas de 8 de janeiro. Também não pretendo aqui defender projetos esdrúxulos, como a proibição de piadas e ironias com pessoas que ocupam cargos públicos. Desde a época dos bobos da corte, a política é uma das maiores fontes de inspiração para o humor, o que pode canalizar críticas legítimas da população em relação a seus governantes.

No entanto, como bem ilustrou o depoimento de Ana Priscila Silva de Azevedo, é inegável o desserviço prestado por programas como Casseta & Planeta Urgente e CQC que, sob o verniz de “humor”, “escárnio”, “deboche”, “irreverência” e “entretenimento”, contribuíram de forma significativa para difundir o conservador sentimento antipolítica, cujo principal efeito colateral, como sabemos, foram os quatro trágicos anos de governo Bolsonaro.

Fonte: https://revistaforum.com.br/opiniao/2023/10/3/casseta-planeta-danilo-gentili-cqc-demonizao-da-politica-145160.html

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