Estou decidido a caminhar suavemente; estou decidido a caminhar como Oxalá. Fluir levemente, com o seu ar, conduzindo os nossos caminhos. Este deve ser o sentido de uma fala que emerge de um território sacerdotal de Candomblé e de tradições irmãs de Terreiro.
Talvez, você nunca tenha ouvido falar sobre Oxalá e sobre os demais orixás; talvez tenha recebido noções superficiais e distorcidas sobre o que chamamos de cultura de terreiro, um legado ancestral que conseguiu se manter e sobreviver em meio à escravização de mais de cinco milhões de negros e negras no Brasil ao longo de quatro séculos.
Aqui, conversaremos sobre os caminhos da devoção brasileira, desafiada por interesses que pouco ou nada têm a ver com o verdadeiro exercício da religiosidade, da fé e da devoção. Porque é preciso que a religião retorne ao seu lugar. O ódio, a raiva, a segregação não são lugares para o verdadeiro sentido da religiosidade: o bem-estar do coletivo e o individual.
Estou assumindo a fé brasileira como um caminho suave, de múltiplas possibilidades ,para o exercício da devoção. Há poesia na palavra devoção, há leveza, há liberdade de escolha, há múltiplas liberdades. Para mim, muito embora os brasileiros sejam assumidamente conhecidos como um “povo de fé”, na condição de sacerdote de uma religião não proselitista e que não se pensa de uma perspectiva religiosa única possível, as pessoas têm direito de assumir uma devoção ou de não assumir qualquer religiosidade para si. Este deve ser o verdadeiro sentido de bem comum, ou seja, a liberdade de escolha.
A religiosidade e a devoção brasileiras, desde tempos coloniais, têm se revelado aglutinadoras de diversidade e, principalmente, de sincretismos diversos, seja no catolicismo popular, nas umbandas, nas juremas, nos catimbós e até mesmo nas igrejas neopentecostais recriadas com mimetismos de diferentes culturas religiosas. Tal quadro emerge da convergência de inúmeras influências culturais advindas de diferentes povos e origens que aqui sempre conviveram e formaram a identidade religiosa nacional.
Nesse sentido, a religiosidade brasileira também é histórica e mantenedora de histórias de escravizados e imigrantes, colonizadores e colonizados, colonialismos e colonialidades e contra-colonialidades.
Semanalmente, estarei por aqui para que joguemos água na terra árida, na terra infértil, na terra seca, apontando para outras epistemes, filosofias, afrotelogias e perspectivas contra-coloniais. Outros saberes e modos de ser, estar e pensar o mundo que se somam, que se misturam e se aglutinam para uma experiência existencial voltada para o bem e contra o ódio. Peço uma escuta generosa, para que as boas palavras possam fertilizar nosso coração.
Há um provérbio iorubá que diz “aquele que joga água a sua frente caminhará sobre a terra úmida.” Precisamos tornar a terra mais úmida antes de caminharmos sobre ela – e, nas religiosidades brasileiras, há um movimento intencional de tornar as relações religiosas mais tensas. Sempre com a intenção de agravar semanticamente o mal para parecer ser possível a venda de um bem único e absoluto. Mas sabemos que isso não é real.
Isso tem tornado a devoção território de disputa – e até de segregação e adoecimento. Famílias têm sido divididas, guerras familiares têm sido (re-)potencializadas, amizades desfeitas, tensões e conflitos agravados por conta de posições (nem sempre tão) religiosas.
Nesse sentido, há perguntas que não podem ser silenciadas: é este mesmo o papel das religiosidades no século XXI? Será mesmo este o caminho da devoção brasileira? Veremos a religião reduzida a um território de disputas, tensões, ódio, adoecimento em detrimento do conforto e do sentido de comunidade que deveria ser o sentido primeiro das religiosidades? Não seria o sentido e papel primeiro da religião, seja ela qual for, unir em nome do bem coletivo, da vida, da alegria, da negação da escassez e da desigualdade social? Por que não tem sido assim? Quais interesses estão por trás de uma reiterada nota desafinada tocada intermitentemente sobre o exercício da religião?
Quero assumir um tom “bell hookiano”. Falar menos para e falar mais com; eu quero ser o rio que nos envolve despretensiosamente e generosamente quando ingressamos nele para nos refrescarmos ou para nos banharmos. Penso que este deveria ser o caminho da religião, da devoção, do amor a algo que é maior e melhor que nós e que nos deveria conduzir aos caminhos do bem, da alegria, da saúde, das convergências, do amor. Pnso a religião como um rio que nos acolhe e nos envolve sem julgar, porque é da sua natureza receber generosamente quem no rio ingressa.
Todos nós sabemos disso. Todos nós queremos o bem, a paz, a alegria, a saúde, a igualdade social. Me parece, porém, que alguém arrancou a religião do seu lugar e ela não está mais conseguindo retornar a ele.... Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/uma-conversa-sobre-os-caminhos-da-devocao-brasileira/. O conteúdo de CartaCapital está protegido pela legislação brasileira sobre direito autoral. Essa defesa é necessária para manter o jornalismo corajoso e transparente de CartaCapital vivo e acessível a todos
Nenhum comentário:
Postar um comentário