Em vários momentos dessas eleições, questões relacionadas à proteção à infância ganharam ênfase. E temos visto uma dificuldade de um olhar sem o atravessamento partidário. A polarização permanece bem acirrada, e com isso, as crianças perdem.
Mulheres historicamente alinhadas à esquerda têm percebido e apontado um caminho perigoso quando se inserem noções de identidade de gênero na infância e não, não é crime dizer isso. Ao contrário, temos preocupação com o avanço sem debates e com falsos debates, em que as questões que apontam para contradições são lidas como criminosas, e com a inserção de conceitos que estão longe de ser consenso, empurrados sob um discurso de 'afirmação', que tem o efeito contrário: negar e mentir sobre a infância, e impedir reflexões profundas a esse respeito.
Concordamos com a fala que ouvimos recentemente do Rovai. Sim, parece estar havendo uma naturalização de qualquer coisa que venha da esquerda, porque é da esquerda. E isso é um erro. O que muitos estão chamando de moralismo, é cuidado. O que estão chamando de crime de ódio, é respeito e preservação da condição peculiar de desenvolvimento da infância. Há uma grande quantidade de falácias fomentadas pelos movimentos identitários, desinformação e propagação de ódio às pessoas que, corajosamente, buscam debater o assunto. Hoje estamos colocando crianças em risco e re-atualizando estereótipos. Sim, são o que chamam de "crianças trans".
As perguntas importam muito, mais do que as respostas. Quando ousamos questionar as intervenções de gênero na infância, a resposta vem em forma de ataque, com a seguinte acusação: "então você quer dizer que não existe criança trans?"
Ora, não é essa a pergunta relevante. Tanto existe criança trans que estamos aqui, tentando falar sobre elas. Mas a pergunta que nos interessa vai além de uma afirmação da existência. É o que define uma criança ser considerada trans.
Essa é a pergunta fundamental para avançarmos no debate respeitoso com a infância.
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos, no dia 19 de junho de 2023, fez uma nota cujo título diz "nota em que manifesta apoio às organizações, famílias, crianças e adolescentes que não atendem às expectativas sociais de gênero".
A nota acertou no título e indicou onde está o problema, mas teve um atravessamento ideológico violento em seu texto.
Isso porque, ao mesmo tempo em que enuncia uma definição acertada do que estão chamando de infância trans - crianças que não atendem expectativas sociais de gênero - ela fomenta uma série de intervenções que, por mais que se negue, patologiza comportamentos de crianças, imprime um olhar adulto sobre suas expressões, reatualiza rótulos e mostra desconhecimento das profundas questões que envolvem tais intervenções de gênero.
Rotular as expressões em caixinhas de gênero é uma forma invertida, mas que não sai da lógica do ajustamento. Tanto é que se fala em "readequar", "redesignar", "incongruência de gênero", e cada dia inventam um eufemismo diferente para tentar camuflar esse ajustamento, essa validação de estereótipos sexistas.
A contradição essencial envolve a ideia de que existem papéis específicos para os sexos. Se uma criança não está atendendo essas expectativas sociais (gênero), então é porque sua identidade não corresponde ao seu corpo. Ela não é "cis". Ela não se "conforma" aos papéis sociais.
Notem que a ideia de identidade de gênero recai sempre em uma associação de gostos, sentimentos e comportamentos que são rotulados como de um ou outro sexo. Ora, não faz muito tempo, nós falávamos, na esquerda, que roupa não tem gênero, que brinquedos não têm gênero. Que pode haver meninos afeminados e meninas com gostos "masculinos". Isso é romper com os estereótipos. Isso é afirmar que não é preciso se guiar pelas expectativas sociais.
Agora, curiosamente, as preferências das crianças por um ou outro brinquedo, roupa, e os comportamentos dessa criança são os argumentos utilizados para afirmar que uma criança nasceu no corpo errado, que ela tem uma identidade que não corresponde ao seu corpo (conferir por exemplo, os critérios diagnósticos para disforia de gênero em crianças (DSM-5) replicada pela SPB). É uma dissociação da realidade corporal, uma atitude verdadeiramente negacionista. Temos visto a mudança na linguagem para afirmar que o sexo é 'designado' no nascimento, algo que foi 'atribuido' aleatoriamente, a partir da genitália. A mudança das palavras, sua ressignificação tem produzido uma noção de que os conceitos são produtos da subjetividade humana no seu grau máximo de individualismo, e não das relações concretas do mundo.
À medida em que questionamentos são feitos, novas estratégias discursivas são colocadas como forma de evitar que as contradições apareçam. Agora, as identidades existem descoladas do corpo. Ora, se assim é, por que então é necessário bloquear a puberdade? Por que então administrar hormonização cruzada em adolescentes? Por que negar o sexo? Por que refazer o significado de menino, menina, homem e mulher?
O olhar adultocêntrico tem pautado as decisões a respeito das intervenções físicas, sociais e psicológicas nos corpos e na subjetividade das crianças e adolescentes. Crianças e adolescentes não têm que atender às expectativas sociais de gênero. Ao não fazê-las, elas não deixam de ser o que são, não deixam de ter o corpo que têm. Ser menino ou menina é um fato, e não algo que se reivindica a partir de expectativas sociais.
Por que não voltamos a questionar essas regras baseadas em expectativas adulto-centradas sobre comportamentos de menino e de menina, em vez de tentar ajustar, afirmando que uma criança que não atende às normas sociais, é uma criança trans?
É importante que possamos refletir sobre a condição peculiar da infância. Se consideramos que uma criança pode consentir, ter discernimento para "mudar de sexo" ("transicionar" mesmo que "só" socialmente) isso implica, necessariamente, em consentimento para muitas outras coisas similares dos quais nem crianças e nem adolescentes têm.
Embora se afirme que o problema é na sociedade (as expectativas não são da criança), as soluções são colocadas na criança. Crianças e adolescentes não têm que atender às expectativas sociais de gênero. Dizer isso não significa afirmar que elas estão no corpo errado.
Fonte, citado parcialmente: https://revistaforum.com.br/debates/2023/7/5/quem-tem-medo-de-discutir-as-intervenes-na-infncia-por-celina-luci-lazzari-138947.html
Nota: não há discussão nem debate. A sexualidade da criança e do adolescente ainda é definida pelos adultos problemáticos, cheios de frustrações e traumas.
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