Os cristãos acreditam que, após a morte, nós seremos julgados, nossa alma será alvo de competição entre Deus (o Cristão, não o meu Senhor) e o Diabo. Como eu sou tanto narrador quanto personagem, eu aceito fazer o papel da alma disputada. Tanto Deus quanto o Diabo têm a conta da vida deste seu servo, o empate não é aceitável. Sabe como é, regras, burocracia, sem falar nos custos de manter o Purgatório e é impensável cogitar em reencarnação. Então o Diabo tem uma ideia.
-Eu aposto que eu consigo fazer com que esta alma fique inalcançável. Você não conseguirá achá-la nem salvá-la.
-Eu aceito sua aposta.
O Diabo primeiro tentou me lançar em locais de difícil acesso. Deus encontrava. O Diabo, ousado, atravessou por inúmeros mundos pelo multiverso. Deus encontrava. O Diabo me lançava no ponto mais alto do Firmamento. Deus encontrava. O Diabo me jogava na mais profunda escuridão do Inferno. Deus encontrava.
Por algum motivo, o Diabo não queria perder, nem a aposta, nem a alma. Foi quando o Diabo teve um estalo. Ele me pegou e me escondeu dentro do coração de Deus, que ficou surpreso e intrigado. Deus achou que a vitória era dEle, mas curiosamente Ele não conseguia chegar sequer próximo do seu coração, quanto mais me achar ali dentro. Pior, a minha presença o maculava, deixando-o cada vez mais fraco, as mazelas mais comuns da vida humana mortal o contaminavam. O Diabo estava exultante, ele não apenas ficaria comigo como se livraria de seu adversário.
Foi quando sua esposa interferiu. Pois então, tanto o Diabo quanto Deus tem sua consorte. Eu não sei porque a mulher do Diabo é asiática, alta, magra e corpo exuberante.
-Chega, meu amor, você ganhou.
-Mas… querida! Ele vai continuar a devorar a humanidade com a falsa crença!
-Meu amor, que Ele engula todo o universo até explodir.Nem mesmo o cativo mais cego e surdo preferirá a prisão ao invés da liberdade.
-Mas… querida!
-Você consegue desfazer o que fez, não é, amor?
-Eu? Claro que consigo!
-Então faça, meu amor, que eu vou (sussurros no ouvido).
(enrubescido)-Bom… como me pede com jeito, eu te atenderei.
Eu sou facilmente sacado do coração de Deus e nisso não há grande mistério que eu não possa revelar. Deus se recupera e, envergonhado, volta para seu trono no Paraíso. Intrigado, o Diabo envolve sua amada nos braços e a inquire.
-Por que, querida, interferiste no jogo?
-Meu amor, lembra porque nós nos casamos?
-Sim. Você é uma apsara, que ficou cansada da estagnação indiferente de Buda, mas está além dessa configuração do Bem contra o Mal típica do Ocidente Cristão.
-Isso e porque você é um gato gostoso. Eu interferi porque a disputa de vocês não tinha o menor sentido. Você escondeu esta alma no coração de Deus, algo que está além do alcance dEle mesmo. Sabe por quê?
-Não, não sei, querida.
-Porque este Deus se divorciou de sua consorte para se transformar nesse “Deus Verdadeiro” das religiões monoteístas. Ele mantém seu domínio pelo medo, pela violência, promete a salvação, mas está terrivelmente perdido.
-Mais motivos para que eu acabe de vez com Ele.
-Isso te tornaria igual a ele. Quer se separar de mim?
-Não! Nunca! Jamais! (beijo apaixonado) Mas isso não esclarece por que te importas com esta alma.
-Meu amor,sabe por que esta alma foi aceita e entrou no coração de Deus?
-Não, não sei, querida.
-Porque ele é um pagão, meu amor. Ele, bendito e abençoado seja, conhece o coração dAquela que todos nós amamos, reverenciamos e adoramos. Ele, honrado e celebrado seja, é intocável pois conhece Aquele que é nosso Mestre.
-Mesmo? Essa criatura ínfima, miserável e condenada?
-Meu amor, nós consagramos tudo aquilo que o Homem, pelo capricho, pela sociedade, pela justiça dúbia, repreende.
Foi assim, sem mais nem menos, que o Diabo abriu a mão de minha alma antes de ir colher o prêmio que sua amada prometeu. Evidente, minha alma não fica solta no espaço. Ela aninhou-se no seu coração, que é o mesmo coração dEla. Ama-me, consuma-me. Eu te pertenço.
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