Enquanto as florestas do interior da Inglaterra eram corroídas e convertidas em mastros de navios, tonéis de cerveja e lenha para queimar, a capital do país era transformada em uma floresta de chaminés. Em meados do século 18, Londres era a capital mundial da fuligem. As condições de vida na metrópole eram terrivelmente insalubres. Muito mais insalubres e insanas, porém, eram as condições de trabalho.
É vexatório, mas é compreensível: nos primórdios da Revolução Industrial, os freios civilizatórios à tendência superexploratória do capitalismo eram mínimos ou desprezíveis. Não havia limites, por exemplo, para as horas de trabalho diário ou para a idade mínima da mão de obra. Crianças com menos de 10 anos de idade realizavam tarefas que hoje, em qualquer lugar civilizado, seriam vistas como impróprias até mesmo para um adulto saudável.
Na década de 1830, pressionado pelas circunstâncias, o Parlamento britânico decidiu investigar os rumorosos casos envolvendo a superexploração da mão de obra, sobretudo os casos de trabalho infantil em minas de carvão. Em 1842, após três anos de trabalho, a comissão de investigação – formalmente Comissão Real de Inquérito ao Emprego Infantil (em ing., Royal Commission of Inquiry into Children’s Employment) – publicou um relatório. Foi um estrondo.
Eis uma pequena amostra do tipo de coisa que os integrantes da comissão testemunharam na região mineira de West Riding of Yorkshire (norte da Inglaterra):
“Em muitas das minas de carvão deste distrito, no que diz respeito ao trabalho subterrâneo, não há distinção de sexo e o trabalho é distribuído indiferentemente entre ambos os sexos, exceto que é relativamente raro que as mulheres quebrem ou carreguem o carvão, embora haja numerosos exemplos em que elas regularmente executam até mesmo essa tarefa. Em um grande número de minas de carvão deste distrito, os homens trabalham em estado de nudez completa, e nesse estado eles recebem a ajuda de mulheres de todas as idades, desde meninas de seis anos até mulheres de vinte e um anos, estando muitas delas nuas até a cintura.”
Como eu disse, foi um estrondo. Parte da opinião pública e da elite vitoriana ficou particularmente escandalizada com o fato de as mulheres mineiras se apresentarem seminuas. O essencial, claro, ainda não podia ser mexido, de sorte que as providências tomadas pelo parlamento se resumiram a proibir que crianças com menos de oito anos continuassem a trabalhar nas minas.
Duas décadas depois, na primeira página do romance The water babies, anotou Kingsley (1863, p. 1; tradução livre):
“Era uma vez um pequeno limpador de chaminés, e o nome dele era Tom. Esse é um nome curto, e você já o ouviu antes, então não terá muita dificuldade para lembrar. Ele vivia em uma grande cidade das terras do norte, onde havia muitas chaminés para limpar e muito dinheiro para Tom ganhar e o seu patrão gastar. Ele não sabia ler nem escrever, e não se importava com essas coisas; e ele nunca tomava banho, pois não havia água no lugar onde vivia. Nunca lhe ensinaram a fazer suas orações. Ele nunca ouviu falar de Deus, ou de Cristo, exceto em palavras que você nunca ouviu, e que teria sido bom se ele também não tivesse ouvido. Chorava metade do tempo e ria na outra metade. Chorava quando tinha de escalar as chaminés escuras, ralando seus pobres joelhos e cotovelos; e quando a fuligem caía em seus olhos, o que acontecia todos os dias da semana; e quando seu patrão batia nele, o que acontecia todos os dias da semana; e quando ele não tinha o bastante para comer, o que também acontecia todos os dias da semana.”
Como se não bastasse a idade absurdamente precoce da mão de obra, ao menos outros dois agravantes caracterizavam a relação patrão-empregado: a insalubridade e os maus-tratos. Nas palavras de Nuland (1995, p. 221):
“As chaminés eram muito estreitas, medindo aproximadamente de 30 a 60 centímetros de diâmetro. Por que se dar ao trabalho de achar garotos pequenos e magricelas se eles só iriam gastar espaço valioso usando roupas? Então o patrão recrutava os menores garotinhos que pudesse encontrar, ensinava-lhes os rudimentos de limpeza de chaminés e chutava seus traseiros nus e pretos de carvão toda manhã, instigando-os aos gritos para que subissem os poços apertados e sem ar para iniciar o dia de trabalho.”
No mesmo capítulo, Nuland nos apresenta um pioneiro daquilo que chamaríamos hoje de medicina do trabalho: Percival Pott (1714-1788). Em 1775, ao escrever sobre as condições de vida dos limpadores de chaminés londrinos, o cirurgião inglês teria sido o primeiro a estabelecer um elo causal entre uma dada ocupação profissional e o desenvolvimento de uma doença maligna.
Conhecida então como o câncer dos limpadores de chaminés, a doença é rotulada hoje de carcinoma de células escamosas. Nas palavras do próprio Pott (apud Nuland 1995, p. 221-2):
“[O] destino dessas pessoas parece singularmente difícil: em sua tenra infância, eles são muito frequentemente tratados com grande brutalidade, e quase morrem de frio e fome; são enfiados para cima de chaminés estreitas, e às vezes quentes, onde se machucam, se queimam e quase sufocam; e, quando chegam à puberdade, tornam-se peculiarmente sensíveis a uma doença muito incômoda, dolorosa e fatal.”
E Nuland completa (1995, p. 224):
“A tese de Pott, de que a fuligem era a causa motivadora do câncer, recebeu reconhecimento imediato. Ela levou diretamente a um decreto do Parlamento segundo o qual nenhum limpador de chaminés deveria iniciar seu aprendizado antes dos oito anos de idade e que todos os garotos deveriam tomar um banho pelo menos uma vez por semana. Por volta de 1842, nenhum menor de 21 anos podia mais subir em chaminés. Infelizmente, a lei era violada tantas vezes que ainda havia muitos limpadores de menor idade quando Charles Kingsley estava escrevendo The Water Babies, vinte anos depois.”
A superexploração da mão de obra doméstica – ao lado do colonialismo e das pilhagens feitas mundo afora – ajuda a explicar como e por que o Império Britânico se manteve de pé ao longo de quatro séculos. E ajuda a explicar também como e por que tanto a Revolução Industrial como a Revolução Científica nasceram em berço inglês: o mundo dos negócios, que já conhecia de longa data a tecnologia, descobriu e capturou (ou tentou capturar) a ciência.
No fim de toda essa história, sobra um gosto amargo na boca. E uma dúvida atroz na cabeça: é a Inglaterra de fato um país civilizado?
Não custa lembrar: entre a segunda metade do século 16 e o final do século 20, o Império Britânico explorou e ditou regras em duas dezenas de países não europeus (e.g., África do Sul, Austrália, Canadá, Estados Unidos, Índia, Nova Zelândia, Uganda e Zimbábue).
Fonte, citado com edição e parcialmente: https://jornalggn.com.br/europa/e-a-inglaterra-de-fato-um-pais-civilizado-por-felipe-costa/
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