Nos últimos quatro anos, o Brasil vivenciou uma dolorosa realidade na esfera política, social e cultural. Durante esse período, testemunhamos uma preocupante tendência de supressão dos direitos constitucionais e dos direitos humanos, acompanhada por um alarmante incentivo ao racismo e à intolerância religiosa.
No entanto, apesar das perdas sofridas, também surgem inúmeros desafios que devem ser enfrentados para garantir, efetivamente, os direitos e alcançar a plena igualdade racial. A herança do preconceito racial e étnico ainda se faz presente nos dias de hoje, manifestando-se através dos altos índices de violência e do grave quadro de exclusão social. Essas desigualdades afetam diretamente a população afrodescendente e também os seguidores da Umbanda e das outras religiões de matriz africana.
Na cidade de Diadema, estamos empenhados em enfrentar essas questões por meio de leis que garantem a função do Estado laico e o direito ao culto e à crença. A Lei Ordinária Nº 3309, promulgada em 03/04/2013, estabelece o Dia de Combate à Intolerância Religiosa no município de Diadema. É importante ressaltar que essa lei abrange todas as religiões, mas reconhecemos que aquelas associadas ao racismo estrutural são as mais afetadas, uma vez que o racismo está enraizado nas estruturas sociais. Segundo essa perspectiva, o racismo não é considerado uma anormalidade ou "patologia", mas, sim, o resultado do funcionamento "normal" da sociedade. Nas palavras do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, a sociedade é uma "máquina produtora de desigualdade racial".
Na cidade, buscamos assegurar o reconhecimento e a legitimidade daqueles que lutaram por uma sociedade justa, bem como o respeito ao líder religioso Zélio Fernandino de Morais, conhecido como o fundador da Federação Espiritista de Umbanda, atual União Espiritista de Umbanda do Brasil. Zélio teve um papel marcante na implantação e aceitação dos trabalhos dos Caboclos e Pretos Velhos no contexto social do início do século XX, e atualmente a Umbanda conta com aproximadamente 400 mil seguidores no Brasil.
Em honra à memória de Zélio Fernandino de Morais e ao seu importante papel na religião, foi criado o Decreto Legislativo Nº 7 de 12/08/2013. Esse decreto estabelece a concessão da Medalha Legislativa do Mérito à Cultura da Umbanda e das Religiões de Matrizes Africanas, denominada Medalha Zélio Fernandino de Morais. Essa medalha é destinada às pessoas que comprovadamente tenham prestado relevantes serviços à população, promovendo a liberdade de consciência, crença e o livre exercício dos cultos religiosos, além de atuarem na proteção dos locais de culto e no combate à intolerância religiosa.
Além disso, foi promulgada a Lei Ordinária Nº 3548 de 21/09/2015, que institui a festa dos Caboclos, Encantados e Boiadeiros no âmbito do município de Diadema. Essa lei reconhece a importância dessa celebração e estabelece a realização anual do evento no mês de novembro, proporcionando um espaço de expressão e visibilidade para essas tradições. A festa dos Caboclos, Encantados e Boiadeiros é uma celebração de grande significado histórico e cultural, enraizada nas tradições trazidas pelos africanos do território de Angola ao Brasil. Essa festividade remonta a um momento em que os africanos reconheceram os povos indígenas como donos das terras brasileiras, estabelecendo, assim, uma conexão com a cultura indígena.
Em fevereiro, celebramos o mês dedicado à Deusa da nação de Egbé, uma nação Iorubá na qual existe o rio Yemojá (Iemanjá), que ficou conhecida no Brasil como a rainha das águas e mares. Esse Orixá é respeitado e cultuado, sendo considerado a mãe de quase todos os outros Orixás. Em respeito à Nação Egbé e à tradição Iorubá, foi criada a Lei Ordinária Nº 3577 de 22/02/2016 no município de Diadema, estabelecendo a Festa de Águas de Iemanjá. Essa festa é comemorada anualmente na cidade em 2 de fevereiro.
Com o objetivo de manter viva a memória, foi criada a Medalha Legislativa de Mérito à Cultura das Religiões de Matrizes Africanas, denominada Medalha Pai Francelino de Shapanan, por meio do Decreto Legislativo Nº 3 de 04/03/2016. A trajetória desse líder religioso é de suma importância para os adeptos dessa religião. Em 1977, Francelino Vasconcelos Ferreira, também conhecido como Francelino de Shapanan, trouxe para São Paulo o culto aos Voduns, tal como se constituía em São Luís do Maranhão. A religião dos Voduns no Brasil é cultuada nos terreiros de candomblé, principalmente na nação jeje, onde ainda se preserva alguma lembrança da divisão por famílias.
A partir de 1987, Francelino de Shapanan, juntamente com Cássio Ribeiro, iniciou os preparativos para fundar a Federação de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros de Diadema – Fucabrad. Essa iniciativa teve um papel significativo na promoção e preservação das tradições religiosas afro-brasileiras em Diadema. Para reconhecer a importância da Fucabrad na cidade, prestamos homenagem ao Pai Cássio Ribeiro, presidente da instituição, concedendo-lhe o título de Cidadão Diademense através do Decreto Legislativo nº 006/2017. Essa honraria é uma forma de destacar sua atuação na defesa da religião em uma sociedade que ainda enfrenta diariamente a intolerância religiosa, com invasões a terreiros, discriminação em relação às vestimentas e práticas cultuais, entre outras questões.
Essa homenagem é essencial para ressaltar a importância de seu papel na religião na cidade de Diadema. É crucial, especialmente quando um dos templos de Umbanda mais antigos de Diadema, o Terreiro Vó Maria de Aruanda, fundado em 1974 e conduzido por Mãe Corina, enfrentou dias temerosos em janeiro de 2017. Na ocasião, a Guarda Municipal invadiu o terreiro, interrompendo uma festividade e exigindo o encerramento da cerimônia por volta das 21h. O terreiro continuou a receber ameaças por parte dos guardas municipais, que deixavam claro que o problema estava relacionado ao barulho dos tambores do Terreiro Vó Maria de Aruanda. Eles afirmavam que, caso os tambores fossem tocados e os vizinhos os denunciassem, o culto seria interrompido. Essa situação evidencia a intolerância religiosa, uma vez que não havia relatos de outras práticas religiosas serem interrompidas por utilizarem microfones e equipamentos sonoros durante seus rituais e cantos de louvor.
Diante dessas circunstâncias, foi criado o Movimento "Somos todos Mãe Corina", que recebeu adesão de diversos membros de movimentos pró-direitos de fé dos povos de terreiros. Eles se mostraram indignados e prontos para lutar contra os abusos intolerantes protagonizados pela segurança pública da cidade. Cássio Ribeiro, presidente da FUCABRAD – Federação de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros de Diadema, publicou uma nota de repúdio nas redes sociais, manifestando sua posição contra tais atos intolerantes.
Eu, como membro da FUCABRAD e vereador em Diadema, convoquei o comando da Guarda Civil Municipal (GCM) de Diadema para uma audiência pública. O objetivo era propor um diálogo entre a prefeitura e a comunidade dos terreiros da cidade, visando garantir o respeito e impedir a violação do direito de expressão de fé por parte do município.
Como uma medida importante para combater a intolerância religiosa em Diadema foi estabelecido um espaço sagrado significativo na cidade, conhecido como Ilê de Omolu e Iansã. Este é o único espaço público no estado de São Paulo onde os adeptos das religiões umbanda e de matriz africana podem realizar suas oferendas e práticas religiosas. Em virtude de sua natureza sagrada e histórica, o Ilê de Omolu e Iansã foi oficialmente reconhecido como Patrimônio Cultural de Diadema pela Lei Ordinária Nº 3756 de 06/07/2018.
É importante reconhecer a disparidade existente na representatividade das religiões de matriz africana em espaços públicos no Brasil. Enquanto personalidades de diversos segmentos são homenageadas com nomes de ruas, praças e monumentos, observa-se uma escassez de referências aos Orixás, Pais e Mães de Santos, que são fundamentais nas religiões de matriz africana.
No Distrito Federal, temos a Praça dos Orixás, que se tornou um local de referência para as práticas religiosas afro-brasileiras. Além disso, em Diadema, foi estabelecida a Praça Pai Marcio Zacaria de Xangô, delimitada pela Rua Parapuã e Avenida Conceição, por meio da Lei Ordinária Nº 4012 de 26/10/2020. Essas duas referências demonstram o avanço no reconhecimento e na valorização dessas religiões em espaços públicos, mas evidenciam também a persistência do preconceito e da falta de representatividade.
Diadema se destaca como a primeira cidade da Região Metropolitana a criar uma iniciativa significativa em prol dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana. Por meio do Decreto Legislativo Nº 19 de 14/07/2022, foi estabelecida a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana. Essa frente parlamentar tem como objetivo principal acompanhar de perto as políticas públicas voltadas para essas comunidades em Diadema.
Através dessa frente parlamentar, será possível monitorar a execução de planos e projetos, promover discussões e sugerir proposições legislativas que estejam alinhadas aos interesses e necessidades dos Povos e Comunidades de Matriz Africana. Além disso, a frente parlamentar terá a responsabilidade de elaborar estatutos, protocolos de intenções e outros documentos que contribuam para fortalecer e garantir os direitos dessas comunidades.
Em Diadema, um importante avanço foi conquistado por meio da aprovação da Lei Municipal nº 4.317, de 24 de outubro de 2022. Essa lei tem como objetivo principal estabelecer os procedimentos para a preservação dos Bens do Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial no município, garantindo, assim, a valorização e proteção das expressões culturais presentes em seu território, como templos de práticas Umbandistas, Associações de Comunidade Tradicional, Casa de Baba Egun, Terreiros de Candomblé, Casas de Matrizes Africanas, Igrejas Católicas, Capelas, Ilê de Yansã, conforme conta no art. 2º paragrafo único Inciso I da lei.
É uma conquista significativa para a comunidade umbandista o reconhecimento do Dia de Ogum no calendário oficial do estado de São Paulo. O Projeto de Lei 1153/2011, aprovado em 2012, resultou na publicação da Lei Estadual 14.905, que oficializa essa importante manifestação religiosa. Com mais de 300 anos de história no Brasil, a celebração de Ogum possui profundo significado cultural e religioso, e é fundamental que seja reconhecida e valorizada pelo Poder Público. No município de Diadema, essa valorização foi concretizada através da Lei 031/23, que incorporou o Dia de Ogum ao calendário oficial da cidade.
No contexto da diáspora africana no Brasil, as Yabás desempenham um papel fundamental. Durante o período da escravidão, as senzalas eram habitadas por africanas e africanos de diferentes regiões, resultando em uma rica mescla de valores culturais que deu origem ao Candomblé. Essa religião é essencialmente matriarcal, com muitas mães de santo liderando seus terreiros e preservando as tradições africanas sob a influência da força feminina. Assim, a importância de cada Yabá, cujo significado é "Mãe Rainha", é acentuada, destacando as Orixás femininas.
No Brasil, as Yabás são celebradas no dia 13 de dezembro, além de outras datas específicas de acordo com o sincretismo religioso que tentou subordiná-las ao catolicismo, em uma tentativa de diminuir sua importância. No entanto, a existência das Yabás e seu protagonismo são inegáveis. Elas representam força, poder e sabedoria, sendo homenageadas pelas Orixás femininas Oxum, Iemanjá, Iansã (Oyá), Nanã, Obá e Ewá (Yewá). Para reconhecer a importância dessas figuras divinas e combater a intolerância religiosa, foram propostos dois projetos legislativos em Diadema. O Projeto de Lei 039/2023 busca instituir a Medalha Legislativa "Yabas - Mães Rainhas", com o objetivo de reconhecer e agraciar as mulheres que defendem as religiões de matriz africana e lutam contra a intolerância religiosa. Além disso, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 015/2023 estabelecerá a concessão da referida medalha.
A cidade de Diadema, em breve, contará com o Centro de Referência Cultural das Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas, que está programado para ser oficialmente inaugurado em agosto de 2023. Esse centro representa uma conquista significativa e o mandato tem desempenhado um papel fundamental ao incentivar sua implantação. Para apoiar essa iniciativa, foram indicados recursos suplementares por meio de emenda para o ano de 2023. O valor destinado é de R$ 45 mil, que será utilizado para financiar atividades do Centro de Referência dos Povos Tradicionais e de Matrizes Africanas. Esses recursos têm como objetivo garantir a realização de formações, a difusão da cultura e o fomento das atividades culturais relacionadas às comunidades tradicionais de matrizes africanas.
A implantação desse centro representa um importante avanço para Diadema, pois proporcionará um espaço de valorização, preservação e promoção da cultura afro-brasileira e das tradições das comunidades tradicionais de matrizes africanas. Além disso, o centro será um local de encontro, troca de experiências e fortalecimento das identidades culturais, contribuindo para o combate ao racismo, à intolerância religiosa e para a construção de uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Estamos firmes no caminho certo em relação à prevenção da intolerância religiosa e ao respeito ao direito de culto e liberdade de fé. É fundamental compreender que a liberdade religiosa é um direito humano fundamental que deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente da sua religião ou crença. Nenhuma religião tem o direito de se sobrepor às demais ou de impor seus princípios sobre as escolhas individuais. É primordial reconhecer que todas as pessoas têm o direito de escolher e professar sua fé de acordo com suas convicções pessoais, sem discriminação ou restrições.
Fonte: https://revistaforum.com.br/debates/2023/5/12/diadema-uma-cidade-em-defesa-das-religies-de-matriz-africana-por-josa-queiroz-135829.html
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