ESSES DIAS, LI UMA DAS COISAS mais tristes dos últimos anos. Era a história do reencontro de Géssica Amorim, idealizadora do Coletivo Acauã, com dona Francisca dos Santos, de 73 anos, que conheceu em 2021. Francisca era a última umbandista da comunidade quilombola Teixeira, em Betânia, no sertão de Pernambuco. Estava tudo em uma matéria publicada pelo Acauã em parceria com a Marco Zero Conteúdo.
Dona Francisca era a última, não é mais.
Pressionada por uma maioria de neopentecostais presente no povoado com cerca de 300 habitantes, ela abandonou a umbanda, que a acompanhou durante toda a vida. Agora, ela frequenta a Igreja Mundial do Poder de Deus, fundada em 1998 em Sorocaba, São Paulo, pelo pastor Valdemiro Santiago, dono de 6 mil templos em todo país e de uma série de processos na justiça. “É ruim você ser julgada por um mal que não fez. Eu sofria muito”, disse ela para Géssica ao explicar sua forçada conversão.
O texto sobre o processo violento enfrentado por Francisca ainda estava na minha tela quando soube da exclusão da Fogueira de Xangô, criada pelos povos de terreiro de Caruaru, na programação junina. A festa de São João do município é um dos maiores eventos de Pernambuco.
Uma semana antes, através de um trabalho realizado por estudantes da UFPE, na qual sou docente, também soube que a Feira de Ervas, que faz parte do complexo da famosa Feira de Caruaru, vem sofrendo há anos reiterados constrangimentos provocados por pessoas e grupos neopentecostais. Comerciantes que trabalham no local e os clientes que circulam por ali, uma boa parte praticantes de religiões afro-brasileiras, são coagidos e expostos como “demoníacos”.
“Se o cliente for uma pessoa que ainda está se iniciando na religião e é assediado, nem entra aqui na loja, fica intimidado, com medo de ser exposto. É comum que as pessoas passem, olhem e se benzam”, disse a pedagoga e comerciante Maria Eugênisa Azevedo da Silva, dona da Barraca Da Paz, há seis anos negociando na Feira de Ervas caruaruense. Ela revela que os constrangimentos impostos por membros de congregações neopentecostais da cidade são comuns no corredor no qual estão lojas como a sua, com direito a sessões de oração e tentativas de conversão como estratégias dos evangélicos.
Essas ações têm causado impacto nos negócios de quem trabalha ali, afugentando compradoras e compradores. Maria é interpelada pela arrogância de quem instrumentaliza Cristo constantemente. “Já aconteceu comigo. A pessoa vem aqui e tenta me converter, vem dizer que minha prática é pecadora, vem com lição de moral.” Ela é católica e conhece bem o uso de ervas e chás procurados não apenas por praticantes da umbanda, jurema ou candomblé, mas pela população em geral, que busca as propriedades medicinais das raízes e cascas. Em sua loja, ainda vende produtos como pulseiras, figas, tarôs, garfos de Exu, defumadores, guias, Shivas e flechas.
Ela definiu os constantes assédios como “pura ignorância” e me contou que uma colega de uma cidade próxima, Chã Grande, teve a casa e o terreiro completamente queimados por um morador local há dois anos. Os atos de intolerância religiosa cresceram no Brasil ano passado, de acordo com dados da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, a Renafro.
Não é a primeira vez que a Feira de Ervas é tratada de maneira distinta, o que é significativo em relação à vulnerabilidade de quem negocia ou compra ali. No documento que declarou a Feira de Caruaru como Patrimônio Imaterial pelo o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 2006 (título revalidado em 2021), lemos:
“Esse lugar apontado como objeto de registro pelo Iphan, corresponde, hoje, a um conjunto de equipamentos e feiras formado pela Feira do Gado; pela Feira do Artesanato, aí incluído o Museu do Cordel – ponto de exposição, produção e reprodução de expressões artísticas populares; pelos Mercados da Carne e da Farinha situados no Parque 18 de Maio; e pela chamada Feira Livre com todas as suas ‘feiras’ ou subdivisões, inclusive a das confecções populares e a chamada ‘feira’ do Troca-Troca”. Apesar de ter sido uma das primeiras práticas a dar origem ao conglomerado comercial cuja primeira formação remonta ao final do século 18, a feira de ervas, com seus orixás, cascas de caju roxo, Pombagiras e Zé Pilintras, não foi citada no texto.
Pouco depois de saber do que tem acontecido na feira, com Francisca ainda reverberando na minha cabeça, apareceu o caso do motorista de Uber na Baixada Fluminense que se recusou a levar mulheres e crianças vestidas com roupas ritualísticas do candomblé.
Dizem que algumas coisas, de tanto serem mostradas, vão ficando invisíveis. Pela atual naturalização da violência religiosa no país, me parece que é o caso.
Falamos há tempos da intolerância e racismo que incidem sobre práticas afro-indígenas brasileiras. O artigo 5º, inciso IV da Constituição Federal assegura que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. No Código Penal Brasileiro, o artigo 208 informa que é crime “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.
Mas, no contexto de enorme influência de parlamentares da bancada da Bíblia e de pastores a exemplo de Valdemiro Santiago, os atos criminosos se dão de maneira furtiva, sub-reptícia, na maioria das vezes se utilizando de sorrisos e da palavra “salvação”. Ela sufoca e mata principalmente a fé com raízes africanas ou indígenas: o fato é que, a despeito de denúncias e exposição de casos, até agora essa cultura só ganhou corpo, e não retrocedeu.
O caso de dona Francisca é a síntese de uma espécie de nova colonização pela qual principalmente as áreas rurais mais pobres e os interiores do país vêm passando.
Mais recente, um outro “esquecimento” na mesma cidade de Caruaru, com cerca de 370 mil habitantes, e que aqui nos indica a violenta condição da religiosidade de raízes não-brancas no país, dá o tom do quanto a população desse segmento é perigosamente apagada no âmbito institucional. Depois de figurar, por meio de muita negociação, durante seis anos na programação do São João caruaruense, a Fogueira de Xangô estava ausente na primeira edição da enorme lista de atrações. Enquanto isso, na chamada Noite Gospel, estrelas como Aline Barros e Anderson Freire figuravam no palco principal da festa, com capacidade para cerca de 100 mil pessoas.
A reação da Associação dos Povos de Terreiro do município veio rapidamente: Mãe Rose de Oxum, neste vídeo, fez um pedido público pela inclusão da Fogueira de Xangô entre as mais de mil atrações previstas (este ano, são dois meses de programação junina). “E aí, Fundação de Cultura? E aí, Prefeitura de Caruaru?”, cobrou.
“Todo ano é uma complicação. A fogueira existe desde 2014, é resultado de uma política da associação e da gestão passada, um trabalho coletivo. Não fomos chamados, porque a prefeitura alegou que não tínhamos um projeto, mas nunca houve necessidade de participarmos de edital. Abrimos um diálogo com a Fundação de Cultura e fomos incluídos, mas teríamos que realizar a celebração ou no Polo das Quadrilhas ou no Morro Bom Jesus”, contou o babalorixá Jeremias de Oxum, da comissão de trabalhos da associação. Os dois locais citados por ele recebem menor atenção midiática e popular do que o Polo Azulão, no qual a Fogueira de Xangô costuma ser realizada.
A proposta foi recusada: ou a celebração aconteceria no espaço de sempre, onde também acontece a Noite Afro, ou no Palco Principal, onde cantarão artistas gospel. A prefeitura cedeu. Depois da explicação “técnica” institucional, a estratégia dos Povos de Terreiro será a busca pela oficialização da celebração no calendário junino – ou seja, para que ela seja definitivamente integrada à programação –, além de um registro jurídico da mesma. Importante dizer que a fogueira, em si, não é erguida no espaço público, mas em um terreiro, por medidas de segurança e saúde.
“Quando se trata de religiões de matriz africana, a gente tem sempre que correr atrás. Normalmente, você não vê políticos de renome adentrando os terreiros de candomblé, como vemos nos templos e igrejas. Do mesmo jeito, não vemos o povo de terreiro na porta das igrejas entregando oferenda para os fiéis e dizendo: ‘tome isso aqui, que Xangô vai lhe abençoar'”, comentou Jeremias.
Ele acredita que o diálogo aberto com a Fundação de Cultura após o caso vai garantir menos percalços nas próximas festas. Vice-presidente do órgão, o radialista Herlon Cavalcanti contradiz a associação: ele afirmou que a celebração jamais esteve fora do calendário. Também me enviou um áudio informando que a celebração será no Polo das Quadrilhas, e não no Azulão. Enviei perguntas para confirmar se as informações passadas estão corretas, mas, até o fechamento da coluna, não obtive resposta.
A disparidade entre as várias leis que, em tese, asseguram a liberdade religiosa no Brasil e o que está acontecendo é gritante. O papel diz uma coisa, mas o que vive não só dona Francisca, mas as centenas de populações quilombolas do país constrangidas a se converterem, mostra outra. Além da já citada Constituição e do Código Penal, o Estatuto da Igualdade Racial informa, em seu capítulo III, quatro artigos que asseguram direitos dos povos de terreiro.
O artigo 24, por exemplo, afirma o “direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana”, compreendendo “a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins”. Também, “a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões”.
O quarto parágrafo, em tese, deveria proteger a Feira de Ervas na qual Maria negocia: ele assegura “a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica”.
Há ainda a Lei 7.716/1989, sobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, frequentemente relacionados às religiões afro-indígenas-brasileiras . De acordo com o artigo primeiro “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
No entanto, os meios para que as pessoas (principalmente aquelas inseridas em contextos efetivamente ou simbolicamente mais distantes da letra da lei) efetivem suas denúncias sobre racismo ou intolerância religiosa não são simples, nem popularizados. As ouvidorias dos Ministérios Públicos, por exemplo, recebem as denúncias e posteriormente as distribuem para as promotorias com atribuição específica de investigar, como me informou Ivana Botelho, procuradora e coordenadora do Grupo de Trabalho Racismo do MP de Pernambuco.
Para ela, não é possível afirmar que os casos de assédio e racismo religioso aumentaram no Brasil (a despeito de números como os da Renafro). “Mas a publicização desses eventos, sim. Isso, por um lado, demonstra que parte da população não admite, de forma passiva, esse desrespeito.” A promotora também apontou que uma denúncia de intolerância pode vir repleta de vários crimes. “Tudo depende do que acontecer, da forma como a agressão se dá. Cada caso é analisado individualmente e definido, pela promotoria que estiver à frente da investigação, de acordo com os elementos e informações coletadas, os crimes ali envolvidos”.
Infelizmente, o MPPE não monitora as mudanças de religião em nenhuma comunidade, nem mesmo nas quilombolas. Elas, hoje, mostram como apagamento da própria história, da própria vida, acontecem em nome de um Jesus moldado de acordo com interesses próprios, oferecendo não cuidado e irmandade, mas intolerância e destruição.
Fonte: https://www.intercept.com.br/2023/05/10/neopentecostais-intimidam-adeptos-de-religioes-afro-com-assedio/
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