Li alguns elogios nas redes ao Fantástico, sobretudo por comparação à CNN, cuja reportagem sobre os vídeos do Palácio do Planalto já se tornou um clássico do mau jornalismo, numa acepção benevolente, e do jornalismo de manipulação, se formos um pouco mais duros.
No entanto, francamente, a reportagem do Fantástico é medíocre, muito aquém do que o Brasil precisa para enterrar, de uma vez por todas, o cadáver putrefato do bolsonarismo.
Seria ingenuidade, por outro lado, esperar muito mais da Globo, visto que ela é uma das principais responsáveis pelo desenvolvimento da extrema-direita no Brasil.
Todos esses bolsominions de verde amarelo, refugiados num submundo de tamanho considerável, nasceram da campanha sistemática contra a política que os jornalões, Globo à frente, lideram desde a redemocratização.
O saudoso professor Wanderley Guilherme dos Santos escreveu muito sobre isso, em ensaios e livros. O nosso sistema de comunicação dos anos 90 era um remanescente da ditadura militar, e como tal se tornou, desde o primeiro momento, o principal ponto de reunião para todas as forças que temiam a emergência das novas forças sociais e políticas que se organizavam a partir das lutas políticas e eleitorais da Nova República.
O combate feroz da Globo e seus aliados aos sindicatos, movimentos sociais, partidos de esquerda e, por fim, aos governos petistas, desde os anos 80 até os dias de hoje, ajudaram a formar a cultura política da classe média brasileira.
As novas tecnologias, porém, produzem um fato inesperado, que é a emancipação política da classe média.
Quando as redes sociais surgem, a mesma classe média, com seus preconceitos políticos já consolidados por anos de lavagem cerebral, emancipa-se da grande mídia e monta suas próprias redes fechadas de informação.
Essa é a história, em poucos caracteres, do surgimento da extrema direita no Brasil.
Entretanto, seria um erro - e aliás, esse sempre foi um erro grosseiro da esquerda brasileira - tratar a classe média como um bloco único. Tocqueville já ensinava isso em meados do século 19, quando analisou o papel da classe média na revolução de 1848.
"A classe média não forma jamais, no seio da nação, um bloco compacto, diferente do todo: ela participa um pouco de todos os segmentos", observou o francês, em seu livro Souvenirs.
Assim, por exemplo, sempre haverá uma classe média mais ou menos progressista, e cabe às forças políticas de esquerda oferecer a ela, assim como fez o bolsonarismo (de maneira profundamente mentirosa e doentia), conteúdo político, projeto nacional e espaços de convivência.
Voltando à reportagem do Fantástico, ela é medíocre porque faltou uma abordagem mais direta, mais corajosa, sobre quem foi a liderança (nem tão) oculta de todos aqueles terroristas, vândalos e golpistas que invadiram as sedes dos três poderes.
A liderança foi de Jair Bolsonaro.
Sempre que se mostrar o quebra-quebra do 8 de janeiro, é preciso exibir, no mesmo vídeo, os bloqueios de estrada que se seguiram à derrota de Bolsonaro; o silêncio hostil, antidemocrático, de Bolsonaro após a divulgação do resultado das urnas; as "lives" e discursos de Bolsonaro com denúncias falsas e mentirosas sobre fraudes nas urnas, passadas e futuras; a infame reunião do governo com embaixadores do mundo inteiro, para falar mal do Brasil e difamar nosso sistema eleitoral.
Não é possível tratar honestamente o 8 de janeiro sem associá-lo ao trabalho sistemático, diário, ao longo de quatro longos anos, organizado pelo governo Bolsonaro, de envenenamento de amplos setores da classe média conservadora, com teses golpistas, antidemocráticas, conspiracionistas, lastreadas invariavelmente em fake news.
Os bloqueios criminosos de estrada, os atentados terroristas de dezembro, e o 8 de janeiro, tiveram um líder, um inspirador: o ex-presidente derrotado Jair Bolsonaro.
A CPMI dos golpistas será a chance do campo democrático de trazer isso à tôna. Será igualmente uma oportunidade de ouro para iniciar um processo de descontaminação da classe média brasileira.
Para o governo, a CPMI vem em boa hora. Com o Arcabouço Fiscal pronto para ser votado, e a Reforma Tributária já encaminhada, vínhamos testemunhando a direita nacional rapidamente se reorganizando, em torno da mídia corporativa (como de praxe), para "domesticar" e enfraquecer o governo popular, de maneira a conter movimentos que possam promover qualquer mudança efetiva no país.
A elite brasileira, por exemplo, não precisa de trens de alta velocidade. Ela sente um terror profundo a essa ideia, talvez porque ela tem cheiro de revolução. E ela mora em bairros que, ao longo das últimas décadas, foram conectados aos aeroportos por vias expressas. Ela anda de avião. Se quer andar de trem, ela vai à Europa, ou à China. Construir trens de alta velocidade no Brasil seria uma dessas iniciativas que poderiam emancipar as massas. Por isso, não se vê, jamais, na grande imprensa brasileira, nenhuma reportagem sobre o tema. A mídia brasileira prefere falar de mercado financeiro, jamais de transporte público.
Se tivermos um governo forte, autoconfiante, com boa aprovação na sociedade, incluindo na classe média, ele poderá oferecer projetos de desenvolvimento mais audaciosos, que nos aproximem das nações desenvolvidas, e isso gera um terror irracional nas elites e nas classes médias brasileiras.
Um governo popular forte também significa mudança no ecossistema de comunicação. A divisão da publicidade oficial significa o fortalecimento das mídias progressistas, um processo que, aos poucos, vai libertando setores crescentes da sociedade dos grilhões ideológicos inventados pela grande mídia.
A grande mídia é a principal guardiã desse "terror irracional" que a classe média ainda tem da política, do Estado e de um projeto nacional. O veneno do terror deve ser inoculado diariamente nos estratos de renda média, que cumprem, historicamente, o papel de correia de transmissão do debate público para o resto da nação.
A classe média foi ensinada, desde a redemocratização, a odiar o Estado, a odiar qualquer projeto nacional mais ambicioso, a odiar o Brasil. A emergência desse nacionalismo de purpurina, baseado num amor infantil, vazio, às cores verde e amarela, à camisa da seleção, ao Exército, é uma forma de desespero.
Quando a classe média se "emancipa da mídia" e adere às redes sociais, se torna "nacionalista", e passa a rever a ditadura militar, isso é uma maneira trôpega de demonstrar independência intelectual e política em relação aos ditames daqueles que, até então, a tutelavam.
Como esse nacionalismo não pode, de jeito nenhum, se materializar em apoio a um grande projeto nacional de desenvolvimento, através da construção de refinarias, siderúrgicas e trens de alta velocidade, ou seja, através da reindustrialização do país, o que apenas seria possível com financiamento público e expansão do Estado nacional, como não seria possível conciliar esse projeto com o ideário antipolítica, ultraliberal, antiestatal, trabalhado meticulosamente pela mídia desde a redemocratização, então a classe média adota esse nacionalismo de fachada, que é tão contraditório, tão superficial, tão confuso, que frequentemente se transforma em desordem psicológica.
O ódio, a ferocidade, que os estratos mais reacionários da classe média passam a alimentar contra a mídia brasileira, é uma espécie de rebelião contra seus próprios pais.
A grande mídia ajudou a criar uma extrema-direita psicótica, disposta a agredir fisicamente jornalistas, mutilada moral e intelectualmente, incapaz de participar de qualquer debate democrático. A CPMI dos golpistas, portanto, será uma oportunidade para a grande mídia desfazer um pouco o mal que causou ao país, nos ajudando a dar o golpe final num bolsonarismo que vem degenerando há meses, assustadoramente, num movimento terrorista, disposto a matar gente, destruir patrimônio público, paralisar a economia, sem medir nenhuma consequência, sem nenhum escrúpulo de ordem moral.
Lembrando a genial pintura de Goya, Saturno precisa devorar o próprio filho...
Fonte: https://revistaforum.com.br/blogs/cafezinho/2023/4/24/midia-devora-seu-filho-134765.html
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