segunda-feira, 1 de julho de 2024

A revolução é travesti

O que vem depois do patriarcado? "O traviarcado", é a resposta da transpóloga, atriz, dramaturga e escritora Renata Carvalho. Criado por ela, o termo passou a reverberar nos últimos anos dentro do movimento trans brasileiro como uma forma de construir novas possibilidades de futuros – bem como reverenciar as lutas das travestis do passado que tornaram possível a conquista de direitos.

“Queremos que o traviarcado seja um mundo possível em que todos os corpos sejam livres, todas as vivências sejam naturais e todo mundo possa viver na plenitude do ser”, explica Carvalho. Imaginar uma alternativa de vida que não a ditada pelo patriarcado pode parecer tarefa improvável. Não só não o é, como encontrar uma outra saída é urgente para os grupos que são desumanizados, dominados e categorizados como inferiores por essa estrutura.

A tática de Carvalho e de outras expoentes travestis e trans que estão nas academias e na militância é de trapacear a essência fascista da língua – como determinou o escritor e sociólogo francês Roland Barthes, autor de Mitologias e A morte do autor – ao encontrar novas formas de dizer o que foi privado de ser dito.

"É muito comum que as pessoas trans criem neologismos que vêm da necessidade de dar nomes a certas coisas e que ainda não são nomeadas", explica Bia Crispim, professora, escritora e doutoranda de Literatura Comparada. A própria Renata Carvalho é fã desses neologismos: além de unir as palavras “transgeneridade” a “antropóloga” para definir a si mesma, colocou no vocabulário termos como transfake (usado mundialmente para designar pessoas cisgêneras que interpretar pessoas trans em seriados, filmes e peças), transcestralidade e tavesteca (como chama a própria biblioteca).

Essa necessidade desponta em um país com um Estado fincado em estruturas que, além de machistas e racistas, são transfóbicas e cissexistas (violência que considera a junção da cisgeneridade como norma com o sexismo).

Até hoje, o Brasil carece de uma base de dados que exponha de maneira oficial os efeitos dessa estrutura na vida de pessoas trans. Desde 2017, este levantamento é feito, sobretudo, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Ao lado da Transgender Europe, a organização coloca o Brasil como o país que mais mata pessoas trans há 14 anos.

Dados divulgados em maio pelo Observatório de Mortes Violentas Contra LGBTI+, com apoio da Antra e da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), mostram que 230 pessoas LGBTQIA+ morreram violentamente em 2023, de assassinato ou suicídio; destas pessoas, 142 eram mulheres trans ou travestis.

Além disso, o dossiê de 2022 Antra destaca um aumento de violações de direitos desta população em 2022. Foram 142 episódios detectados, com alvos que vão de uso de banheiro público até a presença de adolescentes e crianças trans em escolas.

As ofensivas vêm, ainda, da esfera do poder público. Neste ano, há ao menos 77 leis antitrans em vigor em 18 estados brasileiros, segundo levantamento de janeiro da Folha de S.Paulo. As legislações têm foco no veto ao uso de linguagem neutra em escolas; ao uso de diversidade em peças publicitárias; à participação de atletas trans em competições; e a alguns serviços de saúde para crianças e adolescentes trans, como administração de bloqueadores de puberdade, por exemplo. O mesmo levantamento mostra que 293 projetos de lei de mesmo teor foram levados ao Congresso Nacional em 2023.

Há ainda um acirramento dos ataques coordenados por grupos conservadores e fundamentalistas que visam espalhar pânico trans (ou seja, causar medo social por meio de desinformações sobre pessoas trans). Alguns destes grupos, aliás, são formados por mulheres cisgênero denominadas feministas radicais transexcludentes (TERFs), que colocam mulheres trans e travestis como “ameaça” aos direitos e à segurança de mulheres e meninas cis.

Em meio a este cenário, Crispim vê o traviarcado como um movimento de resistência e naturalização das vivências desta população; além de reconhecimento das lutas de ancestravas e traviarcas (ou seja, travestis expoentes da luta por direitos e na história do movimento) e de construção de alicerces para um futuro mais livre e respeitoso para pessoas trans e travestis no país. “Não somos aberrações. Somos seres humanos, e precisamos ser naturalizadas dentro da sociedade.”

Neon Cunha, política, pesquisadora e ativista, vê neste conceito uma reivindicação do lugar de fala e da condição de humanidade por meio de uma narrativa verdadeira – ou seja, não guiada pelos estereótipos criados por pessoas cisgênero.

"O patriarcado antecede o capitalismo, é uma estrutura hegemônica dentro da construção religiosa/judaico-cristã, principalmente no ocidente, que surge como conceito de autoridade e manutenção de poder e controle. O traviarcado é a maneira de pessoas sob o guarda chuva da transgeneridade falarem por si. Criar este conceito é fundamental para rebater a estrutura patriarcal que se nomeia como legítima”, pondera.

O traviarcado também diz respeito a honrar, agradecer e perpetuar o legado de outras travestis que, no passado, lutaram e, muitas vezes, pagaram com a vida para construir uma estrada menos sinuosa para as que viriam depois. Nomes como os das ativistas Jovanna Cardoso, Indianarae Siqueira, Brenda Lee, entre tantas outras, são lembradas por suas contribuições e lutas – coletivas ou individuais.

Keila Simpson, ativista, presidenta da Antra e primeira travesti a ser nomeada doutora honorária no país, destaca que a figura da traviarca é vista como uma mãe. “Somos tidas como as travestis que pariram outras travestis”, diz.

“A imagem de uma traviarca se fundamenta nessa ideia de oferecer acolhimento para as outras”, diz Neon Cunha. “Elas se propõe a passar ensinamentos para que as próximas gerações não precisem passar por determinadas situações e, assim, amenizar o processo para que não necessitem ser rotuladas ou codificadas. Nós, que viemos antes, já assumimos o código. Agora, vamos produzir de dentro dele."

Simpson conta que esse legado começou com a existência de Xica Manicongo. Documentada a primeira travesti do Brasil, foi uma escravizada africana que viveu na segunda metade do século 15 na região de Salvador, na Bahia. Ao recusar-se a se portar e se vestir "como homem", foi acusada de sodomia e condenada à fogueira em praça pública. Para sobreviver, teve de se comportar enquanto uma pessoa cisgênero.

“Almejar o mundo do traviarcado é reconhecer e ter gratidão pelas pessoas que vieram antes de nós e, com seu legado e no seu tempo e espaço, abriram caminhos para que outras que vieram e virão experimentassem uma passagem muito mais tranquila”, diz Simpson.

O mundo pode ainda não estar ao passo desejado de equidade, mas Renata Carvalho se anima com as mudanças – que define como graduais e lentas, mas constantes. Fala com entusiasmo de como a sociedade tem incluído pessoas trans em espaços de prestígio social – seja nas artes, na política, na medicina, no direito, na academia ou em tantos outros lugares.

A médio e longo prazo, ela crê que essa inclusão pode levar a comunidade trans aos espaços de tomada de decisão, garantindo condições ainda mais dignas de vida para as gerações futuras para manter esse traviarcado presente.

"O principal conceito de representatividade é estarmos presentes e as pessoas serem obrigadas a conviver com nossos corpos. É no convívio diário que conseguimos ter a nítida percepção da igualdade e a naturalização de quem somos”, diz Carvalho.

“A revolução no Brasil é travesti. Mirar no traviarcado, enquanto pessoa trans ou cis, significa buscar um mundo melhor e querer fazer parte desse processo de querer o bem para todas as pessoas, indistintamente. No traviarcado que tanto almejamos, cabem todas as pessoas”, finaliza Keila Simpson.

Fonte: https://revistamarieclaire-globo-com.cdn.ampproject.org/v/s/revistamarieclaire.globo.com/google/amp/comportamento/noticia/2024/06/a-revolucao-no-brasil-e-travesti-o-que-e-traviarcado-e-como-a-luta-trans-quer-mudar-o-mundo.ghtml

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