Uma chave importante para entender a evolução do comportamento humano e a história da humanidade é a questão da morte. A maneira como nós lidamos com a morte e com os mortos é mais um caso de herança transespecífica, lembrando que linhagens anteriores à nossa já promoviam cerimônias de sepultamento.
Há bons motivos para associar a autoconsciência com a realização de rituais que evoquem os mortos. Afinal, o desaparecimento definitivo de indivíduos que até ontem estavam a ombrear conosco é um grande golpe. Do tipo que gera questionamentos intrigantes – e.g., para onde vamos após a morte?; reencontrarei parentes e amigos mortos algum dia?; afinal, a morte é o fim de tudo?
Os assombros, as dúvidas e as ansiedades que geram e alimentam perguntas desse tipo costumam deixar marcas profundas e duradouras em cada um de nós.
Com raras exceções (e.g., apatia patológica), todos nós nos consternamos com o desaparecimento de pessoas conhecidas, sobretudo no caso de pessoas queridas. O mesmo tipo de reação tem sido observado em outros animais. Os símios, por exemplo, exibem comportamentos característicos quando estão diante do corpo sem vida de coespecíficos. Os estudiosos interpretam essas reações como manifestações de dor e tristeza, semelhantes às reações dos seres humanos.
Assim, diferentemente do que imaginam alguns, o mal-estar gerado pela morte de companheiros próximos não é uma exclusividade do animal humano. O que de fato parece ser uma exclusividade nossa é a capacidade de sublimar os sentimentos de dor e tristeza (e.g., por meio da arte).
O xis da questão aqui é a ideia de que a consciência da morte desempenhou um papel de relevo no desenvolvimento das primeiras ruminações filosóficas.
Oriundas da pré-história e cultivadas, quem sabe, em conversas noturnas diante de uma fogueira, essas ruminações teriam dado origem a algumas inovações culturais que nos acompanham há milhares de anos. A metafísica seria talvez o melhor exemplo.
Mais recentemente, já em sociedades agrícolas e sedentárias, essa tradição milenar foi apropriada e desenvolvida de modo mais sistemático por alguns especialistas.
Xamãs – digo: todo e qualquer personagem que seja um líder religioso e também um agente de saúde – ilustram bem o trabalho dos especialistas. Em seus primórdios, cabe notar que se tratava de um profissional que aprendia o seu ofício observando e ouvindo profissionais mais velhos.
À medida que o prestígio e a autoridade desses profissionais se impuseram, os demais integrantes do grupo talvez tenham percebido que valia a pena se esforçar um pouco mais em nome da manutenção de alguém cujo trabalho era tão útil ao grupo. Afinal, o xamã era alguém que aconselhava e curava os doentes, desde os feridos em guerra aos indivíduos com traumas psicológicos.
Foi o início da especialização funcional.
Com o prestígio, vieram os privilégios – e.g., não ser recrutado para as atividades mais perigosas. Em vez de irem à guerra, por exemplo, eles se dedicavam a atividades domésticas, como coletar plantas ou criar e testar poções curativas.
Os primeiros xamãs surgiram em eras pré-históricas, antes até das cerimônias de sepultamento (ver adiante). Especialistas mais sofisticados iriam sugir com o advento de sociedades agrícolas e sedentárias. É compreensível, visto que pensar de modo sistemático sobre a vida e a morte (filosofar, em sentido amplo) é uma atividade que exige tempo e dedicação.
Em eras pré-históricas, alocar mais tempo em atividades filosóficas implicaria em alocar menos tempo em atividades que eram mais urgentes e decisivas, como fabricar armas, caçar o jantar ou lutar contra grupos rivais. A agenda congestionada ajudaria a explicar porque a ruminação filosófica – e outras ruminações – só teria prosperado como atividade corriqueira e respeitável após o acúmulo de um nível mínimo de excedentes.
Fato é que a filosofia tem uma história milenar, recuando no tempo mais do que qualquer outra área do conhecimento. A origem da metafísica, especificamente, deve muito aos primeiros assentamentos e às rodas de conversa de então.
Cozinhar alimentos em uma fogueira teria servido não só para nutrir um cérebro em expansão, mas também para alimentar e exercitar o desenvolvimento da mente humana. Nessas conversas, os dramas e os desafios do dia a dia, incluindo a evocação dos mortos, seriam pautas importantes e recorrentes.
Cerimônias de sepultamento ilustram bem como a questão da morte sempre teve um papel de destaque em sociedades humanas. A emergência dessas cerimônias na evolução dos homininos costuma ser interpretada em dois níveis, no individual e no social.
No plano social, indicaria a existência de uma sociedade numerosa e já minimamente diferenciada em castas. No plano individual, seria uma indicação de que os indivíduos compartilhavam de crenças comuns a respeito da morte e dos mortos. No cômputo final, portanto, a constatação de que as cerimônias faziam parte da cultura dos homininos indicaria que, entre outras coisas, aquelas sociedades já dispunham de alguma tradição metafísica.
No contexto da vida em grupo, o hábito de sepultar cadáveres pode ter sido inicialmente adotado por razões sanitárias. O propósito inicial seria meramente pragmático – e.g., esconder o corpo e assim evitar a chegada de predadores ou a disseminação de patógenos.
A gradativa sofisticação observada ao longo do tempo sugere que as cerimônias tiveram um impacto positivo sobre os grupos, seja no planto coletivo, mantendo a coesão e a estabilidade grupal em torno de objetivos comuns, seja em termos individuais, aliviando tensões e ajudando a manter o ânimo e o bem-estar dos indivíduos. De resto, a crescente sofisticação refletiria a dinâmica cultural própria de cada grupo.
Mais especificamente, a sofisticação parece ter sido um desdobramento do que se passava no plano demográfico, notadamente o tamanho e a composição dos grupos. Em primeiro lugar, infere-se que a simples realização de cerimônias – custosas e, às vezes, bastante extravagantes – seria um forte indício de que havia especialização funcional dentro dos grupos. Além disso, só um grupo minimamente numeroso poderia manter e usufruir das vantagens oferecidas pela presença de especialistas. Como foi dito antes, o especialista era alguém que havia abandonado as tarefas habituais do dia a dia (e.g., caçar) para se dedicar a atividades, digamos, mais especializadas (e.g., cuidar dos doentes e dos moribundos).
Os sepultamentos coevoluiriam com um traço cultural que é próprio da espécie humana: a religião. As evidências indicam que a religiosidade era um traço virtualmente universal entre sociedades humanas pré-históricas. Eis as palavras de Norenzayan & Shariff (2008, p. 58; trad. livre, grifo meu) sobre essa universalidade:
“[E]stá a emergir um grande acordo de que as pressões seletivas ao longo do curso da evolução humana podem explicar a ampla recorrência intercultural, persistência histórica e a previsível estrutura cognitiva de crenças e comportamentos religiosos. A tendência para detectar agência na natureza provavelmente forneceu o modelo cognitivo que sustenta a crença generalizada em agentes sobrenaturais. Acredita-se amplamente que esses agentes transcendem limitações físicas, biológicas e psicológicas.”
Como traço cultural, o fenômeno religioso parece ter evoluído ao longo de alguns estágios bem-definidos, a saber (em ordem decrescente de antiguidade e abrangência): (i) animismo, (ii) crença em vida após a morte, (iii) xamanismo, (iv) adoração dos ancestrais, (v) divindades e, mais recentemente, adoração de (vi) ancestrais e de (vii) divindades, agora já com o intuito de que uns e outros possam intervir em questões do dia a dia.
O fato de que os traços (vi) e (vii) surgiram mais recentemente tem sido interpretado como uma evidência de que as sociedades mais antigas (nas quais apenas os traços i–v estavam presentes) seriam mais igualitárias, pois seriam desprovidas de castas ou de especialistas.
Fonte, com algumas edições e citado parcialmente: https://jornalggn.com.br/artigos/rituais-xamas-e-as-origens-da-religiao-por-felipe-costa/
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