terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O espelho perverso

Ou uma outra versão para a Rainha Má, da lenda da Branca de Neve.

Como era de hábito, a rainha entra em seu aposento privado, após passar pela entrada secreta que tinha em seu quarto.
Neste aposento não tem janelas, não tem decoração, não tem cortina, não tem tapetes, não tem arte. Tem apenas algumas velas que se mantém misteriosamente acesas que iluminam um único objeto coberto com um veludo vermelho.
Silenciosamente, na penumbra do aposento, a rainha retira, com certo cuidado e reverência, o veludo vermelho de cima do objeto, revelando que se trata de um grande espelho.
Não me pergunte, leitor, que aposento é este, nem porque ali está o espelho ou porque o espelho fica coberto por um veludo vermelho. Essas histórias ficam melhores permanecendo esquecidas e escondidas. Foi a rainha que construiu o aposento? Ninguém sabe. Acaso o espelho é uma estranha herança? Perguntar pode lhe custar o pescoço.
A rainha fica diante do espelho, cuja moldura causaria arrepios a uma pessoa normal e poucas encarariam sua superfície plúmbea.
- Espelho, espelho meu, há mulher mais linda do que eu? Pergunta a rainha. Não que ela tenha dúvidas, mas o rei tem demonstrado ultimamente uma estranha afeição por sua enteada.
- Vossa majestade precisa fazer dieta. Podia aproveitar para turbinar o bumbum e os seios. Isso ia disfarçar um pouco sua idade.
- Quê? Como ousa? Está me chamando de velha, gorda e murcha?
- Ah, fofa, eu só falo o que eu vejo.
Revoltada e ultrajada, a rainha, ao invés de ouvir outras opiniões, joga a culpa na sua jovem enteada. Antes, os caçadores que ela mandou para sumirem com esta jovem haviam falhado. Então ela decide resolver o problema com as próprias mãos. Toma emprestado as roupas de uma de suas criadas e nesse disfarce segue até a Casa de Campo Real, onde sua enteada se exilou.
No caminho, o pastor das cabras a reconheceu.
- Saudações, Vossa Majestade!
- Pastor, como tu pôde nos reconhecer?
- Minha Augusta Senhora, os tolos vos veem por vossa aparência, os sábios vos veem por vossa essência.
Antes disso, a rainha via a si mesma pelos olhos dos outros. esse é o espelho perverso pelo qual nós nos miramos, nos julgamos e sentenciamos de forma cruel e desumana, nos punimos, nos rejeitamos, nos mutilamos.
Estupefata pela revelação vinda de um simples pastor, a rainha rasgou o disfarce e assim que voltou ao castelo, tratou de destruir o espelho.
Quando o rei não lhe dava atenção ou ela ficava com pouca autoestima, ela mandava chamar o pastor de cabras para se divertir e viveu feliz para sempre.

Repostado, originalmente publicado aqui em 20/10/2010, resgatado com o Wayback Machine.

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