quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Você vai para Helheim?

Um dia, todos nós passaremos pelo mesmo destino: a morte.

E haja aguentar as frases feitas que as pessoas dizem quando alguém parte. Então é uma viagem.

Dizem que não se leva nada dessa vida. Errado. Cada um vai levar suas memórias, uma bela bagagem de seus atos e palavras, das coisas que realizou, erros e acertos.

Então imagine-se em uma central de ônibus, de trem, de navio ou de avião. Você e sua bagagem. Uma fila enorme até o guichê de check-in.

Tanjiro certamente seria detido na alfândega por levar sua irmã, Nezuko, em uma caixa.

Andrew Hall, na coluna Nonreligious, em sua página Laughting in Disbelief, faz as seguintes perguntas [de forma irônica e satírica], imitando um pastor evangélico:

. Jesus é o Senhor de sua vida?

. Jesus morreu pelos seus pecados?

. Você está carregando sua cruz diariamente para que todos possam ver?

. Você acha que apenas 10% de sua renda bruta é suficiente para o dízimo?

. Os católicos são cristãos?

. Quantas bolhas tem uma barra de sabão?

. Os homossexuais roubaram o arco-íris?

. Você largou de se masturbar por Jesus?

. Explique a Trindade com seus olhos fechados.

. Seu gato é cristão?

Eu lamento pelo spoiler, mas o descrente/ateu também está aqui, tão perdido e desorientado quanto todos nós. Por falta do que fazer, eu rabisco alguns comentários. Eu acho que perguntas de ordem existencialista não podem ser resolvidas pela lógica aristotélica, respostas para estas questões precisam ter um amplo espectro de alternativas.

A primeira pergunta é capciosa. Quando o cristão declara que Jesus é o Senhor, isso pode ser interpretado no sentido divino e no sentido secular. O cristão declara que Jesus é Deus, mas Senhor pode ser entendido no sentido feudal, no sentido de que Jesus ocupa uma posição dentro de uma monarquia. Veja bem, a monarquia, na Era Contemporânea, é constitucional ou parlamentarista, então tem mais gente participando dessa relação de senhorio. Para que Jesus fosse Senhor, no sentido de Rei, ele teria que estar na linha sucessória do trono. Analisando as referências da Bíblia, Jesus não estava na linha sucessória de Herodes, então ele não pode ser o Senhor. Jesus é declarado Deus porque ele é o Cristo, mas analisando as referências da Bíblia, Jesus não preenche os pré-requisitos para ser considerado o Ha-Massiah que, segundo as referências da Bíblia, ele é o Ungido de Deus, não seu Filho, nem Deus. Mesmo se fosse o caso, as profecias sobre Cristo deixam bem claro que este tem a incumbência de trazer a Salvação somente ao Povo de Israel. Conclusão obvia é que Jesus não é o Senhor da minha vida.

A segunda pergunta é falha, pelos motivos que eu apontei na primeira pergunta. O pecado é o carro-chefe das religiões abraãmicas, mas o sacrifício de Jesus não foi realizado conforme os protocolos para que ele pudesse ser o “cordeiro sacrificial”, tal como está prescrito no Levítico. Eu tenho que apontar que, para que o sacrifício de Jesus fosse aceitável, ele teria que ser imaculado, algo impossível e improvável, considerando as circunstâncias duvidosas de seu nascimento.

A terceira pergunta é impraticável. Isso seria um elemento que complicaria o trânsito. Consegue imaginar o comércio e as empresas tendo que providenciar um estacionamento somente para que os funcionários e clientes possam estacionar suas cruzes? E em um pedágio? A tarifa deve considerar o material, tamanho e forma de transporte? As cruzes devem ter faixas reflexivas, faróis de sinalização?

A quarte pergunta é incoerente. Jesus mesmo dissera que deve ser dado a César o que é de César. Os apóstolos disseram que nós estamos no Tempo da Graça, então o cristão está isento do dízimo, uma regra do Judaísmo.

A quinta pergunta é polêmica, afinal, o cristão católico pensa a mesma coisa do cristão evangélico. Se considerarmos as inúmeras vertentes que existiram e existem do Cristianismo, é impossível definir quem é o verdadeiro cristão.

A sexta pergunta é uma pegadinha. Que tipo de barra de sabão? E quanto ao sabonete líquido?

A sétima pergunta é estúpida. O arco-íris não pode ser roubado, uma vez que não é um objeto físico.

A oitava pergunta é estranha. Tem um sentido dúbio, faz entender que tem cristão se masturbando para Jesus. Eu não duvido que existam casos assim.

A nona pergunta é incoerente. A Trindade é um dogma que faz parte da teologia cristã. Uma questão que foi resolvida por concílios, guerras e assassinatos.

A décima pergunta é incompreensível. Todo mundo sabe que gatos estão mais associados às bruxas. Como ficam os cães, os pássaros e peixes?

A fila está enorme e não vejo sinais de que vai andar. A agência [eu não sei se posso usar esse termo] que cuida do despacho das almas está ocupada demais. Nos últimos séculos houve um aumento substancial de desencarnados [guerras, fome, doenças, mudanças climáticas... escolha]. Os funcionários tem que usar de violência para organizar essa bagunça e recolocar as almas no lugar. A alguns metros de onde eu estou eu vi uma alma sendo esmagada por um funcionário de 3 metros de altura e 200 quilos de músculos. Peculiar, afinal, não se pode matar o que está morto, mas a dor ainda é bem intensa.

Os fiscais de fila ficam no vai-e-vem, as filas muitas vezes dão nó. Então eu me deparo com funcionários reportarem algo para uma funcionária. Ela deve ser a chefe.

- Major, nós estamos com um problema.

- O que foi?

- Nós demos as informações básicas, mas esta alma simplesmente se nega a aceitar.

- Diga, alma, porque nega sua condição?

- Algo só existe quando tem evidência de existência.

-Entendo. Você é um descrente, um ateu.

- Precisamente.

- Você consegue perceber o local no qual se encontra atualmente?

- Evidente.

- Excelente. A sua percepção é um bom ponto de partida. Caso essa alma continue criando problema, deixe-a em um dos cantos de reflexão. Ela mesma será capaz de entender a condição na qual se encontra.

Ao voltar a caminhar, os olhos dessa funcionária se detêm ao se deparar comigo.

- Você é um daqueles?

- Daqueles quem, senhorita?

- Dos ditos pagãos modernos.

- Eu tenho o dever e a obrigação de confirmar, senhorita.

- Então não tem medo de ir para o Inferno?

- Nenhuma. O Reino dos Mortos é o destino de todos nós. O nome Inferno, em inglês, é chamado Hell, originário do Reino de Hel [Helheim], a Deusa dos Mortos na mitologia nórdica. Para os Gregos Antigos, é o Reino de Hades. Para os Romanos Antigos, é o Reino de Orco. Para os Celtas, é Tir na Nog, ou a Terra dos Ancestrais. A minha família deve estar aguardando a minha chegada.

- Então não está com medo, mas ansiedade?

- Eu estou um pouco apreensivo. Eu não tive uma vida muito correta.

- Então não se importa com o que nós vamos fazer com você?

- Oh, bem, eu acho que tenho que aceitar o julgamento.

A funcionária dá um sorriso cínico de satisfação, me agarra, me coloca deitado no chão pedregoso e simplesmente me estupra ali mesmo, na frente de todos. Eu fico completamente exausto, esgotado e drenado. Ela levanta, sorri mais uma vez e segue com sua rotina. Antes de ir embora, diz algo que me deixa animado.

- Excelente. A Imperatriz ficará exultante ao saber que você chegou. Agora que você está aqui, nós poderemos nos divertir um pouco.

Eu sinto a raiva dos demais penitentes. Eu não tenho culpa de ter a vantagem de ser um pagão moderno. Eu não tenho culpa que Hel goste de mim. Se um pastor evangélico me perguntasse se eu quero ir ao Inferno [Hell], eu responderia sim, sem hesitar. Como disse John Milton, é melhor reinar no inferno do que servir no céu.

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