terça-feira, 24 de agosto de 2021

Jornal Contrasexual

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Homem da geração y5, conheça esta nova tendência: GeneticS-EX. Acesse os espécimes selecionados de sapiens XX: ampla gama de tipos, variedade de traços e cabelos. São criados soltos em nossa área de 20000 m2 no coração de Manhattan, onde se divertem uns com os outros, conectados na rede. A alimentação destas mulheres é à base de ômega 3, 6 e 9, fósforo e antioxidantes. Acesse nosso site e veja os filtros disponíveis para a seleção de seu exemplar. Maximize seu prazer sexual: selecione características físicas compatíveis com seus desejos e membro. Garanta a transmissão do melhor patrimônio genético a seus filhos. Agende, online, sua visita. As XX sapiens estão disponíveis em chat e esperam por você!

[Boletim de Notícias]
Nesta segunda-feira, o cientista holandês Dick Schilthuizen veio a público anunciar sua mais nova invenção: úteros artificiais. Graças aos avanços da nanotecnologia, será possível gestar bebês de modo controlado e seguro neste maquinário. Sondas conduzirão os nutrientes necessários à circulação sanguínea, garantindo ao feto uma dieta balanceada de acordo com os padrões estabelecidos pela FDA. Seus batimentos cardíacos e respiração serão monitorados. Os pequenos holandeses se desenvolverão nestas máquinas e as mães continuarão sua rotina normalmente. “A revolução feminista finalmente chegou”, defende o cientista: “as mulheres agora estarão livres das dores do parto e dos incômodos da gravidez! A preocupação com o uso de medicamentos, ingestão de bebidas alcoólicas, quantidade de exercícios físicos, acabou!”, comemora o pesquisador.

O presidente do Japão, Hiroshi Yamane, anuncia: “Tivemos êxito em 99,3% dos casos, a expectativa de vida dos indivíduos permanece a mesma. A seleção de homens com os melhores genes agora é possível”. O presidente afirmou ainda que os cientistas estudam vender este projeto à China e aos Estados Unidos. Negociações com a Alemanha iniciam-se amanhã. [Autora: Bruna Coelho]

[Música Introdutória]
- Hoje em nosso auditório, temos a projeção holográfica do doutor Moureau. Exclusividade do seu programa “Alice Pergunta”. Bem vindo doutor Moureau. O senhor é especialista em antropologia do século XXI. Não é um tanto contraditório falarmos em “antropologia” em um século onde o pós-humanismo estava no auge?

– Saudações Alice e a todos os indivíduos, alfa, beta, gama. Boa pergunta, Alice, mas o termo é cabível, uma vez que no século XXI a espécie Sapiens ainda estava lidando com conceitos arcaicos como gênero, identidade e preferência sexual, modelos de relacionamento. Demoraria o século para que a espécie Sapiens deixasse de usar a alcunha “ser humano” e “humanidade” para se referir à nossa espécie.

– E o que o senhor como antropólogo e especialista no século XXI pode nos dizer desse período tão contraditório, confuso, violento e conturbado?

– O século XXI foi um período de transição. Instituições arcaicas enfrentavam sua decadência tentando instilar ódio, preconceito, intolerância, segregação. Mas este século tem por característica o acesso à informação com certo nível de velocidade e liberdade, muito embora ainda com falhas e condicionantes, era bem superior aos séculos anteriores. Curiosamente foi esse meio de comunicação que nossa espécie começou a entrar em contato com o que era chamado de “realidade virtual”. Ali aconteceu o início da vida humana em um ambiente que transcendia o que era concebido como “real físico”.

– Deve ter sido difícil para nossos velhos entenderem o que estava acontecendo. Devem ter sentido medo e insegurança. Como nossos velhos enfrentaram e encararam as mudanças inevitáveis?

– Curiosamente herdaram muito das expectativas, idiossincrasias e temores dos avós deles. Conviviam e consumiam a tecnologia com mais frequência do que os avós deles, mas mantiveram ideias ultrapassadas de que a tecnologia iria destruir o mundo, a humanidade. Mesmo entre artistas, escritores, intelectuais, a perspectiva de nossos avós quanto ao tempo presente, o “futuro” para eles, produzia cenários ora utópicos, ora caóticos. Igualmente curioso, foi no meio da Arte, da Filosofia, que o conceito de pós-humano foi gerada.

– Nossa produção transmitiu alguns textos de possíveis anúncios e notícias que seriam comuns em nossa época. Como a antropologia do século XXI analisa essas manifestações?

– Excelente pergunta, Alice. Veja que o texto ainda reflete os mesmos conceitos arcaicos sobre gênero, genética e DNA. O “anúncio” ainda identifica “homem” como sendo um gênero definido e ainda identifica o gene XX como sendo “mulher” ou “feminino”. A autora escreveu dentro de parâmetros feministas obsoletos como “sexismo”, ”machismo”, “patriarcado”. Ela não consegue disfarçar sua tecnofobia ao achar que as novas tecnologias seriam usadas para “criar” escravas sexuais para o “homem”. Foi necessário desenvolver a tecnologia de tratamento com células tronco para a medicina, a genética e a biologia descobrirem a existência de um terceiro cromossoma. Foi um marco na historia da espécie Sapiens, pois foi provado cientificamente que nossa espécie possui três gêneros ou mais.

– Eu me lembro disso e agradeço a todos que tornaram possível essa realidade. Mas a tecnologia de células tronco não foi a única pesquisa que alterou o conceito sobre nossa espécie, certo?

– Absolutamente certo, Alice. O Instituto Prometeu levou mais adiante as pesquisas com clonagem, células tronco e impressão em 3D com tecidos biológicos, tornando possível não apenas criar e reconstruir órgãos, mas também corrigir defeitos congênitos. Infelizmente o instituto explodiu, provavelmente alvo de algum grupo religioso fundamentalista. No entanto, outros institutos de pesquisa continuaram com esse trabalho e conseguiram repetir o ultimo projeto do Instituto Prometeu que consistia em construir um ser humano integral, completamente híbrido. Então a tecnologia tornou completamente incoerente falar em “escravas sexuais”, visto que não havia mais o gênero “mulher” ou mesmo a espécie “humana”. Seres híbridos eram criados para os mais diversos fins, incluindo sexuais, outra conquista possível graças à desconstrução do pós-humanismo do século XXI.

– Isso inclui a queda de diversos tabus, regras e proibições que ainda estavam em voga no século XXI?

– Completamente. A ideia e conceito do que era humano estavam completamente superados. Como nos tornamos capazes de criar seres humanos, conceitos arraigados de faixa etária perderam o sentido. Como transcendemos a ideologia de gênero restrita a dois gêneros, todas as formas de união se tornaram naturais. Como resignificamos nossa espécie de “ser humano” para Sapiens, deixou de ser usado “homem” e “mulher”, mas indivíduos alfa, beta e gama. Graças a estes avanços, nossa sociedade atual reconhece diversas formas de relacionamentos.

– Isto acarretou transformações nas concepções que presumiam que sexo, casamento e reprodução eram eventos covalentes?

– Totalmente. A produção foi competente em citar a “notícia” sobre “úteros artificiais”. Mesmo para o século XXI, tal estranhamento é anacrônico, visto que existiam próteses desde o fim do século XX. Com a tecnologia de células tronco, clonagem e impressão 3D, qualquer indivíduo pode implantar o sistema reprodutor que desejar. Deixou de ter sentido a separação entre “artificial” e “orgânico”. Todo indivíduo pode, inclusive, escolher outras formas de reprodução assistida que existem, sem que seja necessário ter relações sexuais ou estar casado. Deixou de ter sentido restringir um indivíduo a uma determinada faixa etária ou fase de amadurecimento, uma vez que todo indivíduo pode criar qualquer tipo de indivíduo que desejar para si, bem como estabelecer o tipo de relacionamento que quiser.

– Isso é incrível, doutor Moureau! Nós que vivemos no século XXX temos que agradecer muito aos nossos percursores do século XXI. Sem a luta e conquista de tantos heróis, nós não poderíamos ter uma sociedade tão avançada como a nossa. O senhor tem alguma novidade para nossos telespectadores?

– Sim, eu tenho. Meu projeto de inserção gradual de indivíduos geneticamente modificados com agente feral está sendo bem sucedido e bem aceito. Meu laboratório está tentando desenvolver novos agentes genômicos que tornarão possível existirem indivíduos com qualquer outra forma de aparência desejada. Em breve espero lançar o agente umbral, o agente celestial, o agente elemental e o agente divinal. Se eu for bem sucedido, a espécie Sapiens poderá transcender a humanidade definitivamente.

– Ótima notícia! Assim que o senhor tiver mais novidades, por favor, avise-me, pois eu estou doida para ter o corpo de uma súcuba. Por hoje é só, pessoal. Aqui é Alice, sua apresentadora do programa “Alice Pergunta”.

Texto resgatado do extinto Sociedade Zvezda.

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