A presidência da Funai foi entregue por meses ao pastor Ricardo Dias, e a coordenação do órgão em Mato Grosso ficou com Henrique Tena, indígena evangélico, amigo de Damares, que presidia o Conselho Nacional de Pastores e Líderes Indígenas, o Conplei. Para piorar, as demarcações de terras indígenas saíram do âmbito da Funai para o Ministério da Agricultura – por meio de um decreto derrubado pelo STF seis meses depois, em junho de 2019, numa decisão unânime.
Essas escolhas poderiam representar apenas uma preferência política do governo, mas havia muito mais envolvido. Elas eram a afirmação de uma visão teológica fundamentalista e de uma estratégia para conquistar territórios por meio da expansão do projeto evangelizador. Menos terra, mais pregação: era o auge do antigo sonho de oferecer aos indígenas a chamada cosmovisão cristã – uma ideologia teológica que busca enquadrar todas as dimensões da vida, e da sociedade, na assimilação pelo cristianismo –, sem ser repreendido pelas instituições que deveriam protegê-los e zelar pela laicidade do estado.
Enquanto isso, as denúncias de avanço do garimpo sobre as terras indígenas se avolumavam, vindas de ativistas, organizações nacionais e internacionais. Confortáveis sob a proteção do governo, as agências missionárias não agiram, não denunciaram, não mostraram desconforto, não clamaram por uma intervenção.
Em vez disso, quando, em janeiro de 2021, Bolsonaro foi denunciado pelos caciques Almir Suruí e o prestigiado Raoni Metuktire ao Tribunal Penal Internacional por assassinato e perseguição de povos indígenas, os evangélicos buscaram imediatamente blindar o então presidente. O Conplei, em carta assinada por Henrique Terena, afirmou: “O presidente Jair Messias Bolsonaro e o presidente da Funai são amigos dos povos indígenas e têm o nosso apoio”. Além disso, a carta diz que a representação do cacique Raoni é “subsidiada por ONGs e/ou instituições que acabam por opor os povos indígenas ao estado, desinformando e alardeando-os sobre projetos genocidas que não constatamos”.
O genocídio atravessou os anos do governo Bolsonaro como parte do processo de desproteção total da população indígena. Já estava em curso quando o pastor Marcos Coty – aliado de Bolsonaro e líder de uma das maiores e mais influentes agências missionárias no mundo, com forte atuação entre os povos indígenas – debochou do cacique Raoni, internado com covid-19 em setembro de 2020. Coty publicou um uma imagem dizendo que Raoni “teve o sistema antivírus atualizado”.
Essas organizações e agências missionárias criaram uma espécie de mundo paralelo, completamente autônomo e, em grande parte, desconectado da academia tradicional. Fundaram universidades, instituições de ensino e uma espécie de filosofia de conhecimento própria, que dispensava a necessidade de dialogar com centros não confessionais. Instituições como a Universidade das Nações, ligada à Jocum, e o Instituto Haggai, ambas espalhadas em várias partes do globo, formam anualmente um grande número de lideranças e missionários do campo evangélico.
A cosmovisão cristã conservadora forma grande parte dessa gente que mantém em mente a ideia de chegar aos chamados “povos não alcançados”, nos quais os indígenas se incluem. A despeito das exceções que podem sair desses espaços, eles funcionam como verdadeiros centros de base intelectual e acadêmica para os projetos evangélicos fundamentalistas de ocupação dos territórios indígenas.
Com décadas de caminho trilhado nessa selva missionária, ao se tornar ministra, Damares Alves levou a ideologia salvacionista para dentro do governo. Uma teologia fundamentalista que, como “fruto”, exibia indígenas convertidos em missões passadas, como mediadores e legitimadores das políticas bolsonaristas para a área.
Mas é preciso ser dito: muitas dessas organizações têm relações com o poder mesmo antes de Bolsonaro. A Missão Evangélica Caiuá, do Mato Grosso do Sul, por exemplo, é praticamente “dona” da saúde indígena no Brasil, como já publicado pelo Intercept em 2017. Um domínio que envolve poder político, influência e muito dinheiro.
É óbvio que isso não deve desqualificar o trabalho dos muitos missionários sérios e comprometidos que atuam em terras indígenas. Há sim compromissos reais com a vida dos povos originários, sobretudo com sua saúde. Mas esses indivíduos não são as agências, nem as organizações, nem as igrejas e lideranças que estão por trás deles.
A maioria dos missionários e missionárias – aliás, muitos jovens empolgados com a ideia de “espalhar a mensagem de Jesus” – não tem a dimensão real do projeto de poder em que se incluíram, com uma teologia muitas vezes fundamentalista e sectária. O projeto de evangelização existe e continua sendo a real prioridade dessas instituições. O silêncio de todas elas (apenas alguns indivíduos missionários vieram a tentar expor um ponto de vista sobre a tragédia) é proporcional à indiferença diante da ameaça sofrida pelos indígenas com o garimpo e os madeireiros. Fundamental é ter missionários no território, um ponto de culto, e indígenas convertidos.
Essas agências e organizações devem ser incluídas no rol de investigações sobre como a situação dos Yanomami chegou até esse ponto. Elas estavam lá. Suas lideranças sentaram à mesa de Bolsonaro, se beneficiaram do amplo protagonismo, voz e acesso cedido pelo governo, confraternizaram com Damares Alves. Proibir a entrada dessas agências agora não é o suficiente. É preciso investigar o seu papel e contabilizar as consequências da sua conivência.
Fonte: https://theintercept.com/2023/02/10/genocidio-yanomami-missoes-evangelizadoras-tem-que-ser-investigadas/
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