Vídeos amplamente divulgados nas redes sociais mostram crianças muito jovens, algumas com menos de cinco anos, repetindo discursos inflamados, imitando adultos em sermões e até mesmo realizando rituais de expulsão de demônios. Essas imagens geram debates sobre o papel das igrejas na proteção da infância e a responsabilidade dos responsáveis legais dessas crianças.
O caso da pequena “Vitória de Deus” é um exemplo simbólico desse fenômeno. Em vídeos amplamente divulgados, a criança aparece no púlpito repetindo frases desconexas, demonstrando insegurança e, em alguns momentos, confusão. “Eu tinha vergonha das brigas que briguei sozinha. Tenho vergonha do quanto eu era homofóbica, quando eu era criança”, declara em um vídeo atribuido a sua conta. Suas palavras são a reprodução de discursos absorvidos dentro da própria comunidade religiosa, revelando um ambiente onde crianças são incentivadas a falar sobre temas que não têm maturidade para compreender.
Especialistas alertam que a superexposição pode gerar conseqüências graves. “Essas crianças estão sendo treinadas para desempenhar um papel sem compreender suas implicações”, explica a psicóloga infantil Renata Souza. “A pressão por corresponder às expectativas da comunidade pode resultar em ansiedade, baixa autoestima e conflitos emocionais na fase adulta”.
A prática também levanta questões teológicas. Na epístola de 1 Timóteo, o apóstolo Paulo adverte contra a colocação de “neófitos” — recém-convertidos — em posições de liderança, sob o risco de se tornarem presunçosos e caírem em armadilhas espirituais. No entanto, se nas igrejas evangélicas o batismo é restrito a adultos ou adolescentes, como justificar que crianças sejam elevadas a cargos de pregadores? Esse paradoxo evidencia que a prática é menos sobre fé e mais sobre uma construção midiática e institucional. Repito: 1 Timóteo 3:6–7, adverte que neófitos, ou seja, novos na fé, não devem ocupar posições de liderança para não se tornarem presunçosos.
A infância é um período em que as crianças começam a formar suas próprias opiniões e a questionar o mundo ao seu redor. Se elas são ensinadas a não duvidar ou a aceitar tudo sem questionar, isso pode limitar sua capacidade de pensar criticamente no futuro. O pensamento crítico é essencial para a resolução de problemas e para a tomada de decisões informadas. Sem ele, as crianças podem ter dificuldades em lidar com situações complexas na vida adulta.
Quando as crianças são desencorajajadas a expressar suas dúvidas ou a questionar crenças, elas podem se sentir alienadas. Isso pode levar a um sentimento de isolamento, onde a criança não se sente à vontade para compartilhar seus pensamentos e sentimentos. A falta de habilidades de pensamento crítico pode dificultar a capacidade das crianças de se relacionar com os outros. Isso pode levar a conflitos e dificuldades em formar amizades saudáveis, essenciais para o desenvolvimento social.
A alienação e a falta de questionamento podem impactar o aprendizado. E o ambiente escolar deve ser um espaço onde as crianças se sintam seguras para explorar e aprender, e a falta de incentivo ao pensamento crítico pode prejudicar isso.
A infância é um momento em que as crianças formam suas crenças e valores. Se elas são ensinadas a aceitar dogmas sem questionar, isso pode levar a uma visão de mundo limitada e a uma falta de empatia em relação aos outros.
Além do impacto sobre as crianças, é preciso questionar quem realmente se beneficia dessa tendência. Em muitos casos, os pais ou responsáveis utilizam a exposição dessas “crianças ungidas” como forma de ganhar notoriedade dentro da comunidade religiosa. Algumas chegam a ser levadas para turnês em diferentes igrejas, com agendas lotadas de cultos e eventos.
Há também a monetização por meio das redes sociais. Vídeos de pregadores mirins acumulam milhões de visualizações no YouTube e no TikTok, gerando receita por meio de anúncios e doações. Muitas vezes, a família dessas crianças recebe ofertas generosas para que elas preguem em diferentes cidades. Isso as transforma em verdadeiros totens religiosos.
Essa exposição não ocorre sem controvérsias. Muitas dessas crianças se tornam alvos de zombaria na internet e fora dela, sendo ridicularizadas por discursos que não compreendem completamente, mas apenas repetem.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei nº 8.069 de 1990, estabelece diretrizes fundamentais para a proteção dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil, garantindo que sejam tratados com dignidade e respeito. Nos últimos anos, as eleições para os Conselhos Tutelares têm sido marcadas por uma crescente mobilização de lideranças evangélicas, refletindo uma disputa acirrada entre grupos religiosos e movimentos sociais. Em 2023, as eleições para os conselhos tutelares mostraram que uma significativa maioria dos candidatos eleitos se declarou cristã evangélica, evidenciando a influência desse segmento na defesa dos direitos da infância e adolescência.
Essa situação levanta preocupações sobre a possível imposição de valores religiosos nas decisões desses conselhos, que deveriam atuar de forma laica e imparcial. A participação de representantes religiosos nos conselhos tutelares, embora permitida pelo ECA, suscita debates sobre a adequação de suas práticas e a necessidade de garantir que os direitos das crianças sejam priorizados acima de qualquer agenda religiosa.
Diante desse contexto, fica a reflexão: até que ponto a fé pode justificar práticas que, na realidade, podem violar os direitos fundamentais da infância?
Fonte, citado parcialmente: https://www.brasil247.com/blog/pregadores-mirins-criancas-como-totens-religiosos
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