terça-feira, 2 de junho de 2015

Os calundus

Quando percebia que seus exorcismos não surtiriam efeito, frei Luiz recomendava que se procurassem negros calundeiros. Na verdade, frei Luiz denotava aguda sensibilidade: os demônios do calundu não eram os mesmos de que a Igreja dava conta, portanto havia que chamar especialistas que saberiam lidar com eles. Conhecia de perto os calundus, chegara provavelmente a frequenta-los, apesar de não dizer claramente: alega que se enfronhara do assunto por mera curiosidade, através de perguntas feitas a negros que costumavam assistir a eles. Sabia que eram festas muito frequentes na cidade da Bahia e suas imediações; nelas, os negros saltavam muito, faziam vários trejeitos com o corpo e davam gritos até caírem ao chão feito mortos.
Na Bahia, praticas rituais africanas já eram então designadas como calundus. Nesta mesma época, no Rio de Janeiro, Domingos Álvares praticava o que parecia ser um calundu. Orientava a cerimonia na qual havia no chão uma vasilha d’agua com faca de ponta cravada nela e em volta várias pessoas. Nos autos do processo que trata do incidente, define-se calundu como o ato de pular de várias danças, realizando obras ofensivas a Deus e às criaturas.
No Curral del Rei, um escravo de Inácio Xavier adorava ao deus de sua terra tendo no teto de sua casa uma panela, que reverenciava; punha-lhe guisados e trastes à mesa, pedia-lhe licença para comer e ao redor da panela fazia festas e calundares, de que a fama é o mesmo feiticeiro.
Poucos anos depois, em Congonhas do Campo, um negro fazia curas com feitiçarias, ajuntamento de begros, danças e batuques em sua casa; chegara mesmo a ser preso por estas culpas, que passara a carregar no nome: todos o conheciam por Domingos Calandureiro. Antonia Luiza, associada a dois outros companheiros, convocava negras e pardas para adorar danças e utilizava defuntos para domarem as vontades dos senhores.
Violante Coutinho, moradora no arraial de São Gonçalo, dançava e fazia calundares e em sua casa os negros tangiam atabaques. Em Sabará, através do abominável divertimento da dança de calundus, uma preta angolana atraía suspeitas de que invocava demônios.
Em 1728 Nuno Marques deixou registrada uma das primeiras descrições literárias de um calundu. Hospedado por um fazendeiro, não pode dormir direito devido ao estrondo dos tabaques, pandeiros, canzás, botijas e castanhetas dos negros, fazendo tão horrendo alaridos que pareceu a confusão do inferno. São uns folguedos, ou adivinhações que dizem estes pretos que costumam fazer nas suas terras e quando se acham juntos, também usam deles cá, para saberem várias coisas; como as doenças de que procedem; e para adivinharem algumas coisas perdida; e também para terem ventura em suas caçadas e lavouras; e para muitas outras coisas. Os negros da colônia viam-se às voltas com o esforço de preservação dos valores herdados dos antepassados, procurando inclusive reconstruí-los, seja no segredo dos calundus, seja no isolamento armado dos quilombos; os brancos chegavam até a designar os calundus como mocambos ou quilombos. O paternalismo tolerante e compreensivo do senhor e a intransigência dogmática e ortodoxa constituíam, portanto, duas faces possíveis da ideologia da camada senhorial.
Uma das descrições do ritual é bastante semelhante ao que conhecemos hoje do candomblé: fazia calundares posta em um altarzinho com seu dossel e um alfange na mão, com uma fita larga amarrada na cabeça lançadas as pontas para trás, vestida a modo de anjo e cantando duas negras e um preto tocando atabaque e tocando e cantando estão por um espaço de uma até duas horas, ficava ela fora de juízo, falando cousas que ninguém entendia, deitavam pessoas que curava no chão, passava por cima delas e nestas ocasiões é que dizia que tinha ventos de adivinhar.
Os mitos simbolizados pelos rituais como calundu podem ter-se perido e se alterado bastante no tempo. Mas o rito, fixado no período colonial, manteve-se de maneira impressionante igual ao que é hoje. Os atores do rito nem sempre conhecem o mito que subjaz ao rito, este não tem como mudar muito, dadas as limitações de ordem muscular, que lhe permitem variações limitadas pelo corpo. O mito, ao contrário, fica aberto à ação quase infinita da imaginação criadora. Conservados quase que como segredo, em nichos, os traços culturais africanos preservados serviriam para que se intentasse reconstruir a sociedade africana, num movimento que se realizava de cima para baixo – da superestrutura para a infraestrutura.
Traços específicos a cada tribo acabaram por constituir uma só cultura: produziu-se dissociação entre etnia e cultura. Assim heranças e aquisições diversas muitas vezes se mesclaram numa mesma manifestação cultural, como o calundu. A interessante dança de tunda ou acotunda ilustra este sincretismo religioso afro-brasileiro e indica nuances existentes no seio dos próprios ritos africanos.
Conforme os depoimentos, os negros cantavam na língua courá e alguns deles proferiam palavras da fé católica. Próximo ao altar ficavam várias cabaças, frigideiras de barro cheias d’agua, uma panela pintada de sangue, espinhos de peixe, búzios. Courá seria o meso que courano, curá, curano e mais algumas formas encontradas sobretudo nas Minas setecentistas.
Há certa unidade em todas estas praticas: a possessão ritual – os ventos de adivinhar – a evocação de espíritos [em geral de defuntos], as oferendas feitas a eles, os trajes de inspiração africana, a adivinhação, às vezes curandeirismo, a musica cantada e marcada pelos instrumentos de percussão, o caráter coletivo. Mas também há heterogeneidade, as variações acabando por desembocar no calundu.
Fonte: O Diabo e a Terra de Santa Cruz – Laura de Mello e Souza, pg. 263 – 269.

domingo, 31 de maio de 2015

O falo e o chifre

A proposta deste artigo é apresentar uma matriz figural para o masculino, determinada a partir das representações parietais e escultórias do Paleolítico, em confronto/conjunto com o feminino, na qual a protofiguratividade (conjunto de traços mínimos) é recorrente e dela se conota um sentido, um significado pleno de valor para a sociedade do período, que poderá ser reconhecida ao longo das eras em sua essência, embora recoberta pelos novos valores culturais.

A partir da distinção feita entre a representação do masculino e do feminino é possível estabelecer uma leitura significativa das representações parietais e escultórias encontradas no Paleolítico. Enquanto a figura da mulher ocupa o centro das atenções e representa a grande Deusa Mãe, o masculino é representado, principalmente pelos machos animais, privilegiando as regiões de força/virilidade, o dorso e o sacro (características sexuais primárias – órgãos reprodutores); a cabeça alongada e os chifres, que, como o corpo, têm inscritos os elementos de força, tomados aqui como arma de defesa ou de ataque e, portanto, de virilidade. A sobreposição de imagens de animais machos às figuras femininas, ou sua representação nas paredes dos abrigos onde as estatuetas das vênus foram encontradas, indica uma relação entre esses animais e as vênus.

O estudo do simbolismo sexual em contextos pré-históricos

Não se trata de ignorar os aspectos tecnológicos ou materiais da vida em sociedade, mas de considerar que são de igual importância as representações sobre a vida social, em qualquer época e lugar, mas tanto mais no que se refere aos povos do passado. Essas representações simbólicas seguem lógicas que são diversas daquelas derivadas do racionalismo iluminista e que caracterizam a ciência moderna. Os sistemas de crenças de cada grupo humano são meios de compreensão do mundo, de modo que, quando os azandes, por exemplo, tomam a bruxaria como uma realidade, essa explicação mágica se torna não apenas lógica e racional, como fornece um significado moral para o que acontece na sociedade.

Cremos que não e isto nos leva ao segundo aspecto da nossa abordagem sobre o passado mais antigo do seres humanos e suas representações: a sexualidade. De fato, haveria algo mais típico da nossa época do que a preocupação com o sexo? Não, por certo, no sentido de que a modernidade seja mais dedicada ao relacionamento sexual do que outras épocas ou sociedades: de fato, não há prova alguma de que, nesses termos, sejamos os modernos ocidentais mais propensos a tais atos do que nossos antepassados. O que nos caracteriza é a invenção da narrativa sobre o sexo, ao qual damos o nome de sexualidade, e somos, aí sim, prolíxos e prolíficos.

Preocupação central não é pouco e isso resulta dos movimentos sociais como o feminismo, mas também pela diversidade em geral. A própria discussão da masculinidade, neste contexto, adquiriu contornos novos e relevantes, em direção à discussão das identidades multifacetadas, plurais e mesmo conflitantes. Os temas relativos à sexualidade e ao gênero foram particularmente relevantes para a revisão do estudo da mais alta pré-história. Neste artigo, tratamos de uma forma de representação pré-histórica bem conhecida e estudada, mas pouco explorada em seus aspectos simbólicos a um só tempo religiosos e sexuais. Para isso, nos valeremos de uma perspectiva semiótica que permita discutir alguns aspectos do simbolismo dos nossos antepassados mais distantes.

Do chifre ao falo

A representação do macho (animal e/ou homem), diversamente das vênus, apresenta uma circularidade nas transformações sêmicas, ou seja: o lexema chifre, após as transformações, recai sobre o lexema falo, e vice-versa. Ambos (falo e chifre) apresentam o mesmo percurso, só que inversamente, confirmando a leitura antropológica do consorte da Deusa como veículo de morte por excelência e, ao mesmo tempo, veículo fertilizado. Dessa forma, o círculo em que ele se inscreve é caracterizado pelas transformações classemáticas e sêmicas por que passa a forma cilindróide e que levam do animal ao cutural, retornando ao animal/humano.

A análise de diversas representações animais, como o Bisão de Altamira, o Touro de Lascaux e outros machos sobrepostos às ancas/sexo das imagens femininas, levou a definição do conjunto sêmico e ao seguinte percurso temático-figurativo.

Compartilhando dos mesmos núcleos sêmicos e semas contextuais, a flecha e o falo parecem entrar em oposição pelo fato de a flecha ser um objeto de perfuração, cultural, que gera a morte, enquanto o falo é um objeto de penetração, natural (humano/animal), que gera a vida. Mas essa oposição é superficial, pois tanto a flecha pode gerar a vida – alimento e proteção do homem – quanto o falo pode gerar a morte – a reprodução humana como fator de destruição/caça de um maior número de animais e coleta de maior número de frutos, portanto, “morte” da natureza. Assim sendo, os termos chifre, flecha e falo assumem uma equivalência nos princípios de gerar e proteger a vida, mas também no perigo mortal que representam.Ao estabelecer essa equivalência o homem paleolítico criou uma fratura, uma metamorfose radical, na qual as figuras do mundo engendradas pela percepção se transmutam em figuras de sentido; ele transferiu os valores de um objeto a outro, num processo de fusão sincrética de dois termos opostos: natural x cultural, que leva ao mítico, ou seja, há, a princípio, uma negação parcial do processo natural, visto aqui como não consciente, não abstrato, e a afirmação de um “sobre-natural”, ou semi-simbólico: o chifre, a flecha/bastão e o falo equivalem-se e representam um todo que é da ordem do mítico – a agressividade/força/pujança sobre-natural capaz de fertilizar a Terra, gerar vida, mas também a morte.

A equivalência entre arma/falo é reforçada por outra representação maciça das cavernas paleolíticas – as chagas/vulvas sangrando sobre o dorso dos animais ou junto a falos. Um dos exemplos mais originais está na gruta de Fontanet: “num grupo de gravuras que compreendem vários bisões, vê-se nitidamente gravada uma estrutura vulvar simples sobre o dorso de um deles”. A vulva que abre o flanco do animal é um símile da chaga ou ferida feita pela flecha, do mesmo modo como o falo rompe o corpo feminino, “ferindo-o” e fazendo-o sangrar.

O intercâmbio entre caça e cópula > flecha/chaga <=> falo/vulva se estabelece por serem essas duas práticas geradoras de vida para a espécie humana e destruição/morte para a espécie animal: a caça mata o animal, enquanto a cópula (humana) põe em cena um aumento da população, gerando a necessidade de maior exploração do meio, criando um círculo de interdependência homem–natureza que terá de ser equilibrado.

A escolha de animais portadores de chifres, fortes e agressivos para consortes da Deusa Mãe decorre dessa equivalência entre o falo e o chifre. Esses animais cornudos assumem, na perspectiva paleolítica, uma dupla virilidade, sendo, portanto, mais agressivos e pujantes que os animais destituídos de cornos e mais competentes para fertilizar a grande–fêmea–terra.

É nessa ambivalência de vida/morte x gerar/destruir que se inscrevem as figurativizações do feminino: mulher, triângulo púbico, vulva – Deusa Mãe; e do masculino: animal cornudo, falo/flecha – consorte da Deusa. Signos bipolares, semi-simbólicos, míticos, que somados à percepção do ciclo da natureza, das fases da Lua, estabelecem a primeira hierogamia e ordenam o mundo a partir dos princípios macho e fêmea e de sua união – cabendo à fêmea a ligação com a Terra e ao macho, com a força animal e astral, a ligação com o Sol (fogo) e seus raios, com o relâmpago, com a chuva, que, como o sêmen, fecunda a terra.

A representação do homem como um símile animal, mesclando suas características ao do cornudo, por um lado visa atrair para o homem a potência animal, quer seja ela sexual, quer de força/agrecividade/ferocidade e, por outro, o homem “encarna” o animal, assume-se como Natureza – o homem do período agrupa os semas/signos de força de cada imagem, a virilidade está diretamente ligada à ferocidade animal, o falo e os chifres são o motivo fulcral para o estabelecimento do perfil do macho, portanto, o homem vem mascarado sob os traços do animal, como na cena gravada em uma das paredes da gruta de Tuc d’Audoubert, Ariège, na qual duas fêmeas parecem se seguir: uma de rena, outra de bovídeo, esta última com o sexo muito aparente; atrás destas, um homem de pé trajado como um animal. O homem à direita, caracterizado como animal, porta uma máscara com chifres, além da pele do animal sobre o corpo, nas mãos traz um arco musical, indício de uma magia de caça. A correlação aqui é óbvia, o sexo exposto da segunda fêmea e o homem com aspecto animal indicam a ligação entre a caça e a cópula, e vice-versa. Em todas essas representações observa-se o desejo de estimular a fecundidade/fertilidade da natureza, a sorte ou sucesso na caça, de beneficiar a sobrevivência do grupo.

Autores: Flávia Regina Marquetti & Pedro Paulo Abreu Funari

Obra: Reflexões sobre o falo e o chifre: por uma Arqueologia do Masculino no Paleolítico

sábado, 30 de maio de 2015

Os sabbats portugueses

Como se viu até agora, apesar da existência da metamorfose, dos demônios familiares, dos pactos demoníacos, verbais ou escritos, da alusão a relações sexuais com o Diabo não ocorre, na feitiçaria colonial, menção aos famosos sabbats, tão comuns na Europa. Em Lisboa, entretanto, três escravos afirmam ter estado em reunião que, de certa forma, pode ser considerada como sabática. Se tantas práticas de raízes europeias persistiram no Brasil colonial, por que não o sabbat?
As reuniões costumavam ocorrer sobretudo nos campos da Cotovia e em Val de Cavalinhos. Numa evocação talvez das bacanais e de Dioniso, o demônio lhes oferecia vinho e passas. Os assistentes, quase todos negros, mediam forças entre si, corriam pelos campos em pendencias, cantavam canções de pretos. Lembrando o sabbat europeu, esfolavam um bode e comiam sua carne; depois, traziam a pele do animal sob os chapéus, a fim de se livrarem de cutiladas.
No universo imaginário, o prazer sexual se apresentava libertador e integrador, restabelecendo a identidade entre natureza e cultura que se fazia mais intensa em terras africanas e que, como tantos outros traços culturais, o tráfico desestruturara. Hoje, estudiosos da bruxaria consideram frequentemente que as práticas orgiásticas atestam uma nostalgia religiosa, um poderoso desejo de retornar à fase arcaica da cultura – época onírica dos inicios fabulosos. Em outras palavras, numa abordagem mais antropológica, o sabbat da Época Moderna violava regras então recentes: convenções sexuais e sociais que alicerçavam a construção da ideia de lar, família e organização social. Dai a preeminência dada a práticas sexuais heterodoxas: sodomia, incesto, promiscuidade, homossexualismo. Por fim, o sabbat como projeção imaginária revelava recônditos do inconsciente coletivo, nos quais a atividade sexual sem limites se configurava simultaneamente como o grande tabu da cultura e o supremo desejo, inatingível. Sabe-se o quanto a tradição cristã demonizou a sexualidade, considerando satânica qualquer pratica que, em outros contextos culturais, tinha importante significado ritual.
O sabbat, portanto, era antes uma forma presente no universo mental dos inquisidores do que no dos colonos. As confissões dos três escravos são as únicas referencias a participações em sabbat existentes no período colonial. Nas suas relações com o sobrenatural, nas invocações do demônio, os colonos mestiços manifestavam-se, de preferencia, através da possessão ritual de influência indígena e africana. O caráter coletivo e a presença do Diabo ou de espíritos muitas vezes malignos [ou, pelo menos, ambíguos e ambivalentes] levaram os inquisidores a verem o sabat nestas manifestações. Na realidade, tratava-se de algo bem diferente, localizado na raiz da umbanda e dos candomblés atuais: os calundus e os catimbós. Se fosse de fato válida a diferenciação entre feitiçaria e bruxaria com base no caráter individual da primeira e no caráter coletivo da segunda, poder-se-ia dizer que a bruxaria colonial residiu basicamente nos calundus e catimbós.
Fonte: O Diabo e a Terra de Santa Cruz - Laura de Mello e Souza, pg. 257 – 261.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Nut: a Deusa Estrela

Quase dois mil anos após os templos no Egito terem sido fechados pelo Império Romano, um mago inglês recebe uma revelação de uma Deusa egípcia, Nut ou Nuit. A Deusa lhe solicita para que a ajude a desvendá-la, tornando-se seu profeta. O mago – Aleister Crowley – realizou isto ao publicar “O Livro da Lei”, o primeiro capítulo que contem a voz de Nuit. Quem é essa Deusa e como ela veio se comunicar com Aleister Crowley?
Deusa da Via Láctea
Nut é a Deusa egípcia da Via Láctea, na verdade, ela é a Via Láctea.
A Via Láctea é a galáxia que contém o nosso sistema solar. Nós não estamos sequer em um lugar importante nesta galáxia. Quando olhamos para a Via Láctea, nós estamos observando uma faixa da galáxia.
Como a personificação do firmamento, Nut é geralmente representada como uma mulher em forma de arco, com os pés e mãos tocando a terra. Ela está frequentemente acompanhada de seu consorte, o Deus da terra Geb, debaixo dela e o Deus do vento Shu separando Nut e Geb. Nut é representada na forma de mulher, na forma de vaca e na forma de porca.
Mito de Criação
De acordo com o mito de criação de Heliópolis, Nut é a filha de Shu e Tefnut, que são descendentes do Deus primordial, Atum.
Atum – o autogerado – surgiu no inicio do tempo e criou os primeiros Deuses ao se masturbar. Os primeiros eram Shu [deus do ar] e Tefnut [deusa da umidade]. Shu e Tefnut então se tornaram os progenitores de Nut (céu) e Geb (terra).
Em muitos panteões, Deuses do céu são masculinos e Deusas da terra são femininas. Esta inversão no panteão Egito deve estar ligada com o fato que o Nilo, não as chuvas, era a fonte regular de água no Egito. Para o início do tempo, céu e terra deveriam estar separados e isto era mostrado por Shu erguendo Nut para longe de Geb.
Nut e Geb eram os progenitores de Osíris, Isis, Seth e Néftis. E Osíris e Isis eram os progenitores de Hórus. Osíris é o deus da ordem, fertilidade e vegetação, ele representa o faraó morto e é também o Deus do submundo. Isis é uma Deusa mãe, uma maga e a personificação do trono do faraó. O filho deles, Hórus, representa o faraó vivo. Seth é o Deus do deserto, do caos, do estrangeiro e é o usurpador do trono. Néftis é uma Deusa funerária.
Nut Celestial, Mãe do Sol e do Faraó
Os Egípcios acreditavam que a terra era plana que o céu era um enorme corpo de água. O nome “Nut” pode significar “a aquosa”, embora isto não signifique que ela “chovia”, a ideia é mais como um grande lago ou mar. O movimento do sol através desse lago/mar era compreendido como uma viagem de barco.
Assim como era mãe de Osíris, Isis, Seth e Néftis, Nut era também a mãe das estrelas e do sol que ela dava a luz diariamente. O sol, Re, é representado sendo engolido por Nut ao entardecer, atravessando o corpo dela de noite e renascendo na aurora. Entendia-se que a cabeça de Nut ficava no oeste e sua vagina ficava no leste. A imagem de Nut engolindo o sol e as estrelas fez com que a identificasse com a Grande Porca que come seus filhotes.
Era com a capacidade do sol em renascer que o faraó procurava identificar-se, por isso a imagem do sol atravessando o corpo de Nut aparecia nas tumbas reais. Mais tarde ela apareceria em sarcófagos, enfatizando seu papel, pois ela literalmente abraçava o finado.
Deusa dos Mortos
Antes de estar representada em sarcófagos, Nut era uma divindade importante nos textos das pirâmides, nos quais ela aparece quase cem vezes. Estes textos, escritos nas paredes das pirâmides, instruíam ao faraó como se comportar e o aconselhava no que poderia encontrar no além-vida. Originalmente as instruções eram apenas aos faraós, Nut tinha um papel central na ressurreição.
Quando o além-vida se tornou mais popular, os textos das pirâmides se tornaram os textos dos sarcófagos. Estes textos tinham instruções similares, mas eram escritas no sarcófagos, então o que era originalmente um relacionamento exclusive entre Nut e o faraó, agora incorporava também os ricos. Eventualmente os textos dos sarcófagos tornaram-se o Livro dos Mortos, escrito em papiro.
Quando representada em sarcófagos, Nut era colocada na tampa, com o disco solar no processo de ser engolido ou renascido. Ela também era colocada nas laterais e dentro do sarcófago. Quando a tampa era colocada em cima do finado, um tipo de união era alcançada. O sarcófago simbolicamente tornava-se o corpo da Deusa de onde o finado renasceria.
Senhora do Sicômoro
Esta conexão com a madeira dos sarcófagos pode ser o que levou Nut a ser identificada com o divino sicômoro que alimenta os mortos no além. Em túmulos privados, Nut é representada como uma Deusa brotando do tronco do sicômoro, oferecendo água e alimento, ela é a Árvore da Vida.
Novo Aeon e Nut / Nuit
Como essa Deusa celestial e funerária tornou-se importante na Era Moderna? Por que Nut? Por que Egito?
Para responder essas questões nós precisamos ir do Egito Antigo para a Inglaterra da Era Moderna, quando três franco-maçons proeminentes encomendaram o Templo e Isis Urania da Ordem Hermética da Aurora Dourada, uma ordem exclusiva que incorporava, entre outras coisas, componentes egípcios.
Mas por que Egito? Era um sinal dos tempos. Após as campanhas [francesas e britânicas] no Egito, as investigações da arquitetura egípcia foram publicadas. Subsequentemente, um entusiasmo com tudo que fosse egípcio tornou-se popular no século XIX, particularmente na França, Bretanha, Espanha, Américas, Austrália e África do Sul. Foi nesse século que a Egiptologia tornou-se uma disciplina profissional [aka, “acadêmica”-NB].
Aleister Crowley foi iniciado na Aurora Dourada. Ali ele deve ter percebido a importância da magia cerimonial do Egito. Antiguidades egípcias também iriam se tornar significantes para ele. Crowley viajara em lua de mel ao Egito e ali, depois de algumas operações, Crowley e sua mulher conseguiram evocar o Deus Thot. Em outro evento, a senhora Crowley declarara que o Deus Hórus o esperava no museu do Cairo e ali a esposa de Crowley apontou uma estela que fora catalogada com o número 666, imediatamente identificada por Crowley com a “Besta do Apocalipse”. Esta estela seria mais tarde identificada como a Estela da Revelação.
Crowley traduziu a estela para o francês com a ajuda de um assistente do museu e então ele fez uma versão em inglês. Ele subsequentemente fez diversas invocações de Hórus para encontrar, explorar e descobrir o que Hórus queria. Durante estes trabalhos, Crowley recebia ditados de uma inteligência superior chamada Aiwass e estes ditados se tornaram o Livro da Lei.
Autora: Caroline Tully.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O consorte das Vênus paleolíticas

Nas representações parietais, os animais mais freqüentes são o bisão e o touro, nestes vê-se uma segmentação em dois blocos: um que toma todo o corpo do animal, privilegiando as regiões de força/virilidade, o dorso e o sacro (características sexuais primárias – órgãos reprodutores); o outro, formado pela cabeça alongada e os chifres, que, como o corpo, têm inscritos os elementos de força – aqui vistos como arma de defesa ou ataque e, portanto, de virilidade. Como ocorria nas Vênus, vê-se a repetição de uma rima plástica que recupera o percurso temático-figurativo presente no consorte da deusa: a força-viril ou a pujança criadora e destruidora. Mas, ao contrário da rima “tríplice” percebida nas Vênus, a dos consortes é dupla – apresentando uma bipolaridade explícita - positiva/vida e negativa/morte -, pois ao contrário da Deusa, que prenunciava a criação e delimitava o desconhecido, o consorte traz inscrito em sua figuratividade essa oposição entre o criar (órgãos sexuais) e o matar (chifres).

A base sêmica comum a cabeça/chifre e a falo (região do osso sacro): extremidade + superatividade compõem o seguinte suporte figural: extremidade + superatividade + cilindricidade. Pois tanto o falo quanto os chifres podem ser figurativizados por formas cilíndricas, planas ou não. 

Diversamente das Vênus, o bisão ou o touro apresenta uma circularidade nas transformações sêmicas, ou seja, o lexema chifre, após as transformações, recai sobre o lexema falo e vice-versa. Ambos apresentam o mesmo percurso, só que inversamente, confirmando a leitura antropológica do consorte da Deusa como veículo fertilizador por excelência . Dessa forma, o círculo em que este se inscreve é caracterizado por: 

Chifre > bastão/flecha > falo > bastão/flecha > chifre 

‘chifre’ > ‘flecha’ > ‘falo’

Tanto o cilindróide ‘chifre’ como o cilindróide ‘bastão’/‘flecha’ têm em comum o aspecto retilíneo, liso e sólido, ambos caracterizados como objetos de perfuração e utilizados para defesa ou ataque, portanto, arma. Estabelecendo a passagem do ‘chifre’ , de semas extremidade + superatividade + cilindricidade, à ‘flecha’ , de semas extremidade + superatividade + cilindricidade. Ocorrendo também uma alternância do natural ao cultural, visto que a flecha é um objeto feito pelo homem, portanto, da esfera do humano, e não natural como o chifre. Compartilhando dos mesmos núcleos sêmicos e semas contextuais, a flecha e o falo parecem se opor por ser a primeira um objeto de perfuração, cultural, que gera a morte, ao passo que o segundo termo é um objeto de penetração, natural (humano/animal), que gera a vida. Mas essa oposição é superficial, pois tanto a flecha pode gerar a vida – alimento e proteção do homem – quanto o falo gera a morte – a reprodução humana como fator de destruição/caça de um maior número de animais e coleta de maior número de frutos, portanto, “morte” da natureza. Assim sendo, os termos chifre, flecha e falo assumem uma equivalência nos princípios de gerar e proteger a vida e também no perigo mortal que representam. 

A equivalência entre flecha/falo é reforçada por outra representação maciça das cavernas paleolíticas – as chagas/vulvas sangrantes sobre o dorso dos animais ou junto de falos; um dos exemplos mais originais é o encontrado na gruta de Fontanet: “num grupo de gravuras que compreendem vários bisões, vê-se, nitidamente gravada, uma estrutura vulvar simples sobre o dorso de um deles”. A vulva que abre o flanco do animal é um símile da chaga ou ferida feita pela flecha, do mesmo modo como o falo rompe o corpo feminino, “ferindo-o” e fazendo-o sangrar. 

O intercâmbio entre caça e cópula > flecha/chaga > falo/vulva se estabelece, segundo P.Lèvêque, por serem essas duas práticas geradoras de vida para a espécie humana e destruição/morte para a espécie animal; a caça mata o animal, enquanto a cópula (humana) põe em cena um aumento da população, gerando a necessidade de maior exploração do meio, criando um círculo de interdependência homem-natureza, que terá de ser equilibrado, organizado por regras rígidas para que o homem não esgote sua fonte de vida, destruindo a si mesmo. 

A escolha de animais portadores de chifres, fortes e agressivos para consortes da Deusa Mãe decorre dessa equivalência entre o falo e o chifre, esses animais cornudos assumem, na perspectiva paleolítica, uma dupla virilidade, portanto, são mais pujantes que os destituídos de cornos e mais competentes para fertilizar a grande-fêmea-terra.
Autora: Flávia Regina Marquetti
Obra: A Proto-figuratividade da Deusa-Mãe

quarta-feira, 27 de maio de 2015

O muro de Zul Karnain

18:94.Disseram-lhe: Ó Zul Carnain, Gog e Magog são devastadores na terra. Queres que te paguemos um tributo, para que levantes uma barreira entre nós e eles?
18:95.Respondeu-lhes: Aquilo com que o meu Senhor me tem agraciado é preferível. Secundai-me, pois, com denodo, e levantarei uma muralha intransponível, entre vós e eles.
18:96.Trazei-me blocos de ferro, até cobrir o espaço entre as duas montanhas. Disse aos trabalhadores: Assoprai (com vossos foles), até que fiquem vermelhas como fogo. Disse mais: Trazei-me chumbo fundido, que jogarei por cima.
18:97.E assim a muralha foi feita e (Gog e Magog) não puderam escalá-la, nem perfurá-la.
[Corão Sagrado, Surata Al Cahl]

O Corão Sagrado, tal como a Torah e a Bíblia, está cheio de referências indicando as raízes pagãs desta religião de livro. Por exemplo, o resquício de três Deusas que resistiram ao reformismo religioso do Profeta:

53:19 Considerai Al-Lát e Al-Uzza.
53:20 E a outra, a terceira (deusa), Manat.
[Corão Sagrado, Surata Na Najm ]

Gog e Magog são nações que estão igualmente presentes nos textos proféticos da Torah e estão presentes no Apocalipse e em todos os casos estas nações estão vinculadas ao Fim dos Dias. Quando o Corão passou a ser escrito, foram usados trechos destes outros textos sagrados para emprestar a impressão de fidelidade. Mas e quanto a Zul Carnain?

Zul Carnain significa, literalmente, "aquele de dois chifres ou cornos", o rei com os dois cornos, ou o Senhor das Duas Épocas. A identidade de Zul Karnain é um mistério, pode ser uma referência a um rei ou pode ser mais uma referência a um Deus que existia antes do Profeta.

Alguns analistas acreditam que Zul Karnain pode ser Ciro da Pérsia ou Alexandre o Grande. A identidade de Zul Karnain pode estar associada a muitos dos Deuses dos povos que precederam a reforma religiosa empreendida pelo Profeta e neste sentido temos os Deuses dos Árabes, dos Persas, dos Fenícios, dos Acadianos e dos Sumérios. No Oriente Médio os Deuses eram representados portando chifres, enquanto na Ásia Menor o touro sempre acompanhava uma Deusa.

Karnain tem a mesma raiz de Kern e Hern, uma palavra de origem indo-europeu que não apenas denotava chifre, mas também poder, realeza e um antigo Deus Touro, de onde origina Kernunnos e Herne. Curiosamente, Shiva, ao se manifestar como o Senhor das Feras, assume a forma de Pashupati, que no vale do rio Indus é representado com uma enorme semelhança a Kernunnos. Alto relevos com cabeças de touro em diversos templos na Ásia Menor e no Oriente Médio mostram que provavelmente este Deus Touro era tão antigo e tão venerado como a Grande Mãe.

Um muro não era construído apenas para separar ou proteger uma cidade de invasores. A fundação de uma cidade, o próprio fosso escavado para o alicerce da urbe, tinha uma função sagrada e divina, como acontece no mito da fundação de Roma. Havia a necessidade de demarcar o profano e o sagrado, estabelecer um limite entre cidade e campo, entre humano e divino. O ato de escavar a terra remetia aos mitos de criação do mundo, o arado [cujo significado fálico o liga ao deus Touro] abria o solo [cujo significado telúrico o liga à Deusa Mãe] e propiciava a colheita assim como o Hiero Gamos propiciara a criação do mundo.

Este é o significado de lançar o círculo no ritual wiccano, mais do que separar, mas de demarcar o mundo além do mundo, o tempo além do tempo. Para entrar no mistério que é celebrado nos rituais wiccanos, o celebrante deve empreender a jornada para o interior do labirinto, levantar o véu da ilusão, encontrar o Deus Touro e unir-se com a Deusa Serpente.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Diferença entre tradição e costume

Yvonne Aburrow escreveu no Patheos na coluna Sermons from the Mound:
“Tradição é algo que cresce e evolui. Não está gravado na pedra, mas é mais como um discurso; se você começa com uma séria de premissas, ideias e valores, você desenvolverá ideias e práticas que são consistentes com o conjunto inicial. Tradições religiosas evoluem de acordo com as circunstâncias sociais, culturais e políticas”.
Eu tenho que discordar. A autora está confundindo tradição com costume.
Parodiando um comentário meu:
A tradição não evolui. As espécies evoluem. Por processos ditados pela natureza. Uma tradição não é um organismo. A tradição não mudou, foram os hábitos e costumes das pessoas que são membros ou sacerdotes das mesmas que mudaram.
Tradição (do latim: traditio, tradere = entregar ou "passar adiante"), é a continuidade ou permanência de uma doutrina, visão de mundo, costumes e valores de um grupo social ou escola de pensamento.
Ao nível da etnografia, a tradição revela um conjunto de costumes, comportamentos, memórias, rumores, crenças, lendas, música, práticas, doutrinas e leis que são transmitidos para pessoas de uma comunidade, sendo que os elementos passam a fazer parte da cultura.
Designam-se como costumes as regras sociais resultantes de uma prática reiterada de forma generalizada e prolongada, o que resulta numa certa convicção de obrigatoriedade, de acordo com cada sociedade e cultura específica. [Wikipédia]
Costuma-se comparar a escravidão ou outro exemplo de costume que tem em uma sociedade, antiga ou moderna, que são mantidos em nome da tradição. Costumes existem para satisfazer necessidades sociais e políticas de um determinado período, tradição é um conjunto maior que pertence à cultura de um povo, conjunto este que somente se mantém e se preserva quando há um valor universal contido nele.
Juniper Castália escreveu na Amber and Jet:
O Ofício que Gerald Gardner encontrou em suas passagens entre grupos teatrais, sociedades folclóricas e clubes de saúde não é o mesmo Ofício que praticamos atualmente, embora as raízes estão bem visíveis se a pessoa é iniciada e treinada de uma forma que mostre e preserve isso.
Os pedaços que Gardner encontrou e que seus iniciados desejam perpetuar são os pedaços que sobreviveram mais coisas que bruxas de outras fontes trouxeram a ele ou a seus iniciados e foram incluídos para o que se tornou as Tradições.
Os pedaços que ainda são praticadas e ensinadas, ainda existem e podem ser revividas. Quando uma prática não é mais ensinada, os iniciados seguintes não sabem o que fazer se devem aprender, ocorreu uma evolução e isso não é positivo ou negativo.
A evolução "criou" o gato doméstico. Eu imagino o que o tigre pensa dessa evolução. Um dia não haverá mais tigres, porque nós tiraremos todo o habitat deles. Um dia em um festival [público] alguém irá estranhar a presença de um tradicionalista. Substitua essa tradição por outra e nos tornamos dinossauros ou peças de museu porque os ecléticos se multiplicam rapidamente e poucas das Velhas Bruxas escolhem reencarnar e se juntar a nós novamente.
Portanto, eu acho que mudanças às vezes acontecem por uma falha no esforço, trabalho negligente e o desenvolvimento de hábitos que não são consistentes como o que veio anteriormente.