Como se viu até agora, apesar da existência da metamorfose,
dos demônios familiares, dos pactos demoníacos, verbais ou escritos, da alusão
a relações sexuais com o Diabo não ocorre, na feitiçaria colonial, menção aos
famosos sabbats, tão comuns na Europa. Em Lisboa, entretanto, três escravos
afirmam ter estado em reunião que, de certa forma, pode ser considerada como
sabática. Se tantas práticas de raízes europeias persistiram no Brasil
colonial, por que não o sabbat?
As reuniões costumavam ocorrer sobretudo nos campos da
Cotovia e em Val de Cavalinhos. Numa evocação talvez das bacanais e de Dioniso,
o demônio lhes oferecia vinho e passas. Os assistentes, quase todos negros,
mediam forças entre si, corriam pelos campos em pendencias, cantavam canções de
pretos. Lembrando o sabbat europeu, esfolavam um bode e comiam sua carne;
depois, traziam a pele do animal sob os chapéus, a fim de se livrarem de
cutiladas.
No universo imaginário, o prazer sexual se apresentava
libertador e integrador, restabelecendo a identidade entre natureza e cultura
que se fazia mais intensa em terras africanas e que, como tantos outros traços
culturais, o tráfico desestruturara. Hoje, estudiosos da bruxaria consideram
frequentemente que as práticas orgiásticas atestam uma nostalgia religiosa, um
poderoso desejo de retornar à fase arcaica da cultura – época onírica dos
inicios fabulosos. Em outras palavras, numa abordagem mais antropológica, o sabbat
da Época Moderna violava regras então recentes: convenções sexuais e sociais
que alicerçavam a construção da ideia de lar, família e organização social. Dai
a preeminência dada a práticas sexuais heterodoxas: sodomia, incesto,
promiscuidade, homossexualismo. Por fim, o sabbat como projeção imaginária
revelava recônditos do inconsciente coletivo, nos quais a atividade sexual sem
limites se configurava simultaneamente como o grande tabu da cultura e o
supremo desejo, inatingível. Sabe-se o quanto a tradição cristã demonizou a
sexualidade, considerando satânica qualquer pratica que, em outros contextos
culturais, tinha importante significado ritual.
O sabbat, portanto, era antes uma forma presente no universo
mental dos inquisidores do que no dos colonos. As confissões dos três escravos
são as únicas referencias a participações em sabbat existentes no período
colonial. Nas suas relações com o sobrenatural, nas invocações do demônio, os
colonos mestiços manifestavam-se, de preferencia, através da possessão ritual
de influência indígena e africana. O caráter coletivo e a presença do Diabo ou
de espíritos muitas vezes malignos [ou, pelo menos, ambíguos e ambivalentes]
levaram os inquisidores a verem o sabat nestas manifestações. Na realidade,
tratava-se de algo bem diferente, localizado na raiz da umbanda e dos candomblés
atuais: os calundus e os catimbós. Se fosse de fato válida a diferenciação
entre feitiçaria e bruxaria com base no caráter individual da primeira e no caráter
coletivo da segunda, poder-se-ia dizer que a bruxaria colonial residiu
basicamente nos calundus e catimbós.
Fonte: O Diabo e a Terra de Santa Cruz - Laura de Mello e Souza, pg. 257 – 261.
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