Quando percebia que seus exorcismos não surtiriam efeito,
frei Luiz recomendava que se procurassem negros calundeiros. Na verdade, frei
Luiz denotava aguda sensibilidade: os demônios do calundu não eram os mesmos de
que a Igreja dava conta, portanto havia que chamar especialistas que saberiam
lidar com eles. Conhecia de perto os calundus, chegara provavelmente a
frequenta-los, apesar de não dizer claramente: alega que se enfronhara do
assunto por mera curiosidade, através de perguntas feitas a negros que
costumavam assistir a eles. Sabia que eram festas muito frequentes na cidade da
Bahia e suas imediações; nelas, os negros saltavam muito, faziam vários
trejeitos com o corpo e davam gritos até caírem ao chão feito mortos.
Na Bahia, praticas rituais africanas já eram então
designadas como calundus. Nesta mesma época, no Rio de Janeiro, Domingos
Álvares praticava o que parecia ser um calundu. Orientava a cerimonia na qual
havia no chão uma vasilha d’agua com faca de ponta cravada nela e em volta
várias pessoas. Nos autos do processo que trata do incidente, define-se calundu
como o ato de pular de várias danças, realizando obras ofensivas a Deus e às
criaturas.
No Curral del Rei, um escravo de Inácio Xavier adorava ao
deus de sua terra tendo no teto de sua casa uma panela, que reverenciava; punha-lhe
guisados e trastes à mesa, pedia-lhe licença para comer e ao redor da panela fazia
festas e calundares, de que a fama é o mesmo feiticeiro.
Poucos anos depois, em Congonhas do Campo, um negro fazia
curas com feitiçarias, ajuntamento de begros, danças e batuques em sua casa;
chegara mesmo a ser preso por estas culpas, que passara a carregar no nome:
todos o conheciam por Domingos Calandureiro. Antonia Luiza, associada a dois
outros companheiros, convocava negras e pardas para adorar danças e utilizava
defuntos para domarem as vontades dos senhores.
Violante Coutinho, moradora no arraial de São Gonçalo,
dançava e fazia calundares e em sua casa os negros tangiam atabaques. Em Sabará,
através do abominável divertimento da dança de calundus, uma preta angolana
atraía suspeitas de que invocava demônios.
Em 1728 Nuno Marques deixou registrada uma das primeiras
descrições literárias de um calundu. Hospedado por um fazendeiro, não pode
dormir direito devido ao estrondo dos tabaques, pandeiros, canzás, botijas e
castanhetas dos negros, fazendo tão horrendo alaridos que pareceu a confusão do
inferno. São uns folguedos, ou adivinhações que dizem estes pretos que costumam
fazer nas suas terras e quando se acham juntos, também usam deles cá, para
saberem várias coisas; como as doenças de que procedem; e para adivinharem algumas
coisas perdida; e também para terem ventura em suas caçadas e lavouras; e para
muitas outras coisas. Os negros da colônia viam-se às voltas com o esforço de
preservação dos valores herdados dos antepassados, procurando inclusive reconstruí-los,
seja no segredo dos calundus, seja no isolamento armado dos quilombos; os
brancos chegavam até a designar os calundus como mocambos ou quilombos. O paternalismo
tolerante e compreensivo do senhor e a intransigência dogmática e ortodoxa constituíam,
portanto, duas faces possíveis da ideologia da camada senhorial.
Uma das descrições do ritual é bastante semelhante ao que
conhecemos hoje do candomblé: fazia calundares posta em um altarzinho com seu
dossel e um alfange na mão, com uma fita larga amarrada na cabeça lançadas as
pontas para trás, vestida a modo de anjo e cantando duas negras e um preto
tocando atabaque e tocando e cantando estão por um espaço de uma até duas
horas, ficava ela fora de juízo, falando cousas que ninguém entendia, deitavam
pessoas que curava no chão, passava por cima delas e nestas ocasiões é que
dizia que tinha ventos de adivinhar.
Os mitos simbolizados pelos rituais como calundu podem
ter-se perido e se alterado bastante no tempo. Mas o rito, fixado no período
colonial, manteve-se de maneira impressionante igual ao que é hoje. Os atores
do rito nem sempre conhecem o mito que subjaz ao rito, este não tem como mudar
muito, dadas as limitações de ordem muscular, que lhe permitem variações
limitadas pelo corpo. O mito, ao contrário, fica aberto à ação quase infinita
da imaginação criadora. Conservados quase que como segredo, em nichos, os
traços culturais africanos preservados serviriam para que se intentasse
reconstruir a sociedade africana, num movimento que se realizava de cima para
baixo – da superestrutura para a infraestrutura.
Traços específicos a cada tribo acabaram por constituir uma
só cultura: produziu-se dissociação entre etnia e cultura. Assim heranças e
aquisições diversas muitas vezes se mesclaram numa mesma manifestação cultural,
como o calundu. A interessante dança de tunda ou acotunda ilustra este
sincretismo religioso afro-brasileiro e indica nuances existentes no seio dos
próprios ritos africanos.
Conforme os depoimentos, os negros cantavam na língua courá
e alguns deles proferiam palavras da fé católica. Próximo ao altar ficavam
várias cabaças, frigideiras de barro cheias d’agua, uma panela pintada de sangue,
espinhos de peixe, búzios. Courá seria o meso que courano, curá, curano e mais
algumas formas encontradas sobretudo nas Minas setecentistas.
Há certa unidade em todas estas praticas: a possessão ritual
– os ventos de adivinhar – a evocação de espíritos [em geral de defuntos], as
oferendas feitas a eles, os trajes de inspiração africana, a adivinhação, às
vezes curandeirismo, a musica cantada e marcada pelos instrumentos de
percussão, o caráter coletivo. Mas também há heterogeneidade, as variações
acabando por desembocar no calundu.
Fonte: O Diabo e a Terra de Santa Cruz – Laura de Mello e
Souza, pg. 263 – 269.
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