Os cultos à Grande Deusa eram baseados na crença de que é ela, em uma ou outra de suas manifestações, quem cria a vida; mas ela também era associada à morte. Era celebrada por sua virgindade e suas qualidades maternais. Descrevia-se a deusa Ishtar, por exemplo, como sexualmente livre, a protetora das prostitutas, padroeira das tabernas e, simultaneamente, a noiva virginal dos deuses (como nos mitos de Dumuzi). A sexualidade feminina era sagrada e honrada em seus rituais. Povos antigos não viam contradição nesses atributos contrastantes. A dualidade da Deusa representava a dualidade observável na natureza - dia e noite, nascimento e morte, luz e escuridão. Assim, nas primeiras fases da adoração religiosa, a força feminina era reconhecida como aterradora, poderosa e transcendente.
A supremacia da Deusa também é expressa nos primeiros mitos de que celebram a criação feminina que dá vida. Na mitologia egípcia, o oceano primordial, a deusa Nun, dá à luz o deus do sol Atum, que então cria o universo. A deusa suméria Nammu cria por partenogênese o deus dos An e a deusa da terra Ki. No mito babilónico, a deusa Tiamat, o mar primo e seu companheiro dão à luz deuses e deusas. Na mitologia grega, a deusa da terra Gaia, em um nascimento virginal, cria o céu, Urano. A criação dos humanos também é atribuída a ela. Na versão assíria de um mito sumério anterior, a sábia Mami (também conhecida como Nintu), a mãe-ventre, aquela que ca a humanidade", molda a humanidade com argila, mas é o deus masculino "que abriu o umbigo" das imagens, completando assim o processo de lhes da vida. Em outra versão da mesma história, Mami, por insistência de Ea, concluiu ela mesma o processo criativo: "A Mãe-Ventre, criadora do destino/em pares ela os completou. [...] Mami forma a forma das pessoas".
Essas histórias da criação expressam conceitos oriundos de modos anteriores de adoração à fertilidade feminina. A força primordial na natureza é o mar, a água, o mistério do ovo que se abre para criar vida nova. Deusa das serpentes, deusa do mar, deusa da virgindade e deusa moldando humanos de argila-s é a mulher que tem a resposta para o mistério.
Por outro lado, devemos observar aqui que, embora o ato criativo seja realizado pela Deusa, o deus masculino não raro é envolvido de maneira decisiva no início do processo de criação. O reconhecimento da cooperação necessária do princípio feminino e masculino no processo de criação parece estabelecer com firmeza na mitologia suméria e acádia.
Com a domesticação de animais e o desenvolvimento da pecuária, a função do homem no processo de procriação tornou-se mais aparente e foi mais compreendida." Em um estágio posterior de desenvolvimento, encontramos a Deusa-Mãe associada a um parceiro masculino, um filho ou irmão, que a ajuda nos ritos de fertilidade acasalando com ela. No mito e no ritual, o deus masculino é jovem, e pode ser necessário que ele morra para que o renascimento aconteça. Ainda é a Grande Deusa que cria a vida e controla a morte, mas agora há um reconhecimento mais pronunciado do papel do homem na procriação O Casamento Sagrado (hieros gamos) e ritos anuais semelhantes, que era muito celebrados em diversas sociedades, no quarto e no terceiro milênios AC, expressavam essas crenças. O ciclo anual das estações não podia começar antes de a Deusa acasalar com o jovem deus, e ele morrer e renascer. A sexualidade da Deusa é sagrada e concede as bênçãos de fertilidade à terra e às pessoas que a agradam cumprindo rituais. O ritual do Casamento Sagrado assumia várias formas e era bastante praticado na Mesopotâmia, na Síria, em Canaã e no Egeu Um de seus muitos significados complexos é o de que o ritual transformava a abrangente fertilidade da Deusa-Mãe na fertilidade mais domesticada da "deusa da semente cultivada".
Nesses mitos do terceiro e do segundo milênios AC, existem, também, evidências de que um novo conceito de criação passou a fazer parte do pensamento religioso: Nada existe a não ser que tenha um nome. O nome significa existência. Os deuses recebem sua existência por meio da nomeação, assim como os humanos. O "Épico da Criação" (Enuma Elish) babilónico começa da seguinte maneira:
O solo firme abaixo não foi chamado pelo nome, Nada além do Apsu primordial, o procriador, (e) Mummu-Tiamat, ela que criou todos,
Suas águas misturando-se como um único corpo. [...]
Quando nenhum dos deuses tiver sido criado,
Nem chamado por nenhum nome, o destino deles indeterminado-
Então é porque os deuses foram formados dentro deles."
Aqui o princípio da fertilidade, de início situado na Deusa-Mãe, exige a "mistura" com o "procriador" masculino antes que o ciclo da vida possa começar, mas, antes que possa ocorrer a criação, deve existir um conceito, algo "dentro deles", que depois será "nomeado" ou "chamado" à vida.
Fonte: A criação do patriarcado, Gerda Lerner, pág 191 - 193.
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