Ao qualificar o Brasil setecentista como úbere terreno para
diamantes e impiedades, o romancista José Saramago mostrou aguda percepção
histórica. Principal porção do império colonial português no século XVIII, o Brasil
alimentou simultaneamente os desvarios megalômanos de D João V e as fogueiras
inquisitoriais. Apesar disso, o estigma da colônia como produtora e
perpetuadora de impiedades foi suficientemente forte para, dois séculos depois,
aflorar na frase do escritor português.
Diamantes e impiedades caminhavam juntos. Ambos brotavam,
abundantes, das terras coloniais, engastando-se um no outro como dois polos
opostos e complementares. Cristãos novos, sodomitas, hereges calvinistas, feiticeiros,
magos, adivinhos só poderiam ser compreendidos no contexto em que atuavam: o
universo colonial com toda sua complexidade, o dia-a-dia dos colonos com suas
aspirações variadas, ora nobres e legitimas, ora medíocres, mesquinhas.
Qualquer estudo sobre o tema [feitiçaria e bruxaria] se
debate com múltiplos contextos e heranças culturais, chegando-se por vezes a
contornar a questão através do resgate da sempre cômoda matriz indo-europeia. Júlio
Caro Baroja distingue dois tipos de magia maléfica: os encantos e sortilégios,
que supõem práticas individuais e a bruxaria propriamente dita, de características
coletivas e associadas a verdadeiro culto. Norman Cohn adota a mesma posição: a
bruxaria é coletiva, a magia é individual. Entretanto, preocupa-se também em
distinguir feitiçaria [técnica que induz ao mal] de bruxaria [onde a pessoa é
fonte do mal]. Gustav Henningsen diferencia minuciosamente bruxomania e
bruxaria. A primeira é coletiva, possui superestrutura mitológica abundante e sistemática,
define-se pelo pacto, não possui nenhuma função reguladora e conservadora da
sociedade e, portanto, não pode ser estudada pela antropologia. A segunda é
individual, tem superestrutura mitológica deficiente e assistemática, não se
define pelo pacto, possui função reguladora e conservadora da sociedade,
beneficiando-se das abordagens antropológicas.
Mais do que destrinchar as filiações das praticas magicas
coloniais, interessa-me detectar o modo pelo qual se combinaram e em função de
que contexto.
Nos primeiros momentos, ainda no século XVI, feitiçaria e
praticas magicas mostram sua filiação cultural de forma quase transparente. Nelas,
resgatam-se com facilidade os traços europeus, indígenas, mas raramente os
africanos. Conforme avança o período, os traços se esfumaçam, se interpenetram
e começa a surgir um só corpo de crenças sincréticas. É quando surgem formas
especificamente coloniais, diversas de todas as outras.
Fonte: O Diabo e a Terra de Santa Cruz – Laura de Mello e
Souza, pg. 153 – 156.
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