As identidades nacionais não são como coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação [Hall].
Não temos conhecimento de um povo que não tenha nomes, idiomas ou culturas que em alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles, não seja estabelecida.... O autoconhecimento – invariavelmente uma construção, não importa o quanto possa parecer uma descoberta – nunca está totalmente dissociado da necessidade de ser conhecido, de modos específicos, pelos outros [Castells].
Castells caracteriza a identidade como o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais interrelacionados, o(s) qual(ais) prevalece(em) sobre outras fontes de significado. Assim, entende-se, que é operada uma espécie de seleção por parte da sociedade dos atributos culturais que devem definir os seus traços distintivos e, a partir dos sentidos conferidos a eles pelos indivíduos, passa-se a edificar as identidades.
A identidade é, então, construída a partir de um repertório cultural que se apresenta na sociedade, que pode se expressar como conhecimento científico, práticas artísticas ou religiosas. Mas, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo e espaço. Os grupos sociais remodelam essas práticas e conhecimentos de acordo com o propósito dos seus projetos de formação, transformação ou manutenção das identidades. Esse aspecto fará com que os indivíduos enquadrem a produção cultural individual e coletiva aos interesses dos projetos comuns da sociedade.
Estabelece-se aí quem está apto ou se interessa a pertencer a determinados grupos de acordo com as suas identidades.
Woodward afirma que “com freqüência, a identidade envolve reivindicações essencialistas sobre quem pertence e quem não pertence a um determinado grupo identitário, nas quais a identidade é vista como fixa e imutável”. No entanto, ver a identidade como fixa e imutável corresponde apenas a uma estratégia para tentar formar nas consciências a sensação de homogeneidade que, na verdade, não corresponde mais ao conceito pós-moderno de identidade, devido aos processos de hibridização cultural.
O sujeito pós-moderno, segundo Hall, é conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
A identidade, de acordo com a concepção pós-moderna e enquanto resultado das atribuições culturais, “é vista como uma manifestação muito mais flexível, uma vez que tem sido mais difícil a tarefa de se situar num ambiente mediado e formado por uma constante hibridização cultural” [Canclini]. Os sujeitos passam a assumir diversas identidades que não mais existem como algo unificado, mas que respondem a momentos específicos e a contextos diversificados. Daí a necessidade de se formular estratégias que permitam que, mesmo com a hibridização das culturas e formação múltipla das identidades, sejam construídos aspectos que reúnam os indivíduos em categorias de acordo com algumas características comuns ao grupo e que permitam que esses se sintam como parte de um todo.
Deve-se encontrar, portanto, formas de se costurar as diferenças decorrentes das várias identificações, a fim de constituir uma certa homogeneidade capaz de classificar os indivíduos segundo particularidades que os definam.
Essas classificações acerca das caracterizações do povo são fundamentais para gerar um agrupamento em torno dos mesmos aspectos culturais que promoverão as impressões de homogeneidade. A unicidade mostra-se aí como uma marca que reúne os requisitos que cada indivíduo deve conter para que nasça a sensação de pertencimento a uma cultura.
Perceber a identidade como processo que emerge de atributos culturais é crucial, portanto, para a compreensão do papel que as representações têm na edificação dos sentidos que compõem as identidades. Assim, é possível dizer que só a partir da representação será possível conceituar a identidade nacional explicando a sua importância nas sociedades contemporâneas, nos domínios cultural e social. Nesse contexto, a cultura, enquanto expressão da produção de bens simbólicos que definem as identidades surge como uma síntese de representações capazes de produzir as identificações dos sujeitos com o meio no qual está inserido.
Outro aspecto relevante que se refere aos produtos culturais que visam a reafirmação das identidades é que estes funcionam, ainda, a partir de algumas estratégias a fim de situar as origens de um povo através de narrativas que agem como mitos fundadores ou lendas de tradição oral, “construindo os sentidos que compõem as identidades” [Bhabha].
A crença em um passado imaginado comum a todos orientam os indivíduos na história de formação da sua coletividade e preenchem de sentidos suas identidades, trazendo assim a idéia de comunidades imaginadas.
É imaginada porque os membros até das menores nações nunca chegam a se conhecer mutuamente. [...] É imaginada como soberana porque o conceito nasceu numa era em que o Iluminismo e a Revolução destruíam a legitimidade do reino dinástico hierárquico, ordenado pelo poder divino. [É] imaginada como comunidade porque a nação é sempre concebida como um profundo companheirismo horizontal [Anderson].
A invenção histórica da nação, enquanto Estado político, deslocou o termo povo, utilizado para se referir às pessoas que nasceram num mesmo lugar. Para Homi K. Bhabha, o conceito de povo consiste em “objetos” históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no pré-estabelecido ou na origem histórica constituída no passado; o povo consiste também em “sujeitos” de um processo de significação que deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povo-nação para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional é redimida e reiterada como um processo reprodutivo.
Todo o esforço empregado em reunir a nação como uma uniformidade, com um passado que nunca cessa, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal, costurando tecidos históricos tradicionais para expressar a acumulação do discurso progressista de um todo resulta no historicismo, no conceito de pedagógico, que, por sua vez, “funda sua autoridade narrativa em uma tradição do povo [...] encapsulado numa sucessão de momentos históricos que representa uma eternidade produzida por autogeração”. Esse conceito envolve o anonimato do coletivo em função do todo, tomando o geral como representativo de um território. As fronteiras espaciais funcionam enquanto agentes legitimadores da tradição de um tempo interior.
O tempo de escrita da nação, no discurso pedagógico, é linear, ou seja, é um tempo homogêneo que não permite a transparência das fissuras do presente, das vozes minoritárias, transformando a comunidade numa representação horizontal do espaço. Na temporalidade pedagógica, o discurso unificador das vozes dominantes, torna-se uma escrita narcísica na qual o todo da nação é representado metonimicamente pela parte que escreve a História oficial.
Nessa escrita narcísica, o processo de construção da nação é derivado apenas do trabalho do europeu, branco, cujo processo ‘civilizatório’ é responsável pelo desenvolvimento da nação. Por isso, o tempo pedagógico é marcado pela idéia de coesão social no presente - muitos como um. Tal temporalidade é constituída por idéias fundamentalmente baseadas num passado historicamente concebido, com uma função nitidamente ideológica.
Fonte: O mito fundador
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