Os Deuses Gregos se distinguem de um modo cabal dos Deuses do Oriente próximo cujo ser se nos proclama de modo imediato, de modo que nos acostumamos a conceber a partir deles a idéia da divindade em si. Assim é que há muito se constatou que a auto-afirmação da divindade, para nós tão familiar, seria inimaginável na boca de um Deus Grego.
Dogma algum proclama, em nome desses Deuses, como é que eles devem ser considerados, como eles se posicionam em relação ao homem e o que estes lhes deve. Nenhuma escritura sagrada assinala o que se deve saber e crer. Cada um é livre de pensar a seu modo sobre os Deuses, desde que não deixe de prestar-lhes homenagem segundo os costumes antigos.
Assim sendo esses Deuses não tem qualquer necessidade de uma revelação autorizada como a que serve de apoio a outras religiões. Manifestam-se em todo o ser e acontecer e com tal evidência que, nos séculos de apogeu, à exceção de raros casos, de fato inexistia a incredulidade.
De onde lhes vinha aos Gregos este saber dos Deuses?
Eles também receberam uma mensagem que pode chamar-se Revelação no sentido mais pleno da palavra. Ela não lhes proclamou a majestosa grandeza de um Criador do mundo, de um Legislador, de um Salvador; falou-lhes do que existe e assim como existe, dá testemunho da presença do divino e de sua bem-aventurada majestade.
Essa iluminação lhes vinha de uma divindade particular a Musa. A musa é a Deusa da fala verídica, no sentido mais elevado.
Em nenhuma outra parte do mundo se atribuiu jamais importância tão essencial ao canto e a linguagem elevada como no mito Grego. A essência do mundo se consuma no cantar e no dizer.
Os Gregos receberam a boa nova do divino, assim a receberam não como imperativo categórico, nem como salvação terrena ou celestial, mas como o eterno e beatífico que consola e felicita não por promessas, antes simplesmente por ser, porque é. O espírito do canto lhes proclama a natureza dos Deuses porque, no fundo, o canto é sua voz.
Por isso o homem pode, à sua modesta maneira, participar do divino, tomando parte no canto. O que o cantar eleva a seu reino sagrado ao eterno pertence: ao intemporal, ao que o divino se relaciona.
Ao homem moderno parece-lhe incompreensível como se pode ser fiel a Deuses dessa espécie. Pois ele está acostumado a enaltecer o divino na medida em que este lhe prometa auxílio em suas necessidades terrenas. Os Deuses estão onde quer que se passe, faça ou sofra algo decisivo. Esta consciência da presença divina em todo ser e acontecer, esta sensibilidade que não pode falar de nenhum evento significativo sem cogitar da divindade nela atuante, não tem igual em parte alguma do mundo.
A divindade não só é a motivadora de tudo quanto é importante, mas na verdade é quem o faz, vai além das noções religiosas que nos são familiares. Também em situações de outra natureza o fazer humano é propriamente um ato divino. Os Deuses não se manifestam apenas nos fenômenos da natureza e nos acontecimentos fatais; manifestam-se também no que move o homem interiormente, determinando sua atitude e suas ações.
Em um mundo pleno do divino, o homem Grego não olha para seu íntimo em busca da origem de seus impulsos e de suas responsabilidades; volta os olhos para a amplitude do Ser e onde nós falamos de disposição interior, encontra as realidades vivas dos Deuses.
As potências da vida que nós conhecemos como estados de ânimo, inclinações, exaltações, são formas ontológicas da natureza divina que, como tais, não dizem respeito apenas ao homem; operam na terra inteira e em todo o cosmo com seu ser infinito e eterno. O que move o homem no seu íntimo é o ser tomado por divinas potências que, como tais, por toda parte atuam.
Também as atitudes e disposições morais são realidades, isto é, não são coisas do sentir e do querer subjetivo e sim da compreensão objetiva e do saber objetivo. Para os Gregos tanto quanto os ordenamentos da natureza elementar que nós chamamos de leis, esses princípios são realidades e verdades que tem sua consistência na interconexão das coisas. São salutares e proveitosos em si, por si mesmos, não por um mandamento superior. Em conformidade com o sentido originário da noção, aquilo que chamamos de bom é sempre o útil, não porque corresponda a nossos desejos pessoais e sim por corresponder à ordem natural das coisas. A fórmula não deveria ser "bom é o que é útil"; mas sim é da natureza do bem que ele não pode ser senão útil.
Por certo o homem é responsável e tem de expiar, assumir todas as consequências. Mas o tormento da consciência e a auto-condenação são-lhe poupados. Por mais que o homem perceba ter cometido um erro, isso não o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas mãos da divindade. Em vez de conduzi-lo pelo perigoso caminho da auto-acusação e da auto-condenação, o reconhecimento do erro é enobrecido pela consciência do divino e isso lhe preserva a grandeza da alma com que realizar viris proezas em sua aliança com os Deuses.
O divino em cujo seio o homem sabia-se amparado, neste caso, não é absolutamente outro em que se refugiam aqueles para os quais a realidade do mundo se acha dessacralizada. Pelo contrário, é o que nos rodeia, o meio em que vivemos e respiramos, que nos comove e ganha forma na claridade de nossos sentidos, de nosso espírito. Todas as coisas e fenômenos falam dele, na hora magna em que falam de si mesmos. Não falam de um Criador nem de um Senhor e sim do Ser eterno que tomando forma neles se revela. Porém o divino é muito mais que todas as coisas, fenômenos e instantes em que sua presença se declara. É a forma de todas as formas, a Essência vivente, disposta a falar imediatamente ao homem, indo-lhe ao encontro, se ele for homem de verdade. De todos os seres vivos, só o homem nasceu com a faculdade de perceber e verificar Formas essenciais. Portanto, sua própria constituição o liga com as formas do Ser e sua hierarquia até, no ápice, a Forma do Divino.
O divino só pode falar ao divino. Portanto, se o homem o pode perceber, ele já está no homem. Para os Gregos de todos os tempos, a beleza perfeita era o signo do divino. Era próprio do Grego identificar o belo com o verdadeiro e com o bem; não com o bem correspondente à vontade, mas com o objetivamente bom que se manifesta nos ordenamentos eternos da natureza e da existência.
Se contemplarmos a natureza, por toda a parte encontramos o alegre esplendor da forma. Também a vida humana nos ensina a reconhecer o significado especial do belo. Nós mesmos costumamos falar de belos pensamentos e belas ações, com isso nada mais querendo dizer que se os chamássemos simplesmente de bons. A verdadeira nobreza de uma ação, assim como a de um pensamento, se revela na beleza do gesto, que é inimitável e facilmente se distingue do encanto exterior dos movimentos agradáveis. Por toda a parte, a genuína bondade, qual divina concentração da alma, nos declara sua verdade pela feição da beleza.
Nem desejo, nem vontade, mas um vívido conhecimento do ser das coisas era o que o Grego buscava e encontrava no seu fundamento o formoso, o belo, o eternamente grato. Para o Grego não se tratava de um credo e sim da mais profunda de todas as experiências, recebida com os sentidos abertos e o espírito desperto.
Autor: Walter Otto
Fonte: Teofania, pág 45-100 - Editora Odysseus
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