A bem-aventurança
A respeito dessa eterna bem-aventurança dos Deuses, na qual se manifesta a silenciosa placidez de toda a profundeza do Ser, é preciso dizer mais, a fim de possibilitar um melhor entendimento da diferença essencial entre o afortunado e belo no divino e o belo e afortunado no plano da terra e entender a afinidade que pode existir entre um e outro.
Nada há de terreno que se possa declarar feliz em si. A bem-aventurança não pertence a nenhum ser ou criatura individual.
Só o divino pode ser feliz em si mesmo; pois embora se mostre como pessoa e com forma humana, jamais ele é um ente singular; antes é sempre o ser do mundo em sua totalidade.
Desta forma, em vez de todas as promessas de salvação tão caras às poutras religiões, o divino oferece ao homem a revelação de seu ser e, com isso, em vez de um penhor para o futuro, em seu presente lhe franqueia os magníficos momentos da eternidade.
Pudor como recato sagrado
O amor do homem à divindade é amor da essência, tocado de essencialidade originária. Face ao patentear-se da profundeza de todo o Ser, arrebatamento e fascinação do espírito que daí recebe sua própria existência renovada. Pois só na forma do Deus e só nela o ser do universo se acha íntegro.
Há na língua grega uma palavra cujo sentido é inesgotável porque é o nome de uma Deusa e significa todo o mundo divino: Aidós.
Costuma-se traduzi-la por pudor. Mas não é pudor por algo de que deveríamos sentir vergonha e sim o sagrado recato em face do intocável, a delicadeza do coração e do espírito, a consideração, o respeito e a serenidade e pureza virginal.
Tudo isso vem a ser o fascínio de uma forma divina que é tanto o venerável como reverente, tanto o puro como o sagrado recato face ao puro.
Mas ela não se manifesta apenas no plano da vida humana, também está presente na Natureza. O sagrado silêncio e a pureza da natureza não tocada pela mão do homem dão testemunho dela. Deste modo, Aidós é todo um mundo, compreendendo no divino espírito tudo quanto vive, todo o elementar, o sagrado e o recato em face do sagrado, tudo em um; é o ser inteiro e perfeito em si mesmo.
Kháris, a alegria
O esplendor do belo e fascinante concedem-no as Cárites (Khárites: como as Musas e as Horas, a Kháris ora se apresenta no singular, ora no plural) às obras humanas. Tanto como as obras de arte humanas, são abençoadas pelas Cárites as horas de suave bem estar.
A Kháris também é dispensadora do júbilo no convívio dos homens enre si. Isso se aplica a toda espécie de congratulação ou cumprimento, em particular ao amor entre homem e mulher. Também na natureza ela se manifesta, no jubiloso crescer e florescer, no grato encanto da primavera.
O mundo das Cárites só revela todo seu ser se compreendermos que a “graça” como Forma Divina, não significa apenas o gracioso e encantador, mas também a alegria de sentir-se feliz e obsequiado. É o reino maravilhoso do presentear e ser agraciado a um só tempo, em que não têm lugar direito e justiça, reclamação e satisfação: o reino da graça plena.
O essencial e o verdadeiro
Divinas figuras como Aidós e as Cárites são chamadas de "personificações" porque seus nomes se acham no idioma como conceitos abstratos. Todavia, é possível demonstrar que o nome do Deus foi o que precedeu e o conceito abstrato derivou dele.
Na verdade, não há personificação e sim despersonificação e tampouco faz sentido indagar como o homem teria chegado a Deus, quando antes só caberia indagar como é que dele pôde afastar-se.
Este saber de uma pletora de Deuses que não apenas vive no universo, antes é o universo, nada tem a ver com o panteísmo. Seria o caso de dizer: tudo que é essencial e verdadeiro manifesta uma forma divina. Porém mais certo seria o contrário: são as formas divinas que tornam manifesto tudo quanto há de essencial e verdadeiro.
Multiplicidade e unidade
Os Gregos não seriam o povo de espírito mais vivo se a prodigiosa multiplicidade do Ser não lhes houvesse falado de uma pluralidade de formas diversas do Divino, todas elas infinitas e eternas, mas só em conjunto capazes de compor a divina totalidade. Eles julgavam mais piedoso venerar o divino em toda sua magnificência, onde e como quer que este se manifestasse, a fazer o possível para reduzir a um só ser todas essas múltiplas manifestações. Pois bem longe deles estava a idéia servil de um Deus ciumento que a seu lado nada tolera.
Esta unidade do reino divino é de natureza bem diversa da autocracia monoteísta que só admite à sua volta servos e mensageiros.
Amor em vez de vontade e obediência
O Deus Grego não é um amo, não é uma vontade imperiosa. Como divindade, exige reconhecimento e respeito - mas não sectarismo, nem obediência incondicional; menos ainda fé cega. Os comprometimentos éticos não constituem ordens emanadas de sua vontade, a que o homem é forçado a submeter-se; são realidades que encerram em si mesmas sua verdade e seu valor, que por si mesmas impõem respeito e que despertam amor.
Mostra-se neste ponto uma das diferenças fundamentais entre a religião da Grécia Antiga e a Cristã, em que a vontade e a obediência têm seu papel, coisa completamente alheia ao espírito grego. As normas de conduta e de ação para ele constituem perfeições que pertencem à economia da existência e do mundo e, portanto, não fazem apelo à vontade e obediência, antes ao sentimento e à compreensão.
A piedade grega era livre de amar e honrar as Formas eternas como divinas, como o que são, pois não tinha de viver com medo de um monarca ciumento que se sente ofendido se não se dá graças por tudo somente à sua pessoa.
O nobre ser que com sua prória divindade se apossa da alma humana é também o caráter que distingue as grandes Formas divinas.
Tendo contemplado as imagens dessas divindades, que cada um se pergunte se a forma humana, dita criada por Deus, jamais se viu mais nobre, mais pura, mais esplêndida e mais divina.
A essência da experiência grega do divino
Assim como essas divindades revelam ao homem a verdadeira nobreza, a grandeza genuína, não por meio de preceitos e ensinamentos, mas por seu simples ser, assim também, por este ser, franqueiam-lhe as profundezas e lonjuras do mundo.
Em verdade, as realidades do mundo outra coisa não são senão Deuses, presenças e manifestações divinas. O que cada um dos Deuses patenteia é sempre o mundo em sua totalidade. Pois em cada uma das revelações particulares que eles constituem encerram-se todas as coisas.
Autor: Walter Otto.
Fonte: Teofania, pág 101-123 - Editora Odysseus
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