A compreensão da tradição de cada religião deve ser interpretada como condição fundamental para a paz e o bem-estar da humanidade como um todo.
Quando ainda era uma criança, no Tibete, achava que a minha religião budista seria a melhor - e as outras crenças de alguma maneira eram inferiores. Hoje, percebo como era ingênuo e o quão perigosos podem ser a intolerância e o radicalismo religioso.
Embora a intolerância seja tão antiga quanto a própria religião, ainda vemos sinais muitos fortes da sua virulência. Na Europa têm ocorrido intensos debates sobre aqueles recém-chegados usando véus ou querendo erigir minaretes, e episódios de violência contra imigrantes muçulmanos.
Ateus radicais condenam todos, de um modo geral, que têm uma crença religiosa. No Oriente Médio, as chamas da guerra são insufladas pelo ódio dos que aderem a uma fé diferente.
Tais tensões provavelmente aumentarão na medida em que o mundo fica mais interconectado e as culturas, os povos e as religiões se entrelaçam cada vez mais. A pressão que isso cria é mais do que um teste para a nossa tolerância - ela exige de nós a promoção da coexistência pacífica e a compreensão além das fronteiras.
Podemos admitir que cada religião tem um sentido de exclusividade como parte da sua identidade comum. Mesmo assim, acredito que existe potencial para a compreensão mútua. Ao mesmo tempo que preservamos a fé na nossa própria tradição, podemos respeitar, admirar e apreciar outras tradições.
O que me abriu os olhos inicialmente foi um encontro com o monge trapista Thomas Merton, na Índia, pouco antes da sua morte prematura, em 1968. Merton falou-me que conseguia perfeitamente manter-se fiel ao cristianismo, mas conhecer em profundidade outras religiões, como o budismo. O mesmo é verdade para mim, como um ardente budista que sou, mas aprendendo os ensinamentos de outras grandes religiões do mundo.
Um ponto importante nas minhas conversas com Merton foi como a compaixão é a mensagem tanto do cristianismo como do budismo. Nas minhas leituras do Novo Testamento, senti-me inspirado pelos atos de compaixão de Jesus. Seu milagre dos pães e dos peixes, suas curas, seus ensinamentos foram todos motivados pelo desejo de abrandar o sofrimento.
Acredito firmemente no poder do contato pessoal para acabar com as diferenças, de modo que há muito tempo sinto-me atraído a dialogar com pessoas de outras perspectivas religiosas. O foco na compaixão que Merton e eu observamos nas nossas duas religiões fez-me ver isso como uma linha unificadora forte entre todas as grandes crenças. E hoje necessitamos destacar o que nos une.
Veja o judaísmo, por exemplo. Visitei pela primeira vez uma sinagoga em Cochin, Índia, em 1965, e durante anos reuni-me com rabinos.
Lembro-me vividamente de um rabino na Holanda que me falou sobre o Holocausto com tal intensidade que, no final, estávamos os dois em lágrimas. E aprendi como o Talmude e a Bíblia repetem o mesmo tema da compaixão, como na passagem no Levítico que exorta: "Ame o teu vizinho como a ti mesmo."
Em muitos encontros com estudiosos hindus, na Índia, acabei compreendendo a importância central da compaixão desinteressada no hinduísmo também - como está expressa, por exemplo, no Bhagavad Gita, que exalta aqueles que "se alegram com o bem-estar de todos os seres".
Comoveu-me a maneira como esse valor se manifestou na vida de grandes seres humanos, como o Mahatma Gandhi, ou Baba Amte, menos conhecido, que fundou uma colônia de leprosos não muito longe de um assentamento tibetano no Estado indiano de Maharashtra. Ali ele alimentou e abrigou leprosos que eram rechaçados. Quando recebi o Premio Nobel da Paz, doei o valor da premiação a esta colônia.
A compaixão também é importante no Islã - e reconhecer isso foi crucial nos anos que se seguiram aos atentados do 11 de Setembro, especialmente para responder àqueles que pintam o islamismo como uma crença militante. No primeiro aniversário daqueles atentados, proferi uma palestra na Catedral Nacional em Washington, e supliquei para não aceitarmos cegamente o que é afirmado em algumas mídias de notícias e não permitirmos que atos violentos de alguns indivíduos definam uma religião inteira.
Gostaria de falar sobre o Islã que eu conheço. O Tibete teve uma comunidade islâmica por cerca de 400 anos, embora meus contatos mais enriquecedores com o Islã tenham sido na Índia, que tem a segunda maior população muçulmana do mundo. Um imã em Ladakh disse-me certa vez que o verdadeiro muçulmano deve amar e respeitar todas as criaturas de Alá.
E no meu entendimento, o Islã consagra a compaixão como um principio espiritual essencial, refletido no nome de Deus, "Compassivo e Misericordioso", que aparece no início de, praticamente, cada capítulo do Alcorão.
Encontrar um ponto comum entre as crenças pode nos ajudar a romper com essas divisões inúteis numa época em que a ação unificada é mais importante do que nunca. Como espécie, precisamos entender a humanidade como uma unidade num momento em que enfrentamos problemas globais como pandemias, crises econômicas e desastres ecológicos. Nessa dimensão, nossa resposta tem que ser uma só.
A harmonia entre as maiores crenças tornou-se um ingrediente essencial da coexistência pacífica em nosso mundo. A partir dessa perspectiva, a compreensão mútua entre essas tradições não é meramente um assuntos dos fiéis - ela é importante para o bem-estar da humanidade como um todo.
Autor: Tenzin Gyatso (Dalai-Lama)
Fonte: Estadão
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