"A religião é o ópio do povo", frase que se consagrou como máxima popular teve sua origem na concepção materialista de Karl Marx. Porém, o fato de esse pensamento ter se incorporado, em parte, ao senso comum, não significa dizer que as pessoas, ao proferirem-no, estejam irremediavelmente desconectadas da religião. Quando nos propomos a "esquecer" um pouco a frase e seu contexto como máxima, percebemos também o quanto a Igreja, em suas várias correntes, contribuiu para a sociedade civil e para a própria religião - seja com as ações das pastorais, com as campanhas sociais das Igrejas evangélicas ou com a força de alguns líderes, ícones de uma imparidade pouco vista, como D. Helder Câmara e Martin Luther King. Mas voltemos à realidade...
Em pleno século XXI, ainda lidamos com o despropósito de setores conservadores da Igreja Católica e Protestante, que ainda se acham no direito de interferir no cenário político e nas eleições. Religiosos deixam à margem sua liturgia de pregar o Evangelho, para se entregarem de corpo, sem alma, à orientação de seus fiéis sobre como votar nestas eleições. Ao sugerir a seus fiéis apoiar esse ou aquele partido, essas pessoas deixam de ser crentes, seguidores de uma crença religiosa, passam a ser fiéis-eleitorais.
O pastor, padre ou qualquer líder religioso, tem (e deve), além de crer, que pregar o Evangelho e replicá-lo aos seus, buscando aplicar o ensinamento religioso do livro sagrado à realidade - e ao que ele e sua instituição julgam como certo e errado, enfim, virtude ou pecado.
Acontece que o limite entre a legítima prática da fé - por meio da defesa religiosa em prol dos valores e práticas cristãs - e a isonomia, o respeito à liberdade - o direito de cada cidadão de votar como quiser - consiste uma fronteira muito tênue. Além disso, claro, todos devem poder se expressar de qualquer forma e gênero, independente de sua religião ou credo, conforme sua consciência - com o agravante de valermo-nos do voto, como a maior instância de participação popular em uma democracia, mesmo recente e incipiente como à nossa. E votar é um ato puro e intransferível, não sendo uma prerrogativa e nem direito de propriedade da terra da fé. Depredar a cerca e adentrar neste fronteiriço e limite de terra comum a todos, é um absurdo, especialmente se for feito por meio da política. Desta forma, não o seria também por meio da religião?
Vale lembrar que os fiéis, mesmo também eleitores, são antes de tudo e de qualquer coisa, cidadãos. Na constituição, não há referência a garantias e direitos de um fiel, muito menos dos fiéis. São pertenças inegociáveis aos cidadãos. Portanto, usar da prática da fé para motivar um grupo de fiéis, em plena igreja ou culto, a votar neste ou naquele partido é um retrocesso secular. Para ser franco, milenar; haja visto que há 200 anos, tivemos o desprendimento à liberdade de pensamento garantida com o Iluminismo com a passagem do século das Luzes (XVIII) e sua "permanência" na contemporaneidade.
Agir e usar a religião como subterfúgio subterrâneo e arcaico, para manobrar a opinião pública de seus fiéis, significa imprensá-los na própria armadilha do ser humano: o cumprimento de sua autocrítica e autoquestionamento da moral coercitiva da "sociedade" e seus grupos. Frente ao preço moral do autoflagelo do descumprimento da "ordem", vê-se uma espécie de beco-armadilha, que coloca-nos como cidadãos à margem do século XXI, do XVIII e nos remete, no mínimo, para o século XIV, no Feudalismo, onde o Clero agia com o peso de sua influência religiosa e política. Só que naquele tempo não tínhamos a luz do sol refletida em uma Terra redonda, nem a terra girando em torno deste sol, muito menos, as leis de Newton. Na verdade, não tínhamos quase nenhuma luz, só a quase e total penumbra, em movimentos de translação e rotação. Hoje é diferente. É preciso esquecer um pouco que a frase "A religião é o ópio do povo", é uma máxima.. e entender que, também no caso da religião, ela precisa ser mais "povo", do que "ópio".
Autor: Diego Fonseca Dantas
Fonte: O Globo [link indisponível]
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