domingo, 15 de janeiro de 2023

Opressão evangélica

No caminho para as dunas do Abaeté, em Salvador, a lembrança da estátua de Mãe Stella de Oxóssi, incendiada no final do ano passado, recebe quem chega em Itapuã. Dentro do bairro, no parque do Abaeté, é o busto de Mãe Gilda — morta por um infarto após ser perseguida por integrantes da Igreja Universal — o responsável por evocar a intolerância religiosa sofrida pelo povo de santo. Na região que por pouco não foi oficializada como “Monte Santo”, entretanto, os praticantes do candomblé não precisam ser rememorados da violência à qual estão submetidos.

Em uma caminhada rotineira pelas dunas, no último domingo, Luís* parou para olhar as construções que estão sendo feitas, em processo de requalificação, e o movimento das pessoas no local, quando foi abordado por dois homens. “O cara me indagou: ‘Você vai fazer o que aí?’ Ficaram olhando e disseram ‘Aqui é cristão’”, conta Luís, homem negro que, trajado de branco, preferiu ir embora.

Monte Sinai

Há cerca de dez anos, os jornais de Salvador começaram a se interessar por um novo movimento que acontecia na capital: os evangélicos transformaram as dunas do Abaeté em uma espécie de Monte Sinai. Em 2022, o vereador e pastor Isnard Araújo propôs oficializar a peregrinação e nomear o local como “Monte Santo”, junto à requalificação aprovada pela prefeitura. Pegos de surpresa, os praticantes do candomblé organizaram manifestações contra o projeto de Lei até que o vereador desistisse dele.

“É como chegar na Pedra de Xangô e dizer que é de Jesus”, afirma Bartolomeu Sousa, 67 anos, conhecido como Seu Madruga do Abaeté. “A ganância dos setores partidários prometeu dar esse nome [Monte Santo] a outro segmento religioso e botou em conflito a matriz africana. Tem vários segmentos protestantes oprimindo as pessoas que vinham fazer suas oferendas aqui”, conclui o líder comunitário.

A área, agora com as obras de requalificação avançadas, está sempre ocupada pelos evangélicos e cada vez menos tem a presença dos praticantes de religiões de matriz africana. “Quando subir ao monte, se encha do Espírito Santo”, avisa uma placa que fica na subida para as dunas. Os orixás, por sua vez, perdem espaço.

O professor Pedro Queiroz, de 27 anos, afirma que já é corriqueira a intolerância religiosa durante as práticas do candomblé no local. “Vivemos na lagoa do Abaeté, principalmente nós que somos do terreiro ali de Itapuã, e os protestantes agora estão indo muito lá, então às vezes, quando vamos limpar o busto, já aconteceu de ouvir coisa, de repreender, de dizer que só Jesus salva, que o demônio está com a gente, que Jesus está voltando…”, conta.

Violência em nome de Deus

Ao sair do terreiro em Itapuã, Pedro precisa esperar o ônibus na região do intitulado Monte Santo. Ali, recentemente, sofreu um caso de intolerância religiosa para além do “corriqueiro”. Por volta das 14h de um sábado, o professor, vestido de branco e com guias no pescoço, foi ameaçado por um homem que se disse pastor.

“Ele começou a falar que o demônio estava vivo dentro de mim e começou a me ameaçar com a bíblia. Continuou o discurso dele que era uma mistura de um cristianimsmo violento e homofobia, transfobia, porque sou uma pessoa trans não binária. Ele começou a falar que está na hora de acabar ‘com esse tipo de gente’, que era o dever dele, porque tinha recebido uma mensagem de que era o dever dele livrar o mundo de pessoas como eu”, relata Pedro.

“Não costumo ficar quieto, geralmente respondo, mas nesse dia não consegui falar nada. Estava só esperando o momento que ele fosse vir em cima de mim. Depois, cheguei em casa completamente abalado”, lamenta.

Logo após o que aconteceu com Pedro, outra pessoa do terreiro em Itapuã, Wesley Costa, também foi atacado por um evangélico. Em exercício de funções religiosas nas matas que cobrem a região do Abaeté, Wesley foi agredido fisicamente por um homem que afirmou que seu ebó era “imundice” e “não era de Deus”. “Ele me deu um soco muito forte sem que a gente pudesse trocar o mínimo de palavras. Caí no chão e minha preocupação era sair da mata porque eu não sabia o que poderia acontecer. Prestei o depoimento e hoje está registrado como mais um ato de intolerância religiosa”.

Cruzada cristã requalificada

Os praticantes das religiões de matriz africana da área reclamam que a intolerância ficou pior após a requalificação. “Parece que eles entraram em um modo assim de ocupação, de espaço cruzadas cristãs”, diz Pedro. Seu Madruga conta que já não se vê mais o povo de santo do Abaeté nas dunas: “Estão com medo, os evangélicos estão 24 horas aqui”. Mãe Jaciara, filha de Mãe Gilda — ialorixá que tem o busto no Parque do Abaeté —, sofre com ameaças dos evangélicos devido às denúncias que tem feito.

“Piorou significamente desde as obras da prefeitura. Ele [o prefeito Bruno Reis] não levou a obra como requalificação para preservar a área em nome da comunidade, mas entregou aos evangélicos, como um evento totalmente orquestrado para eles. Teve palco, parceria com vários pastores e várias igrejas. Quando nós do axé chegamos lá, foi um incômodo. E estamos lá há muito mais tempo do que as igrejas”, conta o professor Pedro, do terreiro da ialorixá Jaciara.

Cruzadas e colonização são palavras utilizadas pelos praticantes do candomblé para explicar a ocupação da área. Procurada pelo Jornal da Metropole, a prefeitura de Salvador não se pronunciou sobre ter ou não medidas para apaziguar conflitos na região.

O vereador Isnard Araújo, por sua vez, afirmou que “infelizmente tem algumas pessoas que não sabem administrar o diferente, não sabem respeitar quem pensa diferente”. O pastor disse ainda respeitar as pessoas de religiões de matriz africana, mas que “vai ficar um pouco quanto conflitante um pessoal orando e outros fazendo seus rituais”. “Ali ficou um lugar praticamente usual de pastores”, diz.

Fonte: https://www.metro1.com.br/noticias/jornal-da-metropole/132285,abaete-povo-de-santo-denuncia-nova-colonizacao-crista-e-intimidacao-por-evangelicos
Nota: os evangélicos reclamam tanto de que são perseguidos, mas são perseguidores.

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