O sagrado permeava a vida cotidiana dos gregos tanto nos
espaços e assuntos públicos quanto nos privados. Tanto Deuses quanto homens
nasceram no mundo e dele fazem parte, havendo algo de divino no mundo e algo de
mundano nas divindades. Os domínios do natural e sobrenatural não são
dicotômicos, mas intrinsecamente conectados, não havendo separações claras
entre o que é religioso, social, doméstico ou cívico. A experiência helênica do
sagrado pode ter como gênese a sensação da presença do sobrenatural em alguns
locais, tais como cavernas e florestas e que com o decorrer dos anos essa
experiência tomou duas direções: territorial, que irá gerar os santuários e
outra que se une à natureza e à rodem da vida social. Em ambas as acepções a
experiência do sagrado é a de um poder ou sistema de poderes que interferem nos
processos da natureza e da vida de forma benéfica ou perturbadora. Os helenos
buscavam em suas atitudes para com o domínio do sobrenatural propiciar a face
benévola, especialmente através das oferendas votivas.
A religião e os mitos gregos permaneceram na consciência
cultural ocidental por uma tripla tradição: sua presença na literatura antiga,
a polemica com os pais da Igreja e sua proximidade com a filosofia
Neoplatônica. Apesar das relações dos deuses apresentadas na poesia épica, a
religião cívica era fundamento da ordem moral da pólis.
A religião grega era uma religião da tradição> segui-la
faz parte do “ser grego”, eis porque é chamada de religião cívica. As
narrativas mitológicas, aprendidas ainda na infância, contribuem para a forma
como os helenos concebiam o divino. Em seu entendimento, na religião grega não
se participava dos cultos por motivos puramente pessoais, mas se exercia nesses
o papel que lhe fora atribuído pela polis, consagrando a ordem coletiva e os
segmentos que a construíam. Ao contrario das religiões reveladas, não se
estabelecia com as divindades helênicas uma relação pessoal, pois, como
potencias, seu culto se dá por estarem num estatuto superior ao dos humanos.
Como potencias, representam a plenitude dos valores que eram importantes para a
sociedade grega.
Por ser religião cívica, sacerdotes e magistrados continham
em si tanto aspectos sagrados quanto de
autoridade pública. O poder religioso era exercido por aqueles que detinham o
direito secular: os chefes de família e os magistrados. Cabiam às Assembleias e
Conselhos das póleis definir o calendário religioso, os sacrifícios a serem
feitos a cada Deus, a organização das festas e a administração dos santuários.
As cidades são construções humanas e devido às suas
características e especificidades os Deuses entram em conflito para que sejam
por elas honrados acima de tudo e todos os outros. Os Deuses precisam oferecer
aos habitantes delas algo em troca, que os façam merecer o culto políade.
Acreditar na existência dos Deuses era reconhecer a presença dos mesmos na
pólis, sua relevância para a existência humana em comunidade politica. E isso
englobava o conjunto das obrigações que eram devidas às divindades. Crer nos
Deuses também significava estabelecer relações amigáveis com eles, ter uma
prática “política”, ou seja, incluir-se na comunidade. Ser cidadão implica
tanto na participação nos festivais e nos templos quanto nos Tribunais e Assembleias.
Se acreditar nos Deuses faz parte da cidadania helênica, o seu contrário
significa excluir-se da comunidade. A impiedade é vista como um delito público,
não honrar os Deuses políade é prejudicial à própria pessoa. Não prestar culto
a um Deus seria equivalente a rejeitar uma área da experiência humana.
Contudo, essa dimensão social não negaria uma dimensão
pessoal da experiência religiosa. As relações entre o individuo e os Deuses têm
paralelo com os laços que o primeiro tece dentro da comunidade a qual pertence,
a esfera emocional é parte integrante desse processo. A frequência em um
santuário não ocorria apenas para cumprir com uma obrigação perante a cidade,
mas sim porque a relação com seres supremos pode trazer conforto e satisfação
ao indivíduo.
Homero e Hesíodo tiveram papel crucial na elaboração e
difusão de noções comuns sobre a religiosidade e a cultura grega, mas a
individualidade de cada pólis não nos permite ter a noção de uma versão
religiosa preponderante e sim de um conjunto de variantes locais em pé de
igualdade umas com as outras e também com as versões contidas na poesia oral.
A religião não era completamente absorvida pela pólis, sendo
algo maior que ela, a transcende. O modelo seria de pouco auxilio para a
compreensão das intenções, motivações e as dinâmicas das consultas oraculares
feitas por particulares. O calendário religioso estaria vinculado não às
instituições da pólis, mas ao ciclo agrícola.
A religião grega era uma rede de sistemas interagindo uns
com os outros e com a dimensão religiosa pan-helênica. Esta está articulada na
e através da poesia pan-helênica e dos santuários pan-helênicos; foi criada de
uma maneira dispersa e variada, de elementos selecionados de certos sistemas
locais e na fronteira entre os sistemas religiosos das póleis, que ela também
ajudou a modelar.
A pólis era a estrutura fundamental na qual a religião grega
operava. Toda cidade helênica era um sistema religioso em si mesmo, interagindo
com os sistemas religiosos de outras póleis e com uma dimensão pan-helênica. Como
uma pessoa nascia em uma pólis, só poderia pertencer à estrutura religiosa
dela, de forma que estrangeiros necessitavam da mediação de um cidadão para
participar de certos rituais.
A pólis era mediadora e legitimadora de todas as práticas
religiosas. Os cultos eram controlados pela cidade-estado que, no Período
Clássico, figurava como a máxima autoridade em assuntos religiosos. Mesmo o
culto doméstico era influenciado pela pólis, uma vez que era essa que
estabelecia quais Deuses deviam figurar na religião domiciliar.
Unidade entre corpo religioso e o corpo cívico: temos aqui a
noção de religião incorporada, ou seja, a prática religiosa era parte crucial
na rede de relacionamentos do interior da pólis. O culto em comum era a maneira
estabelecida de expressar a comunalidade no mundo grego, de dar aos grupos
sociais coesão e identidade. Seria, portanto, percebido com inevitável que
realidades particulares de póleis particulares estivessem refletidas na
articulação de seus cultos. Não se tratava de um Estado manipulando a religião:
a unidade que era tanto corpo religioso, carregando a autoridade religiosa,
quanto o corpo social, atuando através de suas instituições políticas, empregou
o culto a fim de se articular no que era visto como a forma natural.
A cidade articulava a religião e o discurso religioso, por
sua vez, se tornava sua ideologia central. Ela era o elemento que estruturava e
conferia sentido a todos os elementos que compunham a identidade políade. Cabe destacar
uma das funções dos rituais religiosos gregos: estabelecer a solidariedade
entre os membros de um segmento social, marcando a identidade perante os demais
grupos. As relações e laços sociais e políticos eram definidos pelo culto.
Desconhecimento do divino: os helenos tinham a percepção que
o conhecimento humano sobre o divino e seus assuntos era limitado. A compreensão
da falibilidade humana seria o motor do agenciamento religioso. Os gregos sabiam
que sua religião era uma construção humana, aberta a mudanças diante das mais
variadas situações. No afã de atingir uma relação melhor com o divino, rituais
e mitos poderiam ser resignificados e outros Deuses adorados. Os tempos de
crise se mostram particularmente reveladores dessa característica, gerando
pressões para a inovação, inserindo novos cultos na realidade políade, que
viveria tensões entre conservantismo e inovação.
O indivíduo como unidade de culto principal: o centro de
articulação da religião grega era seus rituais, não uma experiência espiritual.
Apesar das atividades cultuais ocorrerem em conjunto, a família não pode ser a
unidade ideológica básica da religião grega. O indivíduo era o elemento
operando na conjuntura geral da veneração pública e privada dos Deuses.
As pessoas participavam como indivíduos em cultos centrais
para a cidade e eram organizadas em uma variedade de forma que sinalizavam uma
gama de elementos identitários, os quais não dependiam uns dos outros em sua
totalidade.
No que tange os cultos de Mistérios, esses abririam espaço
para a escolha pessoal, pois sua adesão, ao contrário da religião políade, não
era compulsória. O iniciado recebia um segredo divino, que promovia a sua aproximação
ao outro mundo e revelava a continuidade entre a vida e a morte. Após as
celebrações, eles retornavam às suas casas e vidas comuns, ainda comungando dos
demais cultos de sua pólis. Seria após a morte que eles gozariam de uma
existência diferenciada daqueles que não passaram pelos ritos dos Mistérios. O grande
apelo dos Mistérios junto aos gregos e às demais sociedades pagãs é o
oferecimento de uma intimidade com o divino que não era enfatizada pelos cultos
oficiais.
Autora: Maria Figueiredo Virgulino.
Fonte: Fertilidade e Prosperidade na Ásty de Corinto, pg. 23
– 32.
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