sábado, 15 de novembro de 2014

Contra o Método

Autor: Paul Feyerabend

Capítulo XVIII

Dessa forma, a ciência aproxima-se do mito, muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor. Chama a atenção, é ruidosa e impudente, mas só inerentemente superior aos olhos daqueles que já se hajam decidido favoravelmente a certa ideologia ou que já a tenham aceito, sem sequer examinar suas conveniências e limitações. Como a aceitação e a rejeição de ideologias devem caber ao indivíduo, segue-se que a separação entre o Estado e a Igreja há de ser complementada por uma separação entre o Estado e a ciência, mais recente, mais agressiva e mais dogmática instituição religiosa. Tal separação será, talvez, a única forma de alcançarmos a humanidade de que somos capazes, mas que jamais concretizamos.

A idéia de que a ciência pode e deve ser elaborada com obediência a regras fixas e universais é, a um tempo, quimérica e perniciosa. É quimérica pois implica visão demasiado simplista das capacidades do homem e das circunstâncias que lhes estimulam ou provocam o desenvolvimento. E é perniciosa porque a tentativa de emprestar vigência às regras conduz a acentuar nossas qualificações profissionais em detrimento de nossa humanidade. Além disso, a idéia é prejudicial à ciência, pois leva a ignorar as complexas condições físicas e históricas que exercem influência sobre a evolução científica. Torna a ciência menos plástica e mais dogmática: cada qual das regras metodológicas se vê associada a pressupostos cosmológicos, de modo que, recorrendo à regra, damos por admitido que os pressupostos sejam corretos. O falseamentismo ingênuo dá por admitido que as leis da natureza se apresentem de maneira clara e não oculta por perturbações de magnitude considerável, O empirismo aceita que a experiência sensória seja melhor espelho do mundo que o pensamento. O culto do argumento tem como certo que os manipuladores da Razão oferecem resultados melhores que os do jogo incerto de nossas emoções.

A alteração da perspectiva decorrente dessas descobertas conduz, uma vez mais, ao longamente esquecido problema do mérito da ciência. A ele conduz pela primeira vez na história moderna, pois que a ciência moderna se impôs a seus oponentes, não os convenceu.

A ciência dominou pela força, não através de argumentos(isso é especialmente verdadeiro no que se refere às primeiras colônias, onde a ciência e a religião do amor fraternal foram introduzidas como algo natural, sem consulta aos habitantes e sem lhes ouvir argumentos). Hoje, damo-nos conta de que o racionalismo,inclinando-se para a ciência, não pode ser de qualquer valia em face da pendência entre ciência e mito e damo-nos conta, ainda, graças a investigações de caráter inteiramente diverso, que os mitos são muito mais válidos do que os racionalistas têm ousado admitir.

Somos, assim, forçados a suscitar a questão do mérito da ciência.

Exame do assunto revela que ciência e mito se superpõem sob muitos aspectos, que diferenças aparentemente perceptíveis são, com freqüência, fenômenos localizados que, em outros pontos, se transformam em similaridades e que as discrepâncias fundamentais resultam antes de propósitos diversos do que de métodos diferentes a tentarem alcançar um único e mesmo fim ‘racional’.

A busca de teoria é busca da unidade subjacente à complexidade que se percebe. A teoria dispõe as coisas em um contexto causal mais amplo que o contexto causal propiciado pelo senso comum: tanto a ciência quanto o mito recobrem o senso comum de uma superestrutura teorética.

Há teorias de diferentes graus de abstração e elas são utilizadas de acordo com os diferentes requisitos de explicação que se colocam.

A construção de teoria consiste em partir os objetos do senso comum para reunir os fragmentos de maneira diversa. Os modelos teoréticos nascem da analogia, mas gradualmente se distanciam do padrão em que a analogia se apoiava.

As idéias centrais do mito são vistas como sagradas. Teme-se que sofram ameaças. ‘Quase nunca se depara com uma confissão de ignorância’ e eventos ‘que fogem fortemente às linhas de classificação admitidas pela cultura em que ocorrem’ despertam a ‘reação do tabu’. As crenças básicas são protegidas por essa reação e também pelo artifício das ‘elaborações secundárias’ que, em nossos tempos, são séries de hipóteses ad hoc. A ciência, de outra parte, se caracteriza por um ‘ceticismo essencial’; ‘quando as falhas se acumulam rapidamente, a defesa da teoria se transforma inexoravelmente em ataquè a ela’. Isso é possível devido à ‘abertura’ do empreendimento científico, devido ao pluralismo das idéias que encerra e também devido a que ‘tudo quando escapa ou deixa de amoldar-se ao estabelecido sistema de categorias não é visto como aterrador, como algo a ser isolado e repudiado. É, pelo contrário, um ‘fenômeno’ intrigante — ponto de partida e desafio para a criação de novas classificações e de novas teorias’. Um estudo de campo a propósito da ciência leva-nos a descortinar quadro muito diverso.

Revela esse estudo que, embora alguns cientistas possam agir segundo o esquema descrito, a grande maioria segue trilha diferente.

O ceticismo é mínimo; dirige-se contra a maneira de ver dos oponentes e contra ramificações secundárias das idéias fundamentais que se defende, mas nunca se levanta contra as próprias idéias básicas. Atacar idéias básicas desperta reações de tabu que não são menos intensas do que as reações de tabu nas chamadas sociedades primitivas. As crenças básicas são protegidas por essa reação e, como vimos, por elaborações secundárias; e tudo quanto deixa de acomodar-se ao estabelecido sistema de categorias é declarado incompatível com tal sistema ou é encarado como algo escandaloso ou, mais freqüentemente, é simplesmente considerado como não-existente. A ciência não está preparada para fazer do pluralismo teorético o fundamento da pesquisa.

O dogmatismo pesado a que fiz alusão não é apenas um fato, mas desempenha também importantíssima função.

Sem ele seria impossível a ciência. Pensadores ‘primitivos’ mostraram maior percepção da natureza do conhecimento do que seus ‘esclarecidos’ rivais filosóficos. Torna-se necessário, pois, reexaminar nossa atitude em face do mito, da religião, da magia, da feitiçaria e em face de todas aquelas idéias que os racionalistas gostariam de ver para sempre afastadas da superfície da Terra (sem ter-lhes prestado maior atenção — típica reação de tabu).

A ciência reinar soberana porque seus praticantes são incapazes de compreender e não se dispõem a tolerar ideologias diferentes, porque têm força para impor seus desejos e porque usam essa força como seus ancestrais usaram a força de que eles dispunham para impor o cristianismo aos povos que iam encontrando em suas conquistas.

Contudo, a ciência não tem autoridade maior que a de qualquer outra forma de vida. Seus objetivos não são, por certo, mais importantes que os propósitos orientadores de uma comunidade religiosa ou de uma tribo que se mantém unida graças a um mito. De qualquer modo, não há por que esses objetivos possam restringir as vidas, os pensamentos, a educação dos integrantes de uma sociedade livre, onde cada qual deve ter a possibilidade de decidir por si próprio e de viver de acordo com as crenças sociais que tenha por mais aceitáveis. A separação entre Estado e Igreja deve, portanto, ser complementada pela separação entre Estado e ciência.

No espírito de cientistas e de leigos, a imagem da ciência do século XX é decorrência de milagres tecnológicos, tais como a televisão em cores, as viagens à Lua, o forno a raios infravermelhos e de informações vagas, mas nem por isso de menor força — algo como histórias fantasiosas — a propósito de como surgem tais milagres.

Segundo essas histórias fantasiosas, o êxito da ciência é o resultado de combinação sutil, mas cuidadosamente dosada, de inventividade e controle. Os cientistas têm idéias e dispõem de métodos especiais para desenvolvê-las. As teorias da ciência foram aprovadas no teste do método. Proporcionam melhor visão do mundo que idéias não passadas pelo crivo desse teste.

A história fantasiosa explica por que a sociedade moderna dá à ciência tratamento especial e por que lhe concede privilégios que não beneficiam outras instituições.

A razão desse tratamento especial está, sem dúvida, em nosso pequeno conto de fadas: se a ciência encontrou método que transforma concepções ideologicamente contaminadas em teorias verdadeiras e úteis, a ciência não é mera ideologia, porém medida objetiva de todas as ideologias.

Contudo, o conto de fadas é, como vimos, falso. Não há método especial que assegure o êxito ou o torne provável. Os cientistas não resolvem os problemas por possuírem uma varinha de condão — a metodologia ou uma teoria da racionalidade — mas porque estudaram o problema por longo tempo e conhecem bem a situação, porque não são tolos e porque os excessos de uma escola científica são quase sempre contrabalançados pelos excessos de alguma outra escola.

No fundo, pouquíssima diferença há entre o processo que leva ao anúncio de uma nova lei científica e o processo de promulgação de uma nova lei jurídica: informa-se a todos os cidadãos ou aos imediatamente envolvidos, faz-se a coleta de ‘fatos’ e preconceitos, discute-se o assunto e, finalmente, vota-se.

Sem embargo, enquanto uma democracia faz algum esforço para esclarecer o processo, de sorte que todos o entendam, a ciência ou o esconde ou o distorce, para que ele se Amolde a seus sectários interesses.

Só os fatos, a lógica e a metodologia decidem — é o que nos diz o conto de fadas. Mas como decidem os fatos? Que função desempenham no avanço do conhecimento?

Não podemos fazer nossas teorias deles derivarem. Não podemos apresentar um critério negativo, dizendo, por exemplo, que as boas teorias são as teorias passíveis de refutação, mas não contraditadas pelos fatos.

A sugestão de que uma boa teoria explica mais que suas oponentes também não é admissível.

Voltando-nos para a lógica, damo-nos conta de que nem mesmo seus mais simples requisitos são satisfeitos pela prática científica e não poderiam ser satisfeitos, em razão da complexidade do material. As idéias de que os cientistas costumam valer-se para apresentar o conhecido e avançar rumo ao desconhecido raramente estão em estrita concordância com as injunções da lógica ou da matemática pura e a tentativa que se fizesse para levá-las a essa concordância roubaria da ciência a flexibilidade sem a qual é impossível alcançar progresso.

Anotemos: só os fatos não bastam para levar-nos a aceitar ou rejeitar teorias científicas, pois a margem que deixam ao pensamento é demasiado ampla; a lógica e a metodologia eliminam demais, são demasiado acanhadas.

Mais pormenorizada análise dos lances de êxito no jogo da ciência mostra, indubitavelmente que há uma larga faixa de liberdade a pedir multiplicidade de idéias e a permitir a aplicação de processos democráticos, mas que está obstruída pela política e pela propaganda do poder. Esse o ponto em que o conto de fadas do método especial assume sua função decisiva. Oculta a liberdade de decisão que os cientistas criadores e o público em geral têm, mesmo no que se refere às mais sólidas e avançadas partes da ciência, antepondo-lhes a repetição dos critérios ‘objetivos’ e assim protegendo os grandes nomes (os Prêmio Nobel; os chefes de laboratórios de organizações como a Associação Médica Americana, de escolas especiais; os ‘educadores’, etc.) contra as massas (os leigos; os especialistas em campos não-científicos; os especialistas em outros ramos da ciência): só importam os cidadãos que foram expostos às pressões das instituições científicas (sofreram longo processo de educação), que sucumbiram a essas pressões (foram aprovados no exame) e que estão, agora, firmemente convencidos da verdade do conto de fadas. Dessa maneira os cientistas se iludiram a si próprios e aos demais com respeito à tarefa a que se dedicam, sem, contudo, virem a sofrer qualquer real desvantagem: dispõem de mais dinheiro, mais autoridade e exercem maior atração do que merecem — e os mais estúpidos processos e mais risíveis resultados que alcançam em sua esfera de atuação vêm rodeados de uma aura de excelência. É tempo de reduzi-los às devidas proporções e de atribuir-lhes mais modesta posição na sociedade.

O processo não se restringe à história inicial da ciência moderna. Está longe de ser simples conseqüência do primitivo estágio das ciências, nos séculos XVI e XVII. Ainda hoje, a ciência pode tirar e tira vantagem da consideração de elementos não científicos.

Combinando essa observação com a percepção de que a ciência não dispõe de método especial, chegamos à conclusão de que a separação entre ciência e não-ciência não é apenas artificial, mas perniciosa para o avanço do saber. Se desejamos compreender a natureza, se desejamos dominar a circunstância física, devemos recorrer a todas as idéias, todos os métodos e não apenas a reduzido número deles. Assim, a asserção de que não há conhecimento fora da ciência — extra scientiam nulla salus — nada mais é que outro e convenientíssimo conto de fadas.

A ciência moderna, de outra parte, não é tão difícil e tão perfeita quanto a propaganda quer levar-nos a crer. Uma disciplina, como a física, a medicina ou a biologia, só parece difícil porque é mal ensinada, porque as lições comuns estão repletas de material redundante e porque a ela nos dedicamos já muito avançados na vida.

Quão freqüentemente não é a ciência aprimorada e impelida a novos caminhos por influências não-científicas!

O caminho que leva a tal objetivo é claro. Uma ciência que insiste em ser a detentora do único método correto e dos únicos resultados aceitáveis é ideologia e deve ser separada do Estado e, especialmente, dos procesos de educação.

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