quarta-feira, 8 de julho de 2009

A fundação de um deus

O homem só respira à sombra de divindades erodidas.
Quanto mais nos convencemos disso, mais nos lembramos, com terror, a nós mesmos que, se tivéssemos vivido no momento da ascensão da Cristandade, poderíamos ter sucumbido ao seu fascínio.
Não assistimos à fundação de um deus – qualquer que seja ou de onde quer que venha – impunemente. Nem é recente tal desvantagem: Prometeu já tinha chamado a atenção para ela, vítima ele próprio de Zeus e da nova gangue do Olimpo. Muito mais que a perspectiva da salvação, foi a raiva contra o mundo antigo que se abateu sobre os cristãos num único impulso destrutivo.
Desde que vinham, em sua maioria, de outras partes, seu acesso de fúria contra Roma é compreensível. Essa insistência em lembrar aos pagãos que eles estavam perdidos – eles e os seus ídolos – seria capaz de exasperar até os mais moderados. Menos preparado que aqueles, restava-lhe apenas um recurso: odiar-se a si mesmo.
Sem esse desvio do ódio, no começo atípico, mas depois contagioso, a Cristandade teria permanecido só uma seita, limitada a uma clientela estrangeira, capaz apenas de trocar os antigos deuses por um cadáver cravejado.
No entanto tais homens se resignaram a isso, e é difícil para nós imaginar o cúmulo de derrotas internas de onde brotaria essa resignação. Se, no plano moral, podemos concebê-la como a consumação de uma crise e assim lhe conceder o status ou a desculpa de uma conversão, tal resignação aparece como uma traição tão logo a consideramos do ponto de vista político.
Abandonar os deuses que fizeram Roma seria abandonar a própria Roma, para formar uma aliança com essa “nova raça de homens nascidos ontem, não tendo país nem tradição, coligados contra qualquer instituição religiosa e civil, perseguidos pela lei, universalmente execrados por causa de suas infâmias, e no entanto gloriando-se dessa execração comum”[Celsus].
Somente a idade garantia a validade dos deuses – todos eram tolerados, contanto que não tivessem sido moldados há pouco. O que se considerava particularmente problemático era a absoluta novidade do filho: um contemporâneo, um recém-chegado... Essa figura desestimulante, que nenhum sábio tinha previsto ou prefigurado, é que “chocava” mais. Seu aparecimento foi um escândalo que levou quatro séculos para ser assimilado. O Pai, um velho conhecido, era admitido; por razões táticas, os cristãos se voltaram para Ele e falaram em Seu nome.
"Os judeus, muitos séculos atrás, se organizaram numa nação, estabeleceram leis próprias que conservam ainda hoje. A religião que seguem, o que quer que valha e o que quer que se diga a seu respeito, é a religião de seus ancestrais. Permanecendo fiéis a ela, não fazem mais do que os outros homens, que preservam sempre os costumes de seu país"[Celsus].
Sacrificar ao preconceito da antiguidade era, implicitamente, reconhecer os deuses autóctones como os únicos deuses legítimos. Os cristãos estavam prontos, por motivos egoístas, a curvar-se também a esse preconceito, mas não podiam, sem se destruírem, ir além e adotá-lo totalmente, com todas as suas conseqüências.
Para um Orígenes, os deuses étnicos eram ídolos, relíquias do politeísmo; São Paulo já os tinha reduzido à categoria de demônios. O judaísmo considerava-os todos falsos, a não ser um, o seu próprio. Aos olhos dos antigos, quanto mais deuses você reconhece, melhor você serve a divindade, da qual eles não são senão os aspectos, as faces. Tentar limitar o seu número era uma impiedade; suprimi-los todos em favor de um único, um crime. É desse crime que os cristãos se tornaram culpados.
A ironia contra eles já não era apropriada: o mal que estavam propagando tinha se espalhado demais. O politeísmo corresponde melhor à diversidade de nossas tendências e de nossos impulsos, aos quais oferece a possibilidade de expressar-se, de manifestar-se – cada um deles estando livre para buscar, de acordo com sua natureza, aquele deus que melhor lhe quadra no momento. Sob o regime de vários deuses, o fervor é compartilhado. Quando se dirige a um deus somente, ele se concentra, se exacerba e termina por converter-se em agressão, em fé. A energia já não se dispersa, é inteiramente focalizada numa direção.
O que havia de mais notável no paganismo era que nele não se fazia nenhuma distinção radical entre acreditar e não acreditar, entre ter fé e não ter. A fé é uma invenção cristã, supõe um desequilíbrio tanto no homem quanto em Deus, desequilíbrio que um diálogo dramático e desordenado estimula. Daí provém o caráter frenético da nova religião.
A antiga, tão mais humana, permitia a você a possibilidade de escolher entre o deus que você queria; e, já que não lhe impunha nenhum, ficava a seu critério inclinar-se para um ou outro. Quanto mais caprichoso você fosse, mais precisaria mudar de deuses, passar de um para outro, estando quase certo de encontrar os meios de adorar a todos no curso de uma única existência.
Além do mais, eles eram modestos, queriam somente respeito: você os saudava, não se ajoelhava diante deles. Eram idealmente apropriados para o homem cujas contradições não se resolviam nem podiam resolver-se – para a mente inquieta e atormentada.
Quão afortunado era ele – esse homem –, na sua confusão itinerante, em poder experimentá-los a todos e poder estar quase certo de topar com aquele de que mais precisava na ocasião!
Após o triunfo da Cristandade, a liberdade de manobrar entre os deuses e de escolher algum, ao seu talante, se tornou inconcebível.
Ao que parece, o homem se deu os deuses por uma necessidade de se ver protegido, garantido – na realidade, por uma gana de sofrer. Desde que acreditou na sua multiplicidade, abriu espaço para uma liberdade de escolha, para evasões.
Na seqüência, limitando-se a um deus, passou a ser afligido por um suplemento de amarras e embaraços. Certamente não há outro animal que se ame e se odeie tanto, até o limite do vício, e que se daria o luxo de uma sujeição tão pesada.
Quanta crueldade para com nós mesmos – unir forças com o grande Espectro e fundir o nosso fardo ao Dele! O único Deus torna a vida irrespirável. A Cristandade lançou mão do rigor jurídico dos romanos e das acrobacias filosóficas dos gregos, não para liberar a mente, mas para acorrentá-la. E, acorrentando-a, a Cristandade obrigou a mente a se aprofundar, a descer ao fundo de si mesma. Os dogmas aprisionam-na, traçam-lhe limites externos que ela não pode ultrapassar de modo algum.
Ao mesmo tempo, deixam a mente livre para explorar seu universo particular, para escrutinar sua própria vertigem e, a fim de escapar à tirania das certezas doutrinais, para procurar o ser – ou o seu equivalente negativo – nos confins de toda sensação.
Experiência da mente enjaulada, o êxtase é, por necessidade, mais freqüente numa religião autoritária do que numa liberal: isso acontece porque o êxtase é um salto para a intimidade das profundezas, um recurso à introversão, uma fuga em direção ao eu.
Não tendo tido, por tão longo tempo, nenhum refúgio além de Deus, mergulhamos tão profundamente Nele quanto em nós mesmos (um mergulho que representa a única exploração autêntica que fizemos em dois mil anos).
Sondamos o Seu abismo e o nosso, erodimos os Seus segredos um por um, enfraquecemos e comprometemos a Sua substância pela dupla agressão do conhecimento e da prece.
Os antigos não sobrecarregavam seus deuses: eram demasiado elegantes para aborrecê-los a esse ponto ou para convertê-los em objeto de estudo. Desde que a transição fatal da mitologia para a teologia ainda não se fizera, eles nada conheciam dessa tensão perpétua, presente tanto nos arroubos dos grandes místicos quanto nas banalidades do catecismo.
Quando a terra se torna sinônimo do impraticável, e quando sentimos que o contato que nos prende a ela é fisicamente cortado, o remédio não está na fé ou na negação da fé (ambas expressões da mesma fraqueza), mas naquele diletantismo pagão, mais precisamente na ideia que temos dele, na ideia que forjamos.
A desvantagem mais séria que um cristão encontra é aquela de não ser capaz de servir conscientemente a mais do que um deus, embora tenha latitude bastante para aderir, na prática, a muitos (o culto aos santos!). Uma adesão salutar que permitiu ao politeísmo prosseguir, apesar de tudo, indiretamente.
Sem ela, uma Cristandade excessivamente pura desembocaria, com certeza, numa esquizofrenia universal. Com o devido respeito a Tertuliano, a alma é naturalmente pagã. Qualquer deus, quando responde às nossas necessidades imediatas, representa para nós um acréscimo de vitalidade, um estímulo, o que não é o caso quando esse deus nos é imposto ou quando não corresponde à necessidade.
O erro do paganismo foi não ter aceitado e acumulado muitos deles: morreu por generosidade e excesso de compreensão – morreu por falta de instinto. São os períodos que não têm uma fé específica (o helenístico ou o nosso) que se ocupam em classificar os deuses, enquanto se recusam a dividi-los entre verdadeiros e falsos.
A noção de que todos os deuses valem alguma coisa – de que cada um vale tanto quanto o outro – é, pelo contrário, inaceitável nos intervalos em que prevalece o fervor. Tudo isso passou a importar depois da calamidade do monoteísmo. Para a piedade pagã, as coisas eram diferentes.
“Vemos os deuses nacionais sendo adorados: em Elêusis, Ceres; na Frigia, Cibele; em Epidauro, Esculápio; na Caldéia, Baal; na Síria, Astarte; em Tauris, Diana; Mercúrio entre os gauleses, e em Roma todos os deuses juntos. De onde vem ele, esse deus único, solitário, derrelito, não reconhecido por nenhuma nação livre, por nenhum reino...?”[Minucio Felix, in Octavius].
De acordo com um antigo decreto romano, ninguém deveria adorar exclusivamente deuses novos ou forasteiros, se eles não fossem admitidos pelo Estado, mais precisamente pelo Senado, a única instância competente para decidir quais mereciam ser adotados ou rejeitados. O Deus cristão, aparecendo na periferia do Império, chegando a Roma por meios indeclaráveis, cobraria mais tarde uma revanche terrível pelo fato de ter sido obrigado a entrar na capital mediante fraude.
Uma civilização é destruída apenas quando seus deuses são destruídos. Os cristãos, não ousando atacar de frente o Império, emboscaram sua religião. Deixaram-se perseguir apenas para poder arremeter contra ela de modo mais efetivo, a fim de satisfazer o seu apetite irrefreável por execração. Quão miseráveis seriam se ninguém se dignasse a promovê-los à categoria de vítimas!
Tudo no paganismo, inclusive a tolerância, os exasperava. Quando nos damos conta de que a vida só é suportável se podemos mudar de deuses, e de que o monoteísmo contém em germe todas as formas de tirania, deixamos de ter pena da velha instituição da escravidão.
Era melhor ser escravo e poder adorar uma forma escolhida de divindade do que ser “livre” e se confrontar com uma única variedade do divino. Liberdade é o direito à diferença; plural, postula a dispersão do absoluto, sua resolução numa poeira de verdades, igualmente justificadas e provisórias.
Há um politeísmo subjacente na democracia liberal (chamem-no de politeísmo inconsciente); inversamente, cada regime autoritário compartilha de um monoteísmo disfarçado. Curiosos os efeitos da lógica monoteísta: um pagão, ao tornar-se cristão, tendia à intolerância.
Melhor naufragar com uma horda de deuses acomodatícios do que prosperar à sombra de um déspota! Tão logo uma divindade, ou uma doutrina, exige supremacia, a liberdade é ameaçada.
Se vemos um valor supremo na tolerância, então tudo o que lhe faz violência deve ser considerado como um crime, a começar por esses empreendimentos de conversão nos quais a Igreja se mantém inigualável.
E, se ela exagerou a gravidade das perseguições a que foi submetida e inchou absurdamente o número de seus mártires, ela precisava encobrir seus crimes com pretextos nobres: deixar sem punição doutrinas perniciosas. Assim, foi num espírito de lealdade que a Igreja se lançou à aniquilação dos “desviados”, e que pôde, depois de ter sido perseguida por quatro séculos, tornar-se perseguidora ao longo de quatorze. Esse é o segredo, o milagre da sua perenidade. Tendo coincidido o advento da Cristandade com o do Império, certos padres (Eusébio, entre outros) sustentaram que essa coincidência tinha um significado profundo: um Deus, um imperador. Na realidade, tratava-se de abolir os empecilhos nacionais, da possibilidade de circular através de um vasto estado sem fronteiras, o qual permitia à Cristandade infiltrar-se, tornar-se audaciosa.
Sem essa oportunidade de se expandir, teria permanecido como uma simples dissidência dentro do judaísmo, em vez de se tornar uma religião invasora e, o que é pior, uma religião da propaganda. Todos os meios se justificavam para recrutar, para reforçar e para expandir até mesmo essas bajulações diárias cujo aparato era uma ofensa tanto para os pagãos quanto para os deuses olímpicos.
O paganismo não elidia a morte, mas tinha o cuidado de não deixá-la à mostra. Para o paganismo, era um princípio fundamental supor que a morte não é consoante com o dia claro, que a morte é um insulto à luz. A morte pertencia à noite e aos deuses infernais. Os galileus encheram os sepulcros, diz Juliano, que nunca chama Jesus a não ser de “o morto”. Para os pagãos dignos do nome, a nova superstição podia parecer apenas uma exploração, um aproveitamento do repulsivo. Tanto mais amargamente iriam deplorar o progresso que ela estava a fazer em cada setor.
Autor: E. M. Cioran, The New Gods, tradução de Renato Suttana.
Nota da casa: Eu não concordo com o autor quanto a falta de fé dos Pagãos ou que a fé seja uma invenção Cristã. O que se pode anotar são as diferenças na manifestação da crença/fé: entre os Cristãos a fé é manifestada de uma forma submissa, os crentes precisam rastejar para adorar ao Deus Cristão; os Pagãos adoram a seus Deuses os olhando nos olhos. Também não concordo com o autor quanto o Cristianismo ser uma "ameaça" por ser "estrangeiro", o que se pode anotar é que a doutrina Cristã possui elementos que a tornam peculiarmente perniciosa à humanidade.

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