Aborto legal e contra-aborto fundamentalista
por Marcelo Henrique e Marcus Braga
Por que, então, a vida que se gesta, a condição feminina da maternidade (por pressuposto biológico exclusivo) precisa estar nas mãos de legisladores, executores, juristas e indivíduos da sociedade majoritariamente homens, em termos de opinião, decisão e retórica?
Aprendemos, nos livros, que a trajetória humana é progressiva. Igualmente, em tais fontes, nos acostumamos a ver o mundo (e seus Estados independentes e soberanos) deixando para trás, em regra, iniquidades, atrasos, obscurantismos e interferências nos poderes constituídos).
A tarefa de homens e sociedades sensatos e que acompanhem a marcha natural do progresso é evitar a “contaminação” da política, dos temas públicos e sociais, e das atividades executiva, legislativa e judiciária por ideologias – mesmo que tais sejam majoritárias. O Estado é laico e, como tal, deve se preservar de influências de matizes religiosos, de qualquer textura e contextura, para vincular ações governamentais, políticas estatais e normas jurídicas e decisões judiciais à “ditadura da maioria religiosa”.
Falamos especificamente do direito à vida e das normas que permitem a interrupção da gestação no Estado Democrático Brasileiro. Na vigência da Constituição Cidadã (1988) e sob o regime do Código Penal Brasileiro (1940, com alterações supervenientes), há três tipos que afastam a pretensão punitiva jurídico-processual: a) aborto necessário (para salvar a vida da gestante); b) aborto cuja gravidez resulta de estupro (precedido do consentimento da gestante); e c) aborto do anencéfalo (decisão do Supremo Tribunal Federal, a partir de 2012).
Eis, aí, o Direito posto e vigente. Obviamente que nenhuma norma legal ou decisão judicial são irrevogáveis ou inalteráveis. É da democracia a possibilidade normativa ou jurídica de revisão de atos e relações jurídicos. E há instrumentos e ferramentas, tanto no poder Legislativo quanto no Judiciário para, na constância de novas teses, se permitir a oxigenação do Direito. Porque as pessoas, as sociedades, as ciências e filosofias progridem, razão pela qual, mutatis mutandis, os ordenamentos jurídicos devam, também, acompanhar tais mudanças.
Mas, há, também, situações outras que não decorrem de nenhum processo de maturação de ideias, nem de pesquisas, estudos científicos ou do aperfeiçoamento do pensamento humano. São, do contrário, aberrações derivadas da intransigência humana, do proselitismo e do fundamentalismo religiosos, os quais buscam conformar a vida social ao matiz ideológico de determinadas correntes sociais, embasadas em moral própria e não na ética social.
Num Estado realmente democrático, em que vige a liberdade de consciência, de expressão e de crença, as decisões legislativas precisam contemplar a pluralidade ou diversidade de visões de mundo, que podem estar estampadas em distintas crenças ou, ainda, em convicções que nada guardam relação com as religiões. Em outras palavras, o olhar não pode ser o de determinada corrente ideológica, religiosa ou não, porque, neste caso, uma norma legal ou uma decisão judicial será manifestamente um posicionamento de uma ditadura da fé.
Eis que no Brasil de 2024, quase ao “apagar das luzes”, se materializa a aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, pelo placar de 35×15, a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) n. 164/2012, conforme decisão de 27 de novembro, que visa desconstituir o marco legal anterior para proibir as três espécies de aborto legal vigentes.
Trata-se, em espécie, de um paradigma de mais de 80 anos, derivado de discussões sobre tal temática, seja no legislativo seja no judiciário, no tocante à previsão jurídica de apreciação de questões concernentes à vida e, por extensão, à morte, como a eutanásia, o suicídio, a pena de morte e o homicídio. No contexto específico do projeto em tela, a discussão em sede do legislativo federal brasileiro deveria estar motivada por questões de saúde pública ou do direito das mulheres, e não ser direcionada por aspectos fundamentalmente religiosos, inclusive os que predeterminam que os fatos humano-materiais seriam derivados de “autorizações divinas”, para sua ocorrência.
O chamado “aborto legal”, portanto, se correlaciona aos direitos humanos fundamentais, em que a essencial existência que se busca preservar – e com a imprescindível qualidade de vida, em plenitude, sem riscos, sem sequelas, e com a garantia de uma gestação digna e com a certeza da independência existencial do futuro ser (nascituro) – é a da mulher-gestante-mãe.
E o ponto de partida, sim, é o elenco de situações que caracterizam o aborto legal, suas características e suas consequências. Não abarca, a presente discussão, se a previsão legal (aborto legal) contribui para que haja facilidade para abortos ilegais e fraudulentos. Mas se deve considerar que, com a negação completa do direito ao aborto, claramente haverá a profusão de abortos clandestinos, justamente para as situações que hoje se encontram consolidadas como norma, protegendo a coletividade brasileira.
É preciso destacar, ab initio, que nenhuma das três hipóteses permissivas é obrigatória. Ou seja, nenhuma mulher é condicionada a praticar o aborto. O que se garante é o exercício de opção, voluntariamente, em termos de decisão pessoal de continuar ou não a gestação, nas três situações: aquela em que a mulher-gestante corre algum risco de morte, na continuidade da gestação; a que o feto é resultante de um ato criminoso, extremamente violento (estupro); e, por último, as situações de imperfeição, má formação e impossibilidade de vida independente e saudável do nascituro.
E a contemporaneidade é pródiga em casos, nas situações acima, em que, de modo altruísta, a mulher optou por seguir a gravidez, como seu inalienável direito de escolha!
O fato é que, com a possível “reforma” legislativa, este direito será liminar e definitivamente extirpado do nosso ordenamento jurídico, disso resultando as seguintes situações abjetas, impostas pelo Estado:
1) A hipótese do aborto necessário ou terapêutico (risco de morte da gestante ou à sua saúde);
2) A circunstância do aborto eugenésico ou eugênico, quanto a vida extrauterina será inviável ou no caso de anencefalia; e,
3) A questão afeta à origem da gestação, como fruto de crime (estupro), considerado sentimental ou humanitário.
Constata-se que as situações normativas vigentes são correlacionadas à preservação tanto da vida quanto da saúde psíquica da mulher, simbolizando a tendência e a realidade (não só brasileira, mas presente em grande número de países no contexto internacional) para interpretar dispositivos penais (no nosso caso, o Código Penal Brasileiro) de forma evolutiva (progressiva e progressista), em consonância com o conjunto de princípios e direitos constitucionais, em especial do da dignidade da pessoa humana.
A mulher, destarte, fica salvaguardada e protegida de situações que possam lhe acarretar verdadeiros e concretos prejuízos (dores inimagináveis, frustrações, desespero, traumas diversos e desestabilidade emocional, dentre outros sentimentos e psiquismos).
Nestes casos, a realização do ato configura aborto seguro ou legal, evitando-se que qualquer mulher recorra a atos inseguros – que geram alto índice de mortalidade ou sequelas graves ou gravíssimas. A segurança, assim, decorre da presença de equipe de saúde bem treinada e capacitada, da infraestrutura do sistema público de saúde (SUS) e da existência de regulamentação e de uma política de saúde adequada e transparente.
O excessivo rigor legal que se pretende, pela PEC em epígrafe, em aprovada, nos fará retornar a um estado jurídico-processual em que os prejudicados (mãe, cônjuge e familiares da gestante) teriam de recorrer ao Judiciário para, caso a caso, – com a imprescindível celeridade, o que nem sempre é possível, dado o volume de processos nos tribunais – ser buscada a autorização para realizar o aborto, em face de provas egressas de pareceres de profissionais da saúde (médicos), em face do já mencionado risco (de morte) para a mãe ou a má formação do feto. Situação, assim, de evidente desestabilidade jurídica.
Em relação ao dispositivo vigente, o espírito legislativo se fundamenta na ideia de que se está interrompendo algo que é demonstradamente inviável, em face dos avanços da tecnologia em saúde, em que a decisão (clínica e, depois, jurídica) é abalizada.
Na última situação excludente de criminalidade no cenário jurídico-processual brasileiro, a da gravidez resultante de estupro, se suprimida, representaria a “valorização” do estuprador, porque, do crime hediondo por ele praticado, receberia o beneplácito de se tornar “pai”, por imposição legal e em detrimento da saúde psíquica e psicológica da mulher aviltada por tão bárbaro e hediondo crime.
Isto porque, o tipo criminal originário (estupro), no caso da gravidez que lhe é superveniente, é destacadamente afeto á condição peculiar da natureza da mulher e sua hipossuficiência demonstrada em relação ao homem. Os crimes de natureza sexual – um capítulo destacado e com apenações graves dentro da conjuntura jurídico-normativa na totalidade dos países e sociedades ditos civilizados – são considerados em particularidades ímpares, uma vez que as ações humanas delituosas alcançam um setor que é o da liberdade de consciência e de ação e, portanto, sujeito a um “guarda-chuva” ainda mais amplo e especial de proteção.
Devemos ainda ponderar outas “espécies” possíveis – e igualmente gravíssimas – em relação ao estupro (e a indesejável gravidez dele decorrente). A casuística abrange também estupros de vulneráveis (quais sejam os menores e os portadores de deficiências físicas múltiplas, absoluta ou relativamente incapazes, do ponto de vista jurídico-legal). Nestes casos, ainda e também, tem-se um rol de atos levados a cabo por, via de regra, parentes e pessoas com situação de proximidade e intimidade com as vítimas, o que agrava ainda mais o cenário.
Isto importaria em uma tripla punição a essa mulher: o estupro em si; a exigência de manutenção da gravidez/gestação nessas condições (precárias); e, ainda, um efeito final, em dois quadrantes, dependendo do resultado: 1) a filiação que, se assumida, será sempre lembrada como o fruto de um ato não desejado, violento e criminoso; ou, 2) optando, a gestante, pelo aborto, em razão da obrigatoriedade de arcar com o filho gestado, sofrerá uma sanção penal se optar pela interrupção da gravidez. Três experiências, conclusivamente, que irão marcar negativamente a sua existência para sempre.
E no tocante à anencefalia, lembremos que o dispositivo autorizador derivou de referendo da Suprema Corte Brasileira, quando o Colegiado do Supremo Tribunal Federal, ao atuar com a prerrogativa de “jus legiferante”, realizou o que o Poder Legislativo não fez, que é a apreciação das situações fáticas, segundo ocorrências reiteradas na sociedade, para prescrever a legitimidade de determinados contextos. Na ocasião (abril de 2012), decidiu-se acerca da liberdade da gestante para decidir se interrompe a gravidez caso seja constatada, por meio de laudo médico, a anencefalia do feto (julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS). Justificativa de alta relevância e de destacado caráter humanitário.
Por que, então, impor a uma gestante e à sua família, a continuidade de uma gestação que, demonstradamente, por competentes pareceres médicos, não corresponderá à perspectiva de exercício pleno da vida, porquanto sem independência e sem saúde plena a um ser que não possui a plenitude de suas faculdades vitais, nem demonstra a condição de “vida inteligente”? Apenas para “defender” o caráter de “sacralidade” (religiosa) da vida? Não seria, aqui também, situação que deveria competir à mãe – e não ao Estado (Poderes Legislativo e Judiciário) a opção por manter ou não a gestação, inclusive por questões humanitárias?
Interessa-nos, neste momento em que, após referendado na CCJ, o texto deve seguir para Plenário, motivar uma madura e circunstanciada discussão, permitindo-se a inclusão de subsídios para uma visão mais ampla, humanizada e humanitária, laica, mas com inspiração de valores de espiritualidade, sem descair para o religiosismo de seitas.
E é imperioso evocar, em sentido contrário aos que desejam restringir ao máximo as hipóteses abortivas, diante dos argumentos acima expostos, o espírito de “O Novo Testamento” – tantas vezes referido pelos religiosos cristãos em geral – que materializa a visão de uma Lei Universal como sendo de amor e da própria configuração de um Deus-Criador amoroso, conforme expresso em múltiplas pregações e parábolas daquele carpinteiro de Nazaré, Yeshua (Jesus).
A tônica de sacralizar a vida, de forma ortodoxa como uma obrigação, ainda que diante de qualquer circunstância – inclusive violenta e criminosa – se direciona a uma atitude visivelmente machista e misógina: aquela que prescreve, cruelmente, que a criança precisa nascer, independente dos agudos sofrimentos para ela e para a mãe, além de outras pessoas diretamente envolvidas, numa linha retrógrada e superada de que tais sofrimentos farão os envolvidos evoluírem “por amor”.
Por fim, nós que defendemos a mantença das atuais situações que autorizam o aborto, também estamos cientes de que cabe à mulher – e não a qualquer outra pessoa, legislador ou juiz, a decisão inalienável de “seguir a gestação” e assumir a filiação decorrente. Mas, em linhas gerais e obrigatórias decorrentes da disciplina jurídica, impor à mulher a continuidade da gravidez, como regra, materializa a criminalização do sofrimento para inocentes (as mulheres), mesmo que imputada a pena ao transgressor (estuprador).
Por que, então, a vida que se gesta, a condição feminina da maternidade (por pressuposto biológico exclusivo) precisa estar nas mãos de legisladores, executores, juristas e indivíduos da sociedade majoritariamente homens, em termos de opinião, decisão e retórica?
Então, que cada indivíduo, homem ou mulher, em especial os nossos legisladores das duas Casas Legislativas Federais, possa se colocar na posição não de algoz, que “defende intransigentemente a vida”, que estabelece a vida como “dom (inalienável e intrasferível) divino, para, conforme toda a própria Pedagogia de Yeshua, agir empaticamente em relação aos semelhantes – em especial, a mulher-mãe que está diante de uma gravidez problemática, por “n” fatores (deficiência fetal irrecuperável, risco de morte da gestante ou fruto do estupro), deixando cair ao chão as pedras que estão em suas mãos, prontas a serem arremessadas àquela que gesta.
Fonte: https://jornalggn.com.br/artigos/aborto-legal-e-contra-aborto-fundamentalista-por-henrique-braga/
Nota: eu discordo apenas da noção de que existe uma marcha natural para o progresso.