Direto do Caturo, do Gladius:
De uma colectânea de textos escritos no final do século XIX:
As superstições populares foram por muito tempo consideradas como ridículas aberrações mentais, produtos de cérebros ignorantes e sem instrução, indignas de ocupar, por um momento sequer, a atenção do investigador e do sábio. Quando muito, eram o tema dos motejos da parte dos espíritos emancipados dessas velhas crendices e, se alguma vez a elas se aludia em livros sérios, era simplesmente para mostrar o quão baixo podia descer o espírito humano entregue aos seus próprios recursos e desajudado pela luz da revelação. A própria Igreja que, na sua luta com o povo para lhe desarreigar do espírito as crenças do passado, fora obrigada admitir no seu ritual muitas dessas crenças e superstições, disfarçando-as apenas com novas vestes, promoveu crua guerra contra as que resistiram a essa assimilação forçada, como o provam de sobejo as disposições das Constituições dos Bispados, que compendiámos num escrito anterior, e mais tarde as Sentenças da Inquisição contra todas as manifestações do maravilhoso popular, ainda mesmo as mais inocentes e piedosas na aparência.
E o que se dava com as superstições, dava-se com a poesia, com os usos, com os costumes, com as tradições, com todas as criações anónimas do génio popular enfim, que, não só em Portugal mas em toda a parte, eram sistematicamente postas de banda pela literatura convencional e pedante que, ou procurava o modelo das suas composições num estéril subjectivismo sem realidade, ou na cópia servil das produções da antiguidade clássica. No nosso país mesmo foi esse desprezo do elemento popular o traço mais característico da literatura nacional como o provou o nosso colega Teófilo Braga nos seus trabalhos sobre a literatura portuguesa. E no entretanto, como muito bem diz o Sr. Adolfo Coelho, «nada mais mesquinho que os produtos da imaginação individual. Um verdadeiro artista, um Ésquilo, um Sófocles, um Dante, um Shakespeare, um Goethe acha na tradição popular todas as formas para exprimir a sua concepção da natureza e da humanidade». E é por isso que os três maiores vultos da nossa literatura, Gil Vicente, Camões e Garrett, conseguiram elevar-se acima da mediocridade que os cercava e criar três obras imorredouras, pela assimilação do elemento popular e tradicional, que cada um tomou como base das suas criações.
Este elemento começou a ser cientificamente explorado pelos irmãos Grimm na Alemanha, quase no princípio deste século (1812-1814); em seguida, o movimento propagou-se aos países escandinavos, à Rússia e hoje, pode dizer-se, não há país da Europa, não há mesmo província ou comarca que, mais ou menos, não tenha coligido os seus cantos, contos, superstições, usos, costumes, festas, provérbios, etc., etc.. Na Península Hispânica foram estas explorações verdadeiramente iniciadas em 1853 por Milá y Fontanals, e continuadas ulteriormente por Maspons y Labros, ambos da Catalunha. O Sr. Teófilo Braga, de 1867 a 1869 publicou o seu Cancioneiro e Romanceiro Geral Português (5 vols.) coligido da tradição oral, onde se encontram sob uma forma mais genuína muitos dos romances já publicados por Garrett. (...)
O estudo das superstições de um povo, além do interesse nacional propriamente dito, tem um interesse científico de primeira ordem, como contribuição para a etnologia e para o que os Alemães chamam «Kulturgeschichte» - história da civilização.
(...) ainda que na linguagem vulgar (não popular) se confunda por vezes «bruxaria» com «feitiçaria», estas duas concepções são diversas, como mostraremos, e correspondem a dois factos, análogos sim, mas nem semelhantes, nem de idêntica extensão. A crença nas bruxas entrou como um dos elementos da feitiçaria em Portugal, mas na feitiçaria entra outra ordem de elementos, que nada tem que ver com esta crença. A feitiçaria mesmo, pelo modo especial como se apresenta entre nós, tem, considerada no seu conjunto, um carácter muito menos popular, do que a crença nas bruxas. Não há dúvida que os nossos feiticeiros, como pode ver-se pelos processos da Inquisição, admitiram, submetendo-as a uma espécie de sistematização, muitas crenças e superstições verdadeiramente populares. Porém, ao lado delas encontram-se práticas e fórmulas, não só de uma procedência - digamo-lo por analogia com o que se dá na linguagem - erudita, mas mesmo completamente alheia ao génio nacional. A língua latina é por vezes empregada nessas fórmulas, e ainda quando expressas na língua vulgar, são as reminiscências bíblicas e apocalípticas que lhes constituem o fundo. (...) Nada mais alheio ao espírito popular, do que, por exemplo, os textos das diversas cartas de tocar (talismãs) empregadas pelos nossos feiticeiros, o conteúdo de muitas fórmulas, a disposição de diversas cerimónias e invocações. Pelo contrário, a crença nas bruxas é uma superstição genuinamente popular, embora não seja exclusivamente nacional e se encontre, em muitos povos, sobretudo, e sem contar com os Latinos, entre os Germanos e os Eslavos.
A bruxa não é tão-pouco a fada. Esta concepção do maravilhoso do nosso povo tem principalmente uma feição benéfica. (...) A bruxa é uma entidade muito diversa. Ainda que por vezes, e nos próprios contos populares, ela se confunda com a fada o seu carácter é essencialmente maléfico. Nas fadas há um vago eco de uma concepção de justiça. (...) A bruxa pelo contrário é um génio malfazejo, e o mal que faz, vai recair sobre os mais inofensivos entes, como acontece as crianças de mama, às quais chupa o sangue. Não trataremos aqui de investigar se esta concepção das bruxas é o resultado da transformação por que o Cristianismo fez passar a reminiscência das antigas sacerdotisas pagãs, depois de ter reduzido os Deuses, a Cujo culto elas estavam ligadas, ao tipo do Diabo medieval. É provável que assim seja. A estreita dependência em que, com efeito, as bruxas estão do Diabo, na concepção popular, é entre outros, um argumento a favor desta hipótese. (...) A feiticeira é uma mulher, de ordinário velha e hedionda, e sem possuir poderes ilimitados ou extra-humanos, a não ser a evocação do seu patrono ou dos seus delegados, e o conhecimento de drogas, ingredientes e feitiços, com que realiza os prodígios da sua arte. (...) Pouco se distanciam das nossas actuais Mulheres de Virtude a não ser pela extensão dos seus poderes.
A bruxa porém, tal como ainda hoje nela acredita o povo das nossas aldeias, é muito mais do que isto. Segundo a tradição, as bruxas começaram por ser feiticeiras, e depois de terem comunicação com o Diabo, este as induz com falsas promessas a serem bruxas, exigindo para isso delas um certo número de votos e juramentos. (...)
Fonte citada: «Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa e Outros Escritos Etnográficos», de Consiglieri Pedroso, Publicações Dom Quixote, Colecção Portugal de Perto, págs. 95 e seguintes.
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