Os pemón argumentam que a prática evita queimadas acidentais piores.
As montanhas cobertas de neblina que surgem da floresta formam uma das fronteiras mais atraentes de exploração e pesquisa. Tanto que inspirou o romance fantástico “O Mundo Perdido”, de Arthur Conan Doyle, e equipes de biólogos que ainda armam expedições a escarpas remotas na esperança de encontrar espécies novas para a ciência.
Porém, nas savanas abaixo, os sinais de fumaça pela paisagem atestam um costume que deflagrou um acirrado debate entre cientistas na Venezuela e outros lugares: a tradição dos índios pemón de queimar repetidamente pasto e floresta para caçar animais e plantar alimentos.
A seca que afligiu a Venezuela este ano está intensificando clamores de que os índios da etnia pemón tenham desencadeado um aumento nas queimadas, normalmente extintas pela chuva. Alguns especialistas em florestas dizem que a queimada coloca a Gran Sabana, uma região do tamanho da Irlanda que inclui as enigmáticas montanhas conhecidas como tepuis, em risco de desmatamento e perda de espécies.
O governo do presidente Hugo Chávez já está enfrentando ampla indignação pública em relação à falta de energia elétrica, e a empresa estatal de energia teme que as queimadas possam diminuir as florestas que ajudam a coletar e liberar água, e levar sedimentos do rio para o Guri, complexo hidrelétrico que fornece grande parte da energia elétrica do país.
Porém, muitos pemón, junto com alguns dos estudiosos que pesquisam sobre esse povo, dizem que as queimadas ajudam a evitar que o pasto acumule biomassa para queimadas muito maiores que poderiam se alastrar pela região, da mesma forma como grandes incêndios devastaram partes da Indonésia em 1997.
“Quem vem de fora pensa que somos selvagens primitivos, mas eles desconhecem nossos métodos”, disse Leonardo Criollo, 46 anos, líder pemón cuja vila, Yunek, fica à sombra do maciço de Chumanta, uma coleção de 11 tepuis dos quais cascatas descem de rochas altas. “Queimamos para que possamos viver em harmonia com a savana ao nosso redor.”
O conflito de opiniões sobre a prática centenária faz parte de um debate mais amplo sobre a soberania e o gerenciamento adequado das terras indígenas. Boa parte da Gran Sabana é delimitada ou como parque nacional ou como território militar. Mas alguns ecologistas que defendem a queimada alegam que povos indígenas do mundo todo há muito tempo usam o fogo para alterar seus ecossistemas e moldar regiões como as pradarias do meio-oeste americano.
Relatos sobre as origens dos pemón na Gran Sabana divergem, mas alguns historiadores afirmam que eles podem ter migrado para cá há cinco séculos, vindos da costa do que hoje é a Guiana, após incursões de exploradores europeus. Paleoecologistas também debatem sobre que porcentagem da Gran Sabana era coberta originalmente por florestas e quando a queimada por parte dos humanos passou a ocorrer.
De qualquer modo, os pemón, que hoje são cerca de 25 mil, tinham boa parte da Gran Sabana para si até o começo do século 20, quando missionários começaram a fortalecer sua presença. Os missionários foram então seguidos por equipes de pesquisadores cientistas e, nas últimas décadas, por autoridades venezuelanas que construíram uma rodovia aqui na década de 1970.
Toda a área agora é agitada. Caminhões do Brasil correm pela rodovia pavimentada trazendo bens de consumo. Contrabandistas pegam a mesma estrada pela fronteira para vender gasolina. Soldados mal-humorados pedem suborno nos postos de controle. Os militares estão aumentando sua presença na área com uma nova base de monitoramento de satélite na vila de Luepa.
No meio de tudo isso, os pemón continuam ateando fogo em partes da Gran Sabana, já que áreas recém-queimadas logo dão lugar a pasto fresco que atraem presas desejadas, como o veado de rabo branco.
“Por que eu mudaria um costume que funciona há várias gerações”, disse Antonio Garcia, 70 anos, caçador pemón, enquanto se preparava em uma manhã recente perto de Santa Elena de Uairen, uma cidade de fronteira bastante pobre e cheia de atividades de contrabando.
A caça não é o único motivo. Bjorn Sletto, especialista em planejamento da Universidade do Texas, que estuda os hábitos de queimadas dos pemón, os viu queimar a terra para eliminar cobras e escorpiões; para se comunicar através de sinais de fumaça; e para pescar, pois o fogo faz com que os insetos pulem na água, atraindo peixes.
Porém, um dos principais motivos desse povo indígena queimar a savana, segundo Sletto, pode ser criar um mosaico de paisagens divididas por queimadas naturais que evitam que incêndios maiores se espalhem. “Há razoes ecologicamente sensatas para que os pemón mantenham baixos os níveis de combustível na savana”, disse.
Outros discordam. Nelda Dezzeo, bióloga florestal do Instituto Venezuelano de Pesquisa Científica, sustenta que algumas florestas da Gran Sabana podem nunca se recuperar de queimadas repetidas. Ela disse que a ameaça de fogo se espalhando da savana para a floresta era especialmente preocupante.
“Há áreas onde novas espécies de árvores ainda estão sendo estudadas”, ela disse. “Se os danos chegarem a essas áreas, as espécies podem se perder, ou podemos perder espécies que ainda nem conhecemos”.
Os pemón enfrentam uma ração envolvendo as queimadas que vai além do limite do debate científico. Venezuelanos não-indígenas muitas vezes os chamam de “quemones”, um termo em espanhol para designar pessoas que queimam muito. “Os pemón são piromaníacos por natureza, e este ano vimos algumas das piores queimadas”, disse Raul Arias, 54 anos, que opera um serviço de helicóptero na região.
Alguns indígenas zombam de declarações como essas. “Quem é de fora chega e deixa seu excremento e lixo nos tepuis, depois reclamam que a queimada estraga sua visão”, disse Miguel Lezama, 46 anos, líder que mora perto do Monte Roraima.
Novos motivos para os incêndios complicam ainda mais a situação. Estudiosos viram um aumento nas queimadas para protestar contra a instalação de torres elétricas e a abertura da base de monitoramento de satélite. Outros pemón às vezes iniciam queimadas para atormentar o governo e pressioná-los a atender a suas exigências por serviços.
Poucos especialistas sabem como essas queimadas irão afetar a Gran Sabana, além de semear a discórdia na região.
“O governo está muito enganado se pensa que os pemón são ovelhinhas dóceis das savanas”, disse Demetrio Gomez, 36 anos, líder pemón que participou de um protesto violento perto de Santa Elena de Uairen este ano para desalojar invasores das terras indígenas. “Queimávamos essas terras muito antes da chegada de outras pessoas”, disse ele, “e vamos continuar queimando para sempre”.
Fonte: G1
Nota da casa: A notícia é importante para que muitos dos pagãos modernos, principalmente os urbanos, entendam que estar em harmonia com a natureza significa interagir, às vezes de forma invasiva, com ela.
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