Este é o segundo de uma série de cinco artigos que foram publicados em Maio pela Revista da Biblioteca Nacional, nº 56 do ano 5. Enfim, textos realmente relevantes no ponto de vista acadêmico, sem preconceito, sem paranóias, sem histerias.
A medicina e a feitiçaria já estiveram muito mais próximas do que se pode imaginar. Durante o Brasil Colônia até o século XIX, a produção de remédios com o uso de animais associados ao universo mágico, como o morcego e o cão negro, não era exclusivamente de curandeiros. Médicos e boticários também receitavam substâncias cujo significado difere muito do que hoje entendemos por ciência, utilizando até mesmo cadáveres humanos em suas fórmulas.
Naquela época, a quantidade de médicos no país era mínima, mas não faltavam representantes das muitas variadas ocupações para aplicar todo tipo de feitiços, como barbeiros, sangradores e mezinheiros. Esses terapeutas populares tratavam de doenças e de problemas cirúrgicos com ervas medicinais, amuletos e práticas como o catimbó e o calundu, designação genérica de um ritual associado a danças e cantos coletivos, em que ocorriam a invocação de espíritos, adivinhações e curas mágicas, de orgiem africana, com elementos do catolicismo.Os físicos e cirurgiões não tinham uma posição de relevo na sociedade. Este cenário só mudou a partir da metade do século XVIII, quando, já formados em universidades européias e membros de academias literárias e científicas, eles passaram a ocupar uma posição mais privilegiada.
Com o prestígio muito abaixo do que têm hoje, doutores, cirugiões e boticários diplomados não reconheciam a proximidade de sua profissão com a feitiçaria. Pelo contrário, esforçavam-se para estabelecer a diferença entre os dois domínios, reivindicando ao governo a restrição e a regulamentação do ofício dos curandeiros. Para isso, contavam com o apoio da Igreja e das Ordenações do Reino. A Igreja Católica estabelecia a fronteira cultural entre o universo demoníaco e a cura médica associada aos saberes universitários. A medicina procurava desvalorizar o conhecimento terapêutico popular, distinguindo os procedimentos "científicos" das crenças consideradas "supersticiosas".
Gradualmente, a medicina oficial foi ganhando força. Algumas medidas foram decisivas para que isso acontecesse. Desde 1826, D Pedro I já havia concedido o monopólio dos diplomas em cirurgia às escolas médico-cirúrgicas do Rio e da Bahia. Em 1828 foi extinta a Fisicultura-Mor, órgão do governo responsável pela fiscalização sanitária e pela regulamentação das artes terapêuticas. Sangradores e curandeiros foram definitivamente postos na ilegalidade. Em 1832, as duas escolas médico-cirúrgicas, que datavam de 1808, tornaram-se Faculdades de Medicina. Finalmente, em 1850, foi criada a Junta Central de Higiene Pública, logo após a primeira epidemia de febre amarela. Mas boa parte dessas medidas era "para inglês ver", e existiam de sobra vendedores ambulantes de remédios secretos na corte ou nas províncias.
A população ainda não associava competência terapêutica aos diplomas oficiais. As autoridades, por sua vez, faziam vista grossa aos anúncios que ofereciam curas imediatas para os mais diversos males.
Em um artigo publicado no periódico Archivo Médico Brasileiro, em 1848, seu autor atestava que, na Corte, a cura da bebedeira era monopólio dos curandeiros.
O uso dos remédios prescritos por médicos ou por curandeiros indicava a que camada da sociedade o cliente pertencia. O acesso aos produtos das farmácias, boticas e drogarias, muitos deles importados, era quase sempre uma prerrogativa dos brancos ricos. A imensa população de pobres e escravos contava com remédios caseiros, fórmulas feitas com ervas medicinais e outros produtos recomendados ou administrados por curandeiros, sangradores e barbeiros. As receitas utilizadas por esses profissionais era desprezadas pelos "civilizados", por serem consideradas indignas de gente fina ou delicada.
A repressão aos curandeiros, antes tolerados, recrudesceu a partir da década de 1870, quando o poder público ampliou o cerco às práticas e concepções populares de cura nos principais centros urbanos. A lei passou a ser aplicada com mais rigor, principalmente na capuital do Império. O Código Penal de 1890, da nascente República, embora garantisse a liberdade de consciência e culto, sancionava a perseguição aos terapeutas populares, criminalizando as práticas do espiritismo, da magia, do uso de talismãs e das cartomancias quando empregadas para a cura de moléstias. O exercício do ofício de curandeiro também era formalmente proibido e estava sujeito a penas de prisão e multa.
As associações médicas de grande prstígio, como a Academia Nacional de Medicina e a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, influíram na elaboração desses dispositivos legais. Elas reivindicavam o monopólio da assitência médica para os doutores diplomados e associaram as práticas terapêuticas populares à fraude e ao charlatanismo.
Autor: Flavio Coelho Edler.
Fonte: Revista de História da Bibliotca Nacional, ano 5, nº 56, Maio de 2010, pg 21-23.
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