Este é o quarto de uma série de cinco artigos que foram publicados em Maio pela Revista da Biblioteca Nacional, nº 56 do ano 5. Enfim, textos realmente relevantes no ponto de vista acadêmico, sem preconceito, sem paranóias, sem histerias.
No final da tarde de 25 de julho de 1862, foi preso em sua casa, em Salvador, o africano liberto Domingos Sodré. Ele havia sido denunciado por receber de escravos objetos roubados de seus senhores como pagamento por adivinhações e "feitiçarias". O chefe de polícia denominou o que acontecia na casa do africano de "candomblé", termo já em voga nessa época para definir diferentes práticas religiosas tidas como africanas.
Na casa de Domingos, localizada ao lado do seminário católico instalado no Convento de Santa Tereza, foram encontrados muitos objetos de culto, como búzios, chocalhos, "figuras de pau" e roupas cerimoniais, indicando que procedia a denúncia de que ali se praticavam rituais de candomblé. Como isso não era crime, Domingos foi preso sob a acusação de receptar objetos furtados, mas conseguiu safar-se: foi solto sob a promessa de abandonar aquelas práticas para se dedicar ao que a polícia chamou de "meio de vida honesto". Caso reincidisse, seria deportado para a África, uma punição não prevista na lei, mas frequentemente aplicada contra africanos libertos acusados de feitiçaria.
A polícia não investigou bem a vida de Domingos, ou, pelo menos, negligenciou alguns aspectos intrigantes dela. Ele era senhor de escravos, por exemplo. Quando foi preso, tinha pelo menos uma escrava e foi proprietário de seis cativos em diferentes momentos entre 1849 e 1877. Ao mesmo tempo, Domingos era chefe de uma junta de alforria, sociedade formada por escravos e libertos que emprestavam dinheiro para a compra da liberdade. Em geral, reuniam-se nessas organizações africanos pertencentes ao mesmo grupo étnico. A de Domingos era formada principalmente por nagôs, pois essa era a sua nação.
Domingos nascera em Lagos, hoje a maior cidade da Nigéria e fora vendido para a Bahia no final da década de 1810. Serviu no Engenho Trindade, que pertencia aos Sodré, uma família tradicional de senhores de engenho. Em 1836 conseguiu sua alforria, provavelmente dada em testamento pelo senhor, falecido no ano anterior. Talvez tenha sido depois de liberto que ele se estabeleceu em Salvador, onde se casou com uma africana, que morreu em 1850. Casou-se de novo, em 1871, com outra africana, depois de ter com ela vivido pelo menso dez anos.
Ao ser preso em 1862, papai Domingos, como era conhecido, foi considerado pela polícia o maior dos adivinhos e curandeiros que atuavam em Salvador. Isso sugere que ele seria um babalaô ou sacerdote de Ifá, o sofisticado sistema de adivinhação dos iorubás. Algumas das coisas confiscadas na casa de Domingos indicava que o praticava, como uma enfiada de objetos que lembra o opelê, a corrente divinatória do Ifá. Nada sugeria que fosse chefe de terreiro, alguém que tivesse sob sua liderança um grupo de iniciados que se reuniam periódicamente para reverenciar deuses africanos. Sua prática era doméstica e individual.
A procura pelos serviços de Domingos não se restringia aos pretos africanos e brasileiros. A imprensa noticiou que ele tinha clientes também entre a gente branca de posses. Nada foi dito sobre o tipo de serviço ritual que desempenhava para os brancos, mas, considerando o que se fazia noutros endereços africanos de Salvador, homens e mulheres o procuravam para tratar de males do corpo e da alma, curar-se de alguma doença ou de algum feitiço, fazer, refazer ou desfazer relações amorosas e promover o sucesso nos negócios.
Sobre seus clientes escravos, os documentos dão mais detalhes. Eles procuravam Domingos para que ele cuidasse de "amansar" seus senhores. Os escravos lançavam mão de beberragens, feitas com ervas as mais diversas, que debilitavam os senhores a ponto de perderem o controle sobre seus movimentos e pensamentos. Assim, eram facilmente manipulados por seus escravos, que podiam melhor dispor de seu tempo em festas e pequenas fugas, ou subtrair dinheiro e bens senhoriais sem que fossem descobertos e muito menos punidos.
Uma vez amansados, os senhores ainda podiam conceder a alforria sob condições mais favoráveis para os escravos, fosse um valor mais baixo ou mesmo gratuitamente. É possivel que Domingos usasse suas habilidades na manipulação de ervas e de forças espirituais em combinação com sua atividade na junta de alforria. Deste modo, os objetos e o dinheiro tirados dos senhores por seus escravos terminavam indo abastecer o caixa da junta chefiada pelo curandeiro africano.
Domingos Sodré não professava apenas a religião trazida do lado de lá do Atlântico. Ele era membro da irmandade católica do Rosário dos Homens Pretos da Rua de João Pereira. E quando a polícia invadiu sua casa, ali descobriu uma coleção de quadros de santos que forravam as paredes da sala, além de um oratório com bem aparelhadas imagens católicas. Há ainda mais indícios de que ele aderiu ao Catolicismo. Ao escrever seu testamento, o liberto lembrou-se de que tinha sido batizado na capela do Engenho Trindade e ao longo de sua vida havia comparecido à pia batismal como padrinho de mais de uma dezena de afilhados.
Figura bastante complexa esse Domingos: adivinho, curandeiro, devoto de orixá e de Nossa Senhora do Rosário, senhor de escravos, amansador de senhor de escravos e chefe de junta de alforria.
Autor: João José Reis
Fonte: Revista de História da Bibliteca Nacional, ano 5, nº 56, Maio de 2010, pg 26-27.
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