Este é o primeiro de uma série de cinco artigos que foram publicados em Maio pela Revista da Biblioteca Nacional, nº 56 do ano 5. Enfim, textos realmente relevantes no ponto de vista acadêmico, sem preconceito, sem paranóias, sem histerias.
O Cristianismo surgiu com a proposta de ser uma religião universal, mas o mundo tinha particularidades, sobretudo religiosas. Para levar a Boa-Nova a todos os homens, os cristãos precisavam se impor sobre seus oponentes. Assim foi construída a Igreja, primeiro apartando-se do Judaísmo, o mais incômodo adversário pela inquietante proximidade. Eliminando os Judeus, os heterodoxos foram os seguintes a ser calados e perseguidos.
Ao longo do período medieval, a Igreja era atormentada pelas seitas de "adoradores do Diabo", e por isso as perseguiu. Com rigor cada vez maior, chegou à caça às bruxas da Europa moderna: a combinação trágica e eficaz entre a alteridade e a erudição.
A construção de uma mitologia satânica implicou um monumental esforço de reconhecimento do demônio, de suas formas e possibilidades de atuação. Também era preciso identificar seus agentes, ou seja, aqueles que, embora inseridos no rebanho dos fiéis, tramavam secretamente para a sua perdição. Entre estes estava a mulher. Teólogos e eruditos medievais a converteram em bruxa, o suprassumo da traição e da maldade, o veículo preferencial de toda a malignidade de Satã - enfim, o feminino em toda sua tragicidade.
A doutrina cristã apresentava como razão para a submissão feminina a própria Criação: se o homem não foi criado pela mulher, ela estava numa posição automaticamente submissa. E ela também era a introdutora do pecado responsável pela condenação dos homens aos tormentos deste e do outro mundo, tornando-se vítima e, ao mesmo tempo, a parecira consciente do Diabo. De presa preferencial do demônio, Eva foi convertida em seu lugar-tenente.
Os movimentos e seitas que ameaçavam e se opunham à Igreja no período medieval levaram à conclusão de que o Diabo estava solto. Teólogos e eruditos deixaram de sustentar que o demônio tinha sido totalmente vencido. Se assim fosse, não haveria razão para a continuada existência da Igreja.
O rumor público serviu para ajudar a identificar o mal e seus agentes, especialmente numa Europa em crise. O continente convivia com a peste, as guerras, o Cisma e a súbita ruptura do mundo tradicional, que eram terríveis novidades certamente causadas por Satã e seus representantes, fossem feitiçeiros, adivinhos ou Judeus. Havia um imaginário frenético de um mundo em mudança, onde os homens assistiam perplexos à traição do costumeiro, ou seja, da pacífica continuidade que deveria levar o mundo de sempre à bem-aventurança da Jerusalém Celeste. Eles se perguntavam "chorando e gemendo neste vale de lágrimas": por que diabos agora se apoderam de tudo e de todos, destruindo o rebanho cristão, com a misteriosa permissão de Deus?
Deste modo, a partir do século XIV, o medo do fim do mundo e da danação eterna é itensificado e difundido na Europa de forma jamais vista. Mas esta angústia em relação ao mal não produziria efervescência sem a ação dos pregadores mendicantes, especialmente franciscanos e dominicanos. Conclamando todos ao arrrependimento e à penitência, eles evocavam os horrores dos castigos eternos para obter a cura espiritual da cristandade.
Os esforços didáticos da pregação, em vez de tranquilizar as consciências, acabaram impondo, através do Diabo, um rígido código ético e moral a partir do final do século XV. Resultado: todos os fatos da vida coletiva foram justificados pela sombria e inescapável mediação do Maligno.
A humanidade era atormentada pela cólera divina e pelo medo de Satã, estreitamente associado à espera do fim dos tempos no senso comum. O Martelo das Bruxas, o Manual de Caça às Bruxas, assim o anuncia: "Em meio às calamidades de um século que desmorona, o mundo em seu ocaso desce para seu declínio e a malícia dos homens aumenta". E Satã "sabe em sua raiva que tem pouco tempo".
Assim foi no início dos Tempos Modernos, e não na Idade Média, que o Diabo e seus seguidores ocuparam o cenário principal do imaginário europeu. A era das reformas, o período das dissidências religiosas na cristandade que deu origem ao Protestantismo, correspondeu ao momento máximo da repressão à bruxaria. A presença do Diabo era necessária para justificar o árduo e ininterrupto esforço missionário, ao mesmo tempo em que a existência de um Satã todo-ppoderoso servia de fundamento para toda sorte de medidas repressivas e de violências, transformadas em luta contra o Diabo, seus agentes e suas armadilhas.
Esse é o momento do "triunfo de Satã". Herdando os conceitos e as imagens modeladas pelas consciências medievais, o início da modernidade emprestou ao demônio uma coerência e uma difusão jamais alcançadas. O medo desmesurado e onipresente do demônio estava associado, na mentalidade popular, à espera do fim do mundo. A luta religiosa conferiu ao Diabo o seu estatuto de grandiosidade: ele é o grande rebelde. As reformas confirmaram seu direito de existir em toda sua potência, em toda a sua majestade. E as perseguições, os processos inquisitoriais, acabarma materializando as ilusões - por que não dizer decepções? - e os medos de uma cristandade que se sentia permanentemente ameaçada pelo mal.
Autor: Carlos Roberto Nogueira.
Fonte: Revista de História Biblioteca Nacional, ano 5, nº 56, Maio de 2010, pg 18-20.
Nenhum comentário:
Postar um comentário