A cafeteria Pantheon estava em suas preparações de costume para o Dia dos Mortos, o que significa que eu fui "convidado" a dividir meu horário de trabalho com a limpeza e decoração da cafeteria. Eu comecei a forrar o chão com folhas de jornais e revistas velhas. Em uma delas falava do rapto de Perséfone por Hades. Um assunto que acabou virando tabu e, tal como alguns mortais, foi uma longa negociação para esquecer esse caso.
Mesmo assim, não é difícil ouvir a fofoca do público toda vez que chega a Primavera.
Filha de Deméter, bisneta de Cronos e Réia, sobrinha de Zeus, ela ajudava sua mãe na tarefa de fazer a terra (corpo de Gaia) crescer e frutificar as plantas. Deméter era "bicho grilo" dos Olimpianos, mas a onda da Perséfone era outra.
A mãe curtia essa onda de ver as plantas nascendo, crescendo e florescendo. Perséfone curtia ver o princípio inverso, o envelhecimento, a decadência e a decomposição dos seres vivos.
Ela deve ter visto diversas vezes o comboio de almas, saindo dos corpos e sumindo em alguma abertura. Curiosa, ela seguia e acompanhava essas sombras, tentando ver para onde iam. Ela deve ter visto uma vez o ventre de Gaia abrir em um portal, as almas passando e, na entrada, ela viu Hades.
Caso raro, Hades vem receber pessoalmente as almas dos heróis, reis e grandes guerreiros. Ele percebeu que alguém o estava observando, mas não deu importância. Quem quer que fosse, teria que passar pelos portões do Submundo.
Deve ter sido surpreendente e embaraçoso quando Perséfone, sem cerimônia, resolveu invadir uma de suas reuniões com seus juízes e dar a opinião dela. Minos e Radamanto seguraram o riso e Eaco ficou encarando de boca aberta. Entrar no Submundo é fácil, mas teoricamente, ninguém deveria ser capaz de sair. Hermes ignora essa regra, Hércules e Orfeu conseguiram essa façanha. Hades estava contrariado, a presença de Perséfone ali acabaria desencadeando uma crise diplomática entre os reinos. Felizmente Hécate era outra frequentadora e passageira entre os reinos, o auxílio dela, inclusive na condução das almas, foi providencial quando Deméter fez escândalo quando os dois, inevitavelmente, foram atingidos pelas flechas de Eros e capturados pelas graças de Afrodite.
-Ah, não! Eu achei que nós tínhamos tirado esse tablóide de circulação!
A rainha do Submundo estava bem atrás de mim, chateada, mas não irritada. O dono da cafeteria pode ser meu patrão, mas Perséfone é rainha de todo tipo e forma de alma.
-Não se preocupe, Vossa Majestade. Eu achei essas folhas entre os jornais e revistas, mas vou queimá-las.
-Ah! Você é aquele espectro que transita entre os mundos. Dizem que você escreve bem.
-Nem tanto, Vossa Majestade. Muitos são infinitamente melhores.
-Tanto faz. Eu não vim aqui pela literatura. Dizem que aqui tem uma excelente torta de romã.
Eu peguei um pedaço grande na confeiteira refrigerada e servi.
-Hum! Nada mal. Mas ficaria melhor coberta com creme. Teria a gentileza de me servir?
O olhar de Perséfone nitidamente insinuava que tipo de creme ela queria. Geralmente esse tipo de serviço é cobrado, mas considerando que ela é minha rainha, eu a servi por conta da casa. Felizmente Hades não é ciumento e relações extraconjugais são comuns no Mundo Espiritual.
Perséfone saiu com um sorriso enorme em seu divino rosto e alguns litros do meu creme de nozes em seu ventre. Nada de gorjeta ou folga. Eu tive que continuar meu duplo trabalho, mesmo com as pernas bambas.
O aprendizado que ficou é que mortos são mais fáceis de enterrar do que o passado.
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